Dentre as medidas protetivas de urgência previstas expressamente na Lei n. 11.340/2006 – a chamada Lei Maria da Penha -, talvez a que desperte maior experiência e cuidado entre Juízes de Direito, Promotores de Justiça e Defensores Públicos militantes no Juizado de Violência Doméstica seja aquela prevista no Art. 22, Inciso III, letra “c”, desse Diploma.
Reza mencionado dispositivo legal, in litteris:
“Seção II
Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: (…)
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: (…)
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida”.
E como qualquer outra medida protetiva, sua violação pelo agressor implicará na sua prisão preventiva, “para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, como estatuído pelo Art. 42 da Lei Maria da Penha, que alterou o Art. 313 do CPP, acrescentando o novo Inciso IV, vazado nestes termos:
“CAPÍTULO III DA PRISÃO PREVENTIVA
Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: (…)
IV – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006)”.
O objetivo da Lei Maria da Penha, ao proibir cautelarmente que o agressor freqüente determinados lugares, naturalmente aqueles também freqüentados pela ofendida, foi o de preservar a integridade física e psicológica desta última, no intuito de fazer cessar toda e qualquer vigilância constante e perseguição contumaz pelo agressor, e, inclusive, obstar outra investida violenta para satisfação de nova empreitada criminosa.
Mas, ao contrário do que se possa depreender de uma apressada leitura do Art. 313, Inciso IV, do CPP, a violação do Art. 22, Inciso III, “c”, da Lei Maria da Penha – proibição de freqüentar determinados lugares – não deve importar na imediata e incondicional prisão preventiva do agressor. E a razão para esse comedimento é expressa, qual seja, o caput, do Art. 313, do CPP, determina que “em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior”, será admitida a decretação da prisão preventiva pelo inadimplemento de medidas protetivas urgência.
E o “artigo anterior” a que se refere o dispositivo processual codificado, o Art. 312, busca acautelar os seguintes bens jurídicos ao preconizar a medida extrema da prisão preventiva do agressor, in litteris:
“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”.
É cediço que o vetusto Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de Outubro de 1941, que criou o já desbotado Código de Processo Penal, não é instrumento legal afinado com a questão da vitimologia no processo penal brasileiro, e, assim, sem nenhuma surpresa, o novel Inciso IV, do Art. 313, do CPP, com a redação dada pela vanguardista Lei Maria da Penha, não guarda plena correlação ou pertinência temática com aqueles bens jurídicos arrolados pelo Art. 312, do CPP.
Quanto à ordem pública, sim, também é desejo da medida protetiva de urgência de proibição de freqüentação de determinados lugares que seja evitada a reiteração criminosa, para preservação da integridade física da ofendida. Os demais bens jurídicos previstos no Art. 312, do CPP – ordem econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal – serão de pouca ou quase nenhuma valia para a questão afeta à prisão preventiva nos crimes que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher.
Entretanto, Juízes de Direito, Promotores de Justiça e Defensores Públicos mergulhados com a problemática e aflitiva questão da violência doméstica e familiar contra a mulher sabem bem que, no dia-a-dia do Juizado e dos Núcleos de atendimento, o que mais desejado pela ofendida, após a ruptura de seu tumultuado e falido relacionamento, é o resgate e posterior preservação de sua saúde psicológica, com a depuração dos traumas, angústias e pesares vivenciados junto do agressor, alguns certamente insuperáveis.
A profilaxia universal para um relacionamento desastroso e amargo certamente é a conquista de um novo e outro amor, mesmo que efêmero ou seguido de muitos outros. A vida é assim. Como murmuravam os eternos Dick Farney e Lúcio Alves em Tereza da Praia: “amar é tão bom, tão bom!”.
Imagine-se tal cena funesta: após anos a fio de um relacionamento mal-sucedido, palco, ou melhor, ringue de diversos tapas e socos sofridos pela mulher, liberta pelo divórcio ou dissolução de sua união estável, durante um romântico jantar com o seu novo ou iminente amor, em pacato e discreto restaurante, entra solitariamente seu carrasco, emergido do Hades, sentando-se à mesa imediatamente ao lado, na cadeira, é claro, voltada para o semblante da recém-alforriada mulher.
Ninguém ousaria duvidar de que a atitude do agressor neste cenário, estrategicamente lânguida e passiva, seria fato atípico, penalmente impunível, constituindo-se exercício regular de um direito.
Acontece que a própria dicção do Art. 22, III, “c”, da Lei Maria da Penha, como visto, não busca tão-somente servir de garantia à ordem pública, ameaçada pela possível reiteração criminosa, mas, também, à busca do reequilíbrio mental da própria vítima, no intuito de fazer ilidir qualquer vigilância constante e perseguição contumaz perpetrada pelo agressor não entendedor de que “a fila anda”.
Mas o Art. 312, do CPP, ao qual o Art. 313, Inciso IV, faz expressa remissão para detonação da prisão preventiva do agressor, não possui entre seus bens juridicamente tutelados a preservação da integridade psicológica da mulher ofendida. E não se pode confundir todo e qualquer ato praticado pelo agressor que ocasione perturbação da saúde psicológica da mulher, precisamente nesses casos de violência doméstica e familiar, como ato que constitua violação da “garantia da ordem pública”.
Outrossim, a medida protetiva de urgência de proibição de freqüentação de determinados lugares, de natureza eminentemente cível, adotando a sistemática das cautelares do CPC de 1973, pode ser deferida em caráter preparatório, antes mesmo, assim, da deflagração da ação penal ou mesmo instauração de inquérito policial. Não estando ainda sujeita a prazo decadencial para sua manutenção no tempo, eis que destinada a assegurar os direitos humanos da mulher previstos na Lei Maria da Penha e ausente essa previsão legal restritiva. O que acaba por revelar a autonomia das medidas protetivas de urgência frente à clássica regra da acessoriedade das cautelares comuns previstas no CPC vigente.
No caso de medida protetiva de urgência de proibição de freqüentação de determinados lugares, deferida a título de cautelar preparatória, para que a ofendida possa avaliar da necessidade ou não de representar em desfavor de seu companheiro, como se cogitar da prisão preventiva do agressor, neste caso, por descumprimento dessa específica medida protetiva, se o Art. 312, do CPP, exige ainda a concomitante prova da existência do crime e indício suficiente de autoria? Lembre-se, na hipótese cogitada, de medida protetiva preparatória, sequer existe a lavratura de um Boletim de Ocorrência, sendo impossível se cogitar de existência de crime e indícios de sua autoria.
Poder-se-ia cogitar da hipótese de prisão em flagrante por crime de desobediência, que nada tem a ver com a questão da prisão preventiva. Mas nossos Tribunais Superiores repudiam a idéia da configuração do crime de desobediência quando alguma lei de conteúdo não penal comina penalidade administrativa, civil ou processual para o fato.
Enquanto durar este vácuo legislativo do Art. 312, do CPP, que ignora a questão da vitimologia, a situação peculiar da vítima e sua dor pessoal, parece que outra alternativa não restará ao intérprete dos dias atuais senão a de estender o conceito de garantia da ordem pública aos casos de preservação da integridade psicológica da ofendida, sob a perspectiva de se evitar não somente a prática reiterada de infrações penais, mas também de todo e qualquer ato que ocasione à mulher vítima de violência doméstica e familiar prejuízo à sua saúde psicológica e à autodeterminação.
Informações Sobre o Autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral
Defensor Público do Estado do Espírito Santo