Resumo: Trata dos efeitos da Súmula Vinculante 35 STF sobre o prazo impeditivo de cinco anos para nova Transação Penal e da questão da pena de multa e sua executoriedade.
Sumário: 1. Introdução. 2. Em que consiste a transação penal. 3. O vácuo legislativo quanto ao descumprimento do acordo transacionado e a polêmica para a solução dos casos concretos. 4. Os efeitos da súmula vinculante 35 STF sobre o óbice de nova transação por cinco anos e com relação à pena de multa acordada e não cumprida. 5. Conclusão. Referências
1-Introdução
A Lei 9.099/95 inaugura no Brasil um novo sistema de Justiça que revoluciona o tradicional modelo impositivo para erigir um sistema de consenso.
Dentre os vários institutos que procuram a solução consensuada dos conflitos criminais de menor potencial ofensivo destacam-se a composição civil de danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Neste trabalho será enfocada especificamente a transação penal e ainda mais pontualmente o problema surgido devido à lacuna legal quanto ao caso de descumprimento do quanto acordado no ato de transação entre o Ministério Público e o autor do fato. Ocorre que a Lei 9.099/95, no cumprimento do ditame constitucional do artigo 98, I, CF, estabeleceu, em seu artigo 76 e respectivos parágrafos, as regras para a Transação Penal. Não obstante, olvidou o legislador ordinário tratar sobre o caso em que o acordo feito em juízo seja descumprido pelo autor do fato. Essa lacuna levou a uma discussão doutrinária que se espraiou pelas decisões jurisprudenciais e acabou culminando com a edição da Súmula Vinculante 35 STF.
Pretende-se iniciar com uma definição da Transação Penal, passando por uma exposição do problema do vazio normativo supra mencionado e as diversas soluções apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência ao longo do tempo, chegando à edição da Súmula Vinculante 35 STF. Finalmente, objetiva-se analisar e deslindar a questão da situação em que a solução dada pela Súmula sobredita seja aplicada a um caso concreto e o destino do interregno de 5 anos proibitivo de nova Transação Penal previsto no artigo 76, § 2º., II, da Lei 9.099/95. Em suma responder à seguinte indagação: se o autor do fato descumpre a Transação Penal e sofre a aplicação das medidas determinadas na Súmula Vinculante 35 STF, extingue-se o prazo impeditivo de 5 anos para ter direito a nova transação ou o impedimento continua, inobstante o distrato operado?
Ao final serão retomadas as ideias e informações expostas, apresentando-se uma conclusão sobre o tema.
2-Em que consiste a transação penal?
Como já afirmado acima, a Transação Penal é um dos institutos consensuais despenalizadores previstos pela Lei 9.099/95 de acordo com a previsão constitucional do artigo 98, I, CF.
O próprio artigo 76, “caput”, da Lei 9.099/95 já permite vislumbrar claramente uma definição do instituto em estudo. Com base nesse dispositivo é possível afirmar que a Transação Penal consiste na propositura pelo Ministério Público de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, devidamente especificada na proposta. [1]
Demercian e Maluly em nada destoam disso ao afirmarem que a Transação Penal é uma “‘proposta’ do Ministério Público no sentido de se aplicar imediatamente uma sanção não privativa da liberdade, ou seja, restrição de direitos e multa”. [2]
No mesmo diapasão Batista e Fux apresentam a Transação Penal como a opção legislativa dada ao Ministério Público de, “na audiência preliminar, em vez de denunciar o autor do fato pelo ilícito praticado, propor-lhe a aplicação de uma pena menos severa, não – privativa de liberdade”. [3]
Já se sabe em que consiste a Transação Penal, mas resta indagar qual a sua natureza jurídica. Logo no primeiro parágrafo deste item já foi externada a convicção de que se trata de um instituto processual consensual despenalizador previsto pela Lei 9.099/95 com sustento constitucional.
Porém, há alguma divergência na doutrina sobre o tema.
Pedrosa traz à baila o pensamento de Paulo Roberto Alves Ramalho, exposto em palestra proferida na Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro e na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro. Para tal estudioso a “Transação” Penal não é propriamente uma “Transação”, tendo em vista que para a configuração de tal instituto mister se faz que as partes envolvidas façam “concessões mútuas”. O autor assim conclui mediante uma interdisciplinaridade com o Direito Civil. Para Ramalho, na impropriamente chamada “Transação” Penal somente há vantagens para o Estado, que ganha agilidade e economia, enquanto que o suposto autor do fato recebe uma pena. O próprio Pedrosa, após a apresentação do pensamento de Ramalho, manifesta sua discordância, considerando que a aproximação dos conceitos de “transação” nas áreas civil e penal ou processual penal não é viável. Afirma, outrossim que o instituto da Transação penal “consagra benefícios aos envolvidos em infrações penais de menor potencial ofensivo”, aproximando-se, por assim dizer, da visão ora defendida de que se trata de um instituto processual consensual despenalizador. [4]
Também Batista e Fux não enxergam qualquer unilateralidade no instituto da Transação Penal:
“Transação implica cada uma das partes interessadas ceder alguma coisa. No caso, o Ministério Público abre mão do direito de propor a ação e pleitear a condenação do autor do fato a uma pena de prisão. O autor do fato, do direito ao processo, com todas as garantias do devido processo legal.
Só aparentemente, no entanto, os dois perdem. Na realidade, ambos ganham: o Ministério Público, porque consegue fazer justiça, que é sua nobre missão constitucional, impondo ao autor do fato a pena justa para o caso; este último, porque recebe a pena menos severa possível na espécie, sem ser condenado e, portanto, sem que o fato praticado gere reincidência e, até mesmo, sem que possa ser comunicado a qualquer juiz que não seja do juizado especial”. [5]
Demercian e Maluly apresentam os pensamentos de Hermínio Alberto Marques Porto e Nelson Nery Júnior quando da apreciação do anteprojeto que culminou na Lei 9.099/95 em um artigo jurídico. Esses autores, com fulcro no sistema encontrável na legislação alemã, apresentam uma equiparação da Transação Penal à Denúncia. Em suma, entendem que o Promotor, ao não vislumbrar o arquivamento, forma sua convicção pela possibilidade de Denúncia e, mesmo sem sua formulação prévia, apresenta a proposta com base em sua potencialidade. É a potencialidade da Denúncia que enseja a proposta de Transação Penal com o fito de evitar a Denúncia em ato. [6] Inobstante as respeitáveis posições apresentadas, Demercian e Maluly ousam discordar para reafirmar, nos seguintes termos, as características de instituto processual consensual, desformalizador e despenalizador da Transação Penal:
“Reafirmamos: a transação não tem por objeto imediato deixar de punir o suposto autor de uma infração penal, mas sim a não – propositura da ação penal, evitando-se, de maneira secundária, os efeitos deletérios daí resultantes.” [7]
Finalmente, Mirabete afirma expressamente que a Transação penal nada mais é do que “uma das espécies de conciliação criadas pela Constituição Federal (art. 98, I)”. [8]
Dessa forma, é de se ratificar que a Transação Penal é vista majoritariamente como um instituto processual consensual, desformalizador e despenalizador trazido ao cenário jurídico brasileiro pela Lei 9.099/95 (artigo 76) com autorização constitucional prevista no artigo 98, I, CF. Não se trata de uma pena propriamente dita aplicada de forma impositiva e nem mesmo de uma Denúncia ou algo que se possa a isso equiparar. Releva lembrar aqui que não pode ser objeto de Transação Penal qualquer espécie de pena privativa de liberdade, bem como o fato de que a transação penal não constitui condenação, não gera reincidência, não significa confissão de culpa e também não implica em título executivo judicial para eventual ação civil “ex delicto”. Ademais, não pode ser imposta ao autor do fato, dependendo de um acordo, de uma concordância entre Ministério Público, Defensor e autor do fato quanto aos seus termos.
3-O vácuo legislativo quanto ao descumprimento do acordo transacionado e a polêmica para a solução dos casos concretos
O artigo 76 da Lei 9.099/95 regulou a Transação Penal, mas, infelizmente, o legislador esqueceu-se de tratar do caso em que o autor do fato firma o acordo com o Ministério Público e posteriormente não cumpre. À pergunta: o que fazer nesses casos? Não há resposta legal.
Coube então a discussão doutrinária e a solução casuística jurisprudencial dos eventos práticos ocorridos.
Algumas orientações são encontráveis sobre a temática:
a) Alguns propõem como solução a retomada do processo com a denúncia pelo Ministério Público. A argumentação é no sentido de que se pressupõe para a transação a existência de um acordo e um acordo somente se perfaz de forma bilateral. O não cumprimento do suposto acordo pelo autor do fato implica no reconhecimento de que, na verdade, a Transação Penal não se perfez. Não havendo Transação Penal, a própria lei indica que a próxima fase é o ofertar da Denúncia. Existe crítica a esse posicionamento sob a alegação de que a fase para a Denúncia já está preclusa, bem como que a sentença que homologa a Transação Penal já fez coisa julgada, sendo impossível retomar o andamento processual sem que haja previsão legal.
b) Outros falam na execução da pena restritiva de direitos ou multa, eis que a fase para a Denúncia já estaria superada. A crítica a essa solução seria a dificuldade para a execução efetiva, especialmente das obrigações de fazer.
c) Há até mesmo quem tenha advogado a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade por aplicação do artigo 44, § 4º., CP. Essa é uma opção totalmente inviável e absurda. Em primeiro lugar se a pena acordada for de multa é vedada sua conversão em privação de liberdade, seja pela proibição constitucional e convencional da prisão por dívida (artigo 5º., LXVII, CF c/c artigo 7º., item 7, do Pacto de São José da Costa Rica), seja pelo próprio Código Penal que recebeu nova redação exatamente em função da obediência a tais ditames constitucionais e convencionais (vide artigo 51, CP que não mais admite a conversão da pena de multa em prisão, considerando-a “dívida de valor” à qual devem ser aplicadas “as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública”). Mas, será que não seria cabível a conversão em prisão das penas restritivas de direito com base no artigo 44, § 4º., CP que exatamente assim o determina? Também não. Embora o dispositivo em comento do Código Penal realmente preveja que em caso de descumprimento de penas restritivas de direito essas serão convertidas em privativas de liberdade, é preciso atentar que o artigo 44, § 4º., CP se refere a penas impostas após um devido processo legal com sentença condenatória transitada em julgado e não a “penas” acordadas em sede de Transação Penal. Portanto, o dispositivo enfocado é claramente defeso para o caso sob análise. Não bastasse essa constatação, pode-se ainda aduzir que sua aplicação violaria o próprio sistema criado pela Lei 9.099/95 que somente permite a transação de penas restritivas de direito ou multa, jamais penas de prisão. Ora, a conversão funcionaria como uma espécie de transação reflexa de pena privativa de liberdade, o que é inadmissível.
d) Finalmente vem a tese que se sustente no “non liquet”, ou seja, na sugestão da inércia diante da lacuna legal. Nesse passo o processo não poderia ser retomado por falta de previsão legal; a execução da pena, além de difícil também careceria de regulamentação legal, não se sabendo inclusive quem seria o legitimado ativo para sua promoção; por derradeiro a hipótese da conversão em prisão seria inviável porque inconstitucional, inconvencional e contrária aos próprios desígnios da Lei 9.099/95. Portanto, segundo esse entendimento, o caso de descumprimento da pena restritiva de direitos acordada fica sem solução até que o legislador a apresente formalmente.
Em meio a essas orientações, Karam, por exemplo, aponta para que a pena acordada de multa, em caso de não pagamento, seja devidamente executada como dívida de valor pela Fazenda Pública, nos estritos termos do artigo 51, CP. Doutra banda, quanto à pena restritiva de direitos, a autora indica a inexistência de mecanismos, seja na Lei 9.099/95, seja no Código Penal ou Processual Penal, para a sua execução de forma que nada poderia ser feito, até que o legislador regule a matéria. [9]
Mirabete corrobora a execução da pena de multa, mas adere ao entendimento esdrúxulo da conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade. [10]
Em obra conjunta, Jung, Guaragni, Fischer e Kuehne, expõem o entendimento de Antonio Carlos Santoro Filho para quem a Transação Penal tem natureza jurídica de “negócio jurídico civil, firmado entre o Ministério Público e o autor do fato”. Dessa maneira e não tendo carga condenatória nem impondo pena propriamente dita, mas somente homologando um acordo, formaria um “título executivo judicial”, excluindo o processo criminal e extinguindo a punibilidade do agente pela preclusão [11] “do direito de propor ação penal”. Obviamente este autor se filia à executividade do título judicial, seja da multa, seja da pena restritiva de direitos. [12]
Oliveira indica decisões do STF a respeito do tema e afirma que a sentença é “um termo de homologação de acordo”, sendo “automaticamente desconstituída quando o autor do fato descumpre qualquer termo da transação”. Afasta, portanto, a conversão em pena privativa de liberdade e indica como único caminho a oferta da Denúncia pelo Ministério Público. [13]
Discordando da possibilidade de oferta da Denúncia em caso de descumprimento, Grinover, Gomes Filho, Fernandes e Gomes, em obra conjunta, afirmam que a sentença homologatória da Transação Penal gera título executivo judicial que, em caso de descumprimento pelo autor do fato, nada mais pode acarretar, senão sua execução de acordo com a lei. [14]
Por seu turno Tourinho Filho entende que a lacuna legal obriga o Ministério Público a condicionar em sua proposta de pena restritiva de direitos à sua conversão em multa no caso de não cumprimento. Doutra forma estaria o operador do direito de mãos atadas devido ao silencio legislativo. Já com a conversão convencionada na proposta, a multa poderia ser executada nos estritos termos do artigo 51, CP. [15]
A jurisprudência pátria também se envolveu com o tema, gerando muita controvérsia. Rumando diretamente para os Tribunais Superiores, é fato que o STJ inicialmente firmou posição no sentido de que “a sentença homologatória da transação penal possuía eficácia de coisa julgada formal e material”. Dessa forma não seria viável a ulterior proposição de processo penal acaso descumprido o acordo homologado. Ocorre que o STF reconheceu repercussão geral do tema e julgou o Recurso Extraordinário 602.072, decidindo que o não cumprimento do acordo possibilitaria o oferecimento da denúncia e seguimento dos demais atos processuais. Sob influência desse “decisum” paradigmático, o STJ, no julgamento do HC 29.435, passou a também admitir o oferecimento de denúncia e seguimento do processo quando do descumprimento ao acordo homologado. [16]
Um posicionamento jurisprudencial definitivo sobre o assunto é assentado com o advento da Súmula Vinculante STF n. 35, redigida nos seguintes termos:
“A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/95 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”.
Não há outra conclusão a que chegar a não ser a de que predomina hoje o entendimento de que o descumprimento do acordo pelo autor do fato pode submetê-lo à Denúncia e seguimento do Processo Penal respectivo. Em termos jurisprudenciais isso acaba sendo pacificado pelos efeitos da Súmula Vinculante 35 STF. Pode ainda persistir na doutrina a discussão, mas mesmo esta vai se esvaziando de conteúdo em face da aplicação sumular vinculante.
4-Os efeitos da súmula vinculante 35 stf sobre o óbice de nova transação por cinco anos e com relação à pena de multa acordada e não cumprida
Em sua regulamentação da Transação Penal o artigo 76, § 2º., II, da Lei 9.099/95 veda o direito à proposta a todo aquele que tiver sido beneficiado anteriormente por outra transação no prazo de cinco anos.
A questão que se impõe à vista do enunciado da Súmula Vinculante 35 STF é a seguinte:
A partir do momento em que fica estabelecido que aquele que transaciona, mas não cumpre as obrigações é passível de ser denunciado e processado normalmente no seguimento, desconstituindo-se a homologação anterior, essa transação que não se aperfeiçoou é hábil a continuar impedindo o direito a nova proposta em casos ulteriores pelo período de cinco anos?
A solução, por uma interpretação gramatical do texto do artigo 76, § 2º., II, da Lei dos Juizados Especiais Criminais, é a de que essa transação abortada não tem força para impedir nova proposta no interregno temporal legalmente determinado. Isso porque a lei diz que o agente fica impedido quando “beneficiado” por transação anterior. Ora, a rigor, não se aperfeiçoando o acordado, a transação não chega a “beneficiar” o autor do fato de modo algum, pois que responderá normalmente ao processo tal qual alguém que nunca houvesse transacionado. Assim sendo, a princípio, nada impediria que num ulterior caso, ainda que dentro do prazo de cinco anos, seja o agente beneficiado com nova proposta.
Contudo, alguns cuidados devem ser tomados com relação a essa conclusão. Acontece que há mais dois incisos impeditivos da proposta no § 2º., do artigo 76 em estudo, sendo fato que cada um desses impedimentos é independente e não necessariamente cumulativo.
Em primeiro lugar o inciso I veda a transação para aquele que tiver sido “condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva”. Portanto, se por acaso o indivíduo vier a ser condenado a pena privativa de liberdade, por exemplo, por aquele crime pelo qual foi denunciado ao não cumprir a transação, transitando em julgado tal sentença, deixará de fazer jus ao benefício. Além desse limite objetivo, há ainda o inciso III que indica impedimentos subjetivos à concessão da transação com base nos antecedentes, conduta social e personalidade do agente, bem como levando em conta os motivos e circunstâncias da infração. Se em virtude desses fatores a transação se mostrar como uma reação insuficiente, também não poderá o autor do fato ser beneficiado. E neste ponto, o fato de haver descumprido anteriormente uma transação certamente não é um bom indicador com relação à sua personalidade e conduta social, assim como com referência à suficiência da medida.
Cabe agora abordar a questão da pena de multa transacionada e não cumprida. Sabe-se que a multa pode ser executada nos termos do artigo 51, CP. Mas, com o advento da Súmula Vinculante 35 STF, determinando o seguimento com Denúncia, isso ainda seria viável?
Podem-se vislumbrar duas posições a respeito:
a) A pena de multa seria uma exceção ao teor da Súmula Vinculante 35 STF, pois que passível de execução nos termos do artigo 51, CP.
b) A Súmula Vinculante 35 STF não faz qualquer distinção entre o acordo descumprido consistente em pena restritiva de direitos ou multa, de modo que a sanção processual para o descumprimento em todos os casos, indistintamente, deve ser a formulação da Denúncia respectiva e o seguimentos do processo.
A alternativa “b” acima arrolada parece ser a mais coerente com o teor da Súmula Vinculante em estudo, pois que acabou o STF colmatando uma lacuna da Lei 9.099/95 e dando uma solução geral para todos os casos de descumprimento da transação penal, qual seja, a retomada do processo com a Denúncia. Parece que doravante o artigo 51, CP deve ser limitado à execução de penas de multa impostas por sentença condenatória transitada em julgado e não para multas acordadas e não pagas oriundas de Transação Penal.
Apesar de a Lei 9.099 ter sido promulgada em 1995 e desde logo apontada a lacuna respeitante ao descumprimento da Transação Penal, fato é que o legislador, durante todos esses anos jamais se desincumbiu de sua tarefa de colmatar o vácuo deixado. Isso acabou gerando todas as celeumas expostas neste texto e culminou com a atuação do STF, expedindo a Súmula Vinculante 35, a qual acaba pondo um fim à questão, com a opção por uma das soluções preconizadas pela doutrina.
Parece que a solução encontrada pelo STF é realmente a melhor. Como visto a conversão da pena transacionada em privativa de liberdade seria totalmente inviável e até absurda. A execução encontraria óbices legais e práticos na maioria dos casos, especialmente no que tange às penas restritivas de direito. Finalmente declarar o “non liquet” é também algo insustentável juridicamente.
Sobre este último ponto (o “non liquet”) é sempre bom lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto – Lei 4.657/42 com nova redação dada pela Lei 12.376/2010), estabelece em seu artigo 4º. que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Essa normativa deixa inconteste que não é dado ao Judiciário esquivar-se de sua função de aplicar o Direito ao caso concreto sob a alegação de inexistência de norma expressa. Essa regra é prevista em muitos ordenamentos jurídicos que repudiam o “non liquet”, tais como Argentina, Áustria, Chile, China, Colômbia, Equador, Espanha, França, Holanda, Honduras, Itália, México, Portugal, Peru, Suíça, Uruguai e Venezuela. [17]
Afinal, é de trivial conhecimento que a lei é (ao menos no sistema romano – germânico a que somos afetos) a principal fonte do Direito, mas não é a única, encontrando-se ao seu lado a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito e também a jurisprudência e a doutrina. [18]
E o Direito no mundo da vida lida com situações que não permitem uma suspensão do juízo ou a inércia diante do conflito submetido à jurisdição. Uma solução deve sempre ser dada mesmo nos chamados “hard cases” (“casos difíceis”) para os quais não há precedentes ou uma regulamentação exata preformatada na lei. O Direito é uma ciência prática que não admite a falta de soluções. Sempre é necessário haver uma resposta, ainda que não seja a melhor. O mundo jurídico exige respostas e não pode se contentar com o “non liquet”. Del Vecchio disserta bem sobre esse tema:
“Nenhum argumento é tão adequado para mostrar a natureza eminentemente prática do direito e sua plena e perfeita aderência à vida, como o seguinte: não há relação alguma entre os homens, não há controvérsia possível, por mais complicada e imprevista que seja, que não admita e exija uma solução jurídica certa. As dúvidas e incertezas podem persistir durante largo tempo no campo teórico. Todos os ramos do saber e mesmo a jurisprudência como ciência teórica, oferecem exemplos de questões debatidas durante séculos, e apesar disso não se admite que sejam insolúveis no dia a dia forense. A pergunta onde está o direito? Qual o limite do meu direito e do direito do outro? Deve em todo caso concreto ser respondida. Essa resposta, sem dúvida, não é infalível, mas é praticamente definida”. [19]
E prossegue em nota de rodapé, afirmando que isso não é fruto de uma suposta “megalomania jurídica” advogada por Kantorowicz:
“Se o biólogo, o filólogo, o historiador confessam não haver resolvido todos os problemas que suas respectivas ciências apresentam, isso não se deve a que sejam mais modestos que o jurista (como aponta Kantorowicz), senão à circunstância de que os limites das dúvidas do saber teórico não suspendem o curso da vida. No entanto, ao contrário, quando se trata da Ciência Jurídica, que regula as ações humanas, a ciência se confunde de certo modo com o curso necessariamente contínuo de tais ações e não pode, por conseguinte, deixar de acompanhá-las com suas decisões, que têm unicamente um valor prático. Por isso, se é certo que também a ciência jurídica tem problemas que no campo teórico comportam discussões seculares, podendo ser debatidas ‘ad infinitum’, todavia, em toda nova controvérsia, ainda que se abarque questões cientificamente obscuras, há que lograr-se sempre uma sentença praticamente definitiva”. [20]
O que ocorreu no caso em estudo foi que o STF fez a sua tarefa no sentido de dar uma solução à lacuna legal, mediante a expedição da Súmula Vinculante 35, cumprindo a missão do Direito ou de “dizer o Direito”, enquanto atividade de uma Ciência Prática que precisa responder aos apelos do dia a dia do mundo dinâmico da vida e não pode esperar em berço esplêndido a boa vontade de um legislador inerte.
5-Conclusão
Versou o presente trabalho sobre a Súmula Vinculante 35 STF que determina que, em caso de descumprimento da Transação Penal, deva o processo prosseguir com a respectiva Denúncia pelo Ministério Público. O tema é relevante na medida em que soluciona uma lacuna legislativa e, ao mesmo tempo, impõe duas indagações:
a)Qual sua influência na questão do lapso temporal impeditivo de nova transação por cinco anos?
b)A Súmula Vinculante em estudo também se aplica aos casos onde foi transacionada pena de multa?
Para situar melhor o problema, procedeu-se a um estudo da definição do instituto da Transação Penal na Lei 9.099/95, bem como sua natureza jurídica. Em seguida abordou-se com aprofundamento o tema da polêmica causa pelo vácuo legal deixado no caso de descumprimento do acordo transacionado, expondo-se as diversas correntes doutrinárias e jurisprudenciais que se desenvolveram ao longo dos anos, culminando em decisões do STF e STJ e na edição da Súmula Vinculante 35 STF.
Finalmente foram analisados os efeitos da Súmula Vinculante 35 STF com relação à questão do lapso temporal impeditivo de nova transação durante cinco anos e com referência ao acordo que comporta tão somente pena pecuniária.
Concluiu-se que o lapso de cinco anos não vigora mais a partir do momento em que a transação é tida como ineficaz, prosseguindo o processo, vez que o autor do fato não foi realmente “beneficiado” por ela, conforme consta da legislação. Por outro lado, não se pode olvidar que há outros impeditivos da transação, além da questão temporal, previstos no artigo 76, § 2º., I e III da Lei 9.099/95, os quais são independentes e devem sempre ser analisados em cada caso concreto submetido à jurisdição. Portanto, a princípio, não vingando a transação devido ao descumprimento de seus termos pelo autor do fato nada impede que seja novamente beneficiado, mesmo antes de passados cinco anos. Outra questão deslindada foi o problema da pena de multa que não é mencionada expressamente na Súmula Vinculante em estudo e que é passível de execução em caso de inadimplemento, nos termos do artigo 51, CP. Sobre o tema chegou-se à conclusão de que são possíveis duas interpretações, uma que aponta a penalidade de multa como uma exceção à Súmula Vinculante, permitindo a solução da execução e outra advogando uma visão ampla da Súmula Vinculante, abrangendo quaisquer casos, inclusive de pena de multa, de descumprimento da transação. Optou-se, tendo em vista a redação aberta da Súmula Vinculante, pela segunda interpretação, de modo que o disposto no artigo 51, CP voltaria a ter aplicação tão somente para os casos de penas pecuniárias oriundas de condenações por sentenças transitadas em julgado.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.