Surgimento e evolução do direito à intimidade no contexto histórico

O direito à intimidade
deriva dos direitos da personalidade, sendo este parte integrante dos direitos
ou garantias fundamentais. Evidencia-se, neste momento, a necessidade de
localizar historicamente a origem destes, para facilitar o estudo da evolução do
direito à intimidade.

O surgimento das garantias
fundamentais é incerto e impreciso. Pode-se, porém, ter-se uma idéia do
nascimento, ainda que primitivo, dos direitos e deveres do homem. [1]

Diversos estudiosos vêem
como provável primeira manifestação de tentativa de defesa dos direitos
individuais nas civilizações mais antigas, como se pode observar, na síntese do
autor Alexandre de Moraes:

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“A
origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito e
Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos
para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hamurabi (1690 a.C.)
talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direito comuns a todos
os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família,
prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes. A
influência filosófica-religiosa nos direitos do homem pôde ser sentida com a
propagação das idéias de Buda, basicamente sobre a igualdade de todos os homens
(500 a.C.). Posteriormente, já de forma mais coordenada, porém com uma
concepção ainda muito diversa da atual, surgem na Grécia vários estudos sobre a
necessidade da igualdade e liberdade do homem, destacando-se as previsões de
participação política dos cidadãos (democracia direta de Péricles); a crença na
existência de um direito natural anterior e superior às leis escritas,
defendida no pensamento dos sofistas e estóicos (por exemplo, na obra Antígona
– 441 a.C. – Sófocles defende a existência de normas não escritas e imutáveis,
superiores aos direitos escritos do homem). Contudo, foi o Direito romano quem
estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos
individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das Doze Tábuas pode ser considerada
a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da
proteção aos direitos do cidadão”. [2]

Nesta
época, na qual a sociedade se organizava de forma primitiva, não havia
hierarquia política, nem opressão social, pois os bens eram comuns a todos, não
existindo apropriação privada. Contudo, a partir do momento em que se criou e
se desenvolveu a apropriação privada, surgiu também “uma forma social de
subordinação e opressão, pois o titular da propriedade, mormente da propriedade
territorial, impõe seu domínio e subordina tantos quantos se relacionem com a
coisa apropriada”. [3]

Conclui
José Afonso da Silva: “O Estado,
então, se forma como aparato necessário para sustentar esse sistema de
dominação. O homem, então, além dos empecilhos da natureza, viu-se diante das
opressões sociais e políticas, e sua história não é senão a história de lutas
para delas se libertar, e o vai conseguindo a duras penas”. [4]

No
decorrer de toda esta evolução, surgem “alguns antecedentes formais das declarações
de direitos, como o veto do tributo da plebe contra ações injustas dos
patrícios em Roma, a lei Valério Publícola proibindo penas corporais contra
cidadãos em certas situações até culminar com o Interdicto de Homine Libero Exhibendo, remoto antecedente do Habeas Corpus moderno”. [5]

O homem, quando na busca
pela liberdade, encontra uma grande contribuição tributada ao Cristianismo, [6]
pois ao se deparar com esta concepção religiosa, que se baseava na idéia de que
cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus, e considerava a igualdade
fundamental e natural entre todos os homens, adota tal conceito, reforçado mais
uma vez por uma relativa limitação do monarca durante a Idade Média. [7]

Do ponto de vista
prático, não houve demora em que ocorressem conquistas no campo dos direitos
individuais e fundamentais em face do Poder Monárquico.

E, tal ocorreu
quando os reis da Idade Média pactuaram com os seus súditos acordos mediante os
quais estes reconheciam o poder monárquico e aqueles faziam algumas concessões.

A partir destas restrições
ao poder do rei, originaram-se “os pactos, os forais e as cartas de franquias,
outorgantes da proteção de direitos reflexamente individuais, embora
diretamente grupais, estamentais, dentre os quais mencionam-se: o de León e Castela
(1188); o de Aragão (1265); o de Viscaia (1526) e o mais famoso entre estes, a
Magna Carta inglesa (1215-1225)”. [8]

Outros documentos de
relevância para o estudo das garantias individuais são a Mayflower Campact
de 1620, que garantia um governo limitado e também as Cartas de direitos e
liberdades das Colônias inglesas na América, como: Charter of New England,
1620; Charter of Massachusetts Bay de 1629; Charter of Maryland
de 1632; Charter of Connecticut de 1662; Charter of Rhode Island
de 1663; Charter of Carolina de 1663; Charter of Georgia de 1732,
Massachusetts Body of Liberties
de 1641; New York Charter of Liberties
de 1683 e Pennsylvania Charter os Privileges de 1701. [9]

Já na Inglaterra,
“elaboram-se cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais, como a
Magna Carta (1215-1225) que protegia essencialmente apenas os homens
livres, a Petition of Rights (1628) que requeria o reconhecimento de
direitos e liberdades para os súditos do Rei, o Habeas Corpus Amendment Act
(1769) que anulava as prisões arbitrárias e o Bill os Rights (1688), o
mais importante destas, pois submetia a monarquia à soberania popular,
transformando-a numa monarquia constitucional, e, sem esquecer do Act of
Settlement
(1707) que completa o conjunto de limitações ao poder monárquico
do período”. [10]

Assim, mister se faz
ressaltar que no século XVII foram feitas conquistas substanciais e
definitivas, contudo o surgimento das liberdades públicas tem como ponto de
referência duas fontes primordiais: o pensamento iluminista da França do século
XVIII e a Independência Americana.

Para Alexandre de Moraes, “com idêntica importância na
evolução dos direitos humanos encontramos a participação da Revolução dos
Estados Unidos da América, onde podemos citar os históricos documentos: Declaração
de Direitos de Virgínia, de 1776; Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América, 4-7-1776; Constituição dos Estados Unidos da América, de
17-9-1787”. [11]

A Constituição
norte-americana e suas dez primeiras emendas, com o objetivo de limitar o poder
do Estado, determinaram a separação dos poderes estatais e inúmeros direitos
humanos fundamentais. [12]

No entanto, deu-se em
França o marco histórico principal da normativização dos direitos humanos
fundamentais, com a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, [13]
que significou a efetivação dos direitos humanos e garantias fundamentais, [14]
sendo um “documento marcante do Estado Liberal, e que serviu de modelo às
declarações constitucionais de direitos do século passado e deste”. [15]

Outras contribuições foram
as Constituições francesas de 1791 e 1793, das quais, a primeira, encarregou-se
de criar novas formas de controle estatal. Porém, coube à segunda uma
regulamentação aprimorada dos direitos humanos fundamentais, consagrando a
liberdade, igualdade, segurança, propriedade, legalidade, livre acesso aos
cargos públicos, livre manifestação de pensamento, liberdade de imprensa,
presunção de inocência, devido processo legal, ampla defesa, proporcionalidade
entre delitos e penas, liberdade de profissão, direito de petição e direitos
políticos. [16]

Ocorre uma maior
efetivação dos direitos humanos fundamentais durante o constitucionalismo
liberal do século XIX, tendo como exemplos, a Constituição espanhola de 1812, a
Constituição portuguesa de 1822, a Constituição Belga de 1831 e a Declaração
francesa de 1848. [17]

Por outro lado, contra
esse individualismo extremo foram reconhecidos direitos em favor dos grupos
sociais, o que não se fazia nas primeiras declarações, passando-se a
reconhecer, paralelamente, ao individuo o direito de associação, inclusive como
garantia da própria liberdade individual.

Desta forma, no início do
século XX, surgiram constituições que marcam maior preocupação com os direitos
sociais, como a Constituição mexicana de 1917, a Constituição de Weimar de
1919, a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de
1918, a Constituição Soviética de 1918 e a Carta do Trabalho de 1927. [18]

E, de forma a consolidar
os direitos humanos, está a “Declaração universal dos Direitos Humanos, de 10
de dezembro de 1948”, [19]
tendo como “objetivos fundamentais a certeza dos direitos, a tutela dos
direitos; a possibilidade dos direitos”. [20]

Como se pode notar, a
evolução dos direitos humanos, em geral, foi lenta e provêm das sociedades mais
antigas. O mesmo ocorre, especificadamente, com o direito à intimidade. Segundo
Michele Keiko Mori, “a noção de
intimidade surgiu com o nascimento da burguesia, [21]
como classe social”. [22]

Porém, não se sabe ao
certo o início da proteção à intimidade nos tribunais. De acordo com a autora,
“judicialmente, segundo Milton Fernandes,
não há certeza quanto à primeira vez em que a proteção à vida privada foi
acolhida. É comum se fazer referência à divulgação do retrato de uma famosa
atriz em seu leito mortuário”. [23]

Contudo, a efetivação do
direito à intimidade se dá nos Estados Unidos, em 15/12/1890, com a publicação
do artigo “The Right to Privacy”, na Havard Law Rewiew, de
autoria de Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis, o chamado “Ensaio de
WARREN e BRANDEIS
”. Este se consagrou como um meio de tutela da intimidade
e fonte para a doutrina. [24]

Mais
uma vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, manifestou o direito à
intimidade e à vida privada, em seu artigo XII: “Ninguém será sujeito a
interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito
à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

 

Notas:

[1] BICUDO, Hélio. Direitos Humanos e sua proteção. 1.
ed. São Paulo: FDT, 1997, p. 12:

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“Na abordagem do tema ‘direitos humanos’ convém, antes de mais, buscar
na história dos povos comportamentos que pouco a pouco, em verdade, muito
lentamente, forma delineando os contornos de direitos e deveres que, embora
inerentes à pessoa, não encontravam qualquer respaldo nas regras de convivência
social. Só muito mais tarde é que começaram a aparecer em normas codificadas.

Na Grécia, como também na Itália, a unidade da vida política durante a
época clássica foi dada pela cidade. O homem era um ‘animal político’ na medida
em que participava de uma polis; e ainda que a cidade pudesse estar contida em
uma unidade mais ampla – como aconteceu no Império Macedônico e depois no
Império Romano – ela não era absorvida, permanecendo como núcleo de lealdade e
centro de um sistema de governo, atraindo a devoção e inspirando a munificência
dos cidadãos. De um certo modo, as suas funções continuavam a ser exercidas ao
lado do esquema mais amplo que a explorava”.

[2] MORAES,
Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: comentários aos arts. 1º e 5º
da Constituição da República Federativa do Brasil
. 2. ed. São Paulo: Atlas,
1998, p. 24/25.

[3] SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000, p. 150.

[4] SILVA, Idem, ibidem.

[5] SILVA, Idem, ibidem.

[6] BICUDO, op. cit., p.25:

“Podemos encontrar como ponto de partida decisivo nessa linha de atuação
quando o papa Leão XIII, examinando em suas encíclicas os problemas da formação
do estado moderno, começa a tratar mais abertamente dos direitos fundamentais
do homem e em particular do direito dos cidadãos e uma existência política” Cf.
MORAES, op. cit., p. 25.

[7] SILVA, op. cit., p. 150/151:

“Foi, no entanto, no bojo da Idade Média que surgiram os antecedentes
mais diretos das declarações de direitos. Para tanto contribui a teoria do
direito natural que condicionou o aparecimento do princípio das leis
fundamentais do Reino limitadoras do poder do monarca, assim como o conjunto de
princípios que se chamou humanismo”.

[8] SILVA, idem, p. 151.

[9] SILVA, Idem, ibidem.

[10] SILVA, Idem, ibidem, Cf. MORAES, op. cit., p. 25.

[11] MORAES, Obra citada, p. 27, Cf. SILVA, Obra citada,
p. 153/154.

[12] MORAES, Alexandre de. Idem, p. 28.

[13] MORI, Michele
Keiko. Direito à Intimidade versus
Informática
. 1. ed. Curitiba: Juruá,
2001, p. 17:

“que proclamava o Homem livre, numa sociedade livre,
segundo os postulados do direito natural”.

[14] MORAES, op. cit., p.28:

“A consagração normativa dos direitos humanos
fundamentais, porém, coube à França, quando, em 26-8-1789, a Assembléia
Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com 17
artigos. Dentre as inúmeras importantíssimas previsões, podemos destacar os
seguintes direito humanos fundamentais: princípio da igualdade, liberdade,
propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio
da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal,
princípio da presunção da inocência; liberdade religiosa, livre manifestação de
pensamento”.

[15] SILVA, op. cit., p. 157.

[16] MORAES, Idem, p.28.

[17] MORAES, Idem, p.28/29.

[18]
MORAES, Idem, p. 29/32.

[19] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves; GRINOVER, Ada
Pellegrini; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Liberdades Públicas (parte geral).
São Paulo: Saraiva, 1978, p. 79.

[20].FERREIRA FILHO; GRINOVER; FERRAZ, Idem, p. 80.

[21] DONEDA, Danilo César Maganhoto. Considerações
iniciais sobre os bancos de dados infomatizados e o direito à privacidade
.
In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 113 apud MORI, op. cit., p. 13:

“Diversas menções à privacidade podem ser encontradas na Bíblia, em
textos gregos clássicos e mesmo da china antiga, enfocando basicamente o
direito, ou então a necessidade da solidão. Na Inglaterra do século XVII
estabeleceu-se o princípio da inviolabilidade de domicílio – man´s house is
his castle
, que iria dar origem à tutela de alguns aspectos da vida privada
do homem. Ainda na época feudal, a casa da família passou a representar um espaço
de intimidade, proporcionado a separação da vida da comuna e indo ao encontro
de interesses pessoais – a intimidade do sono, do almoço, do ritual religioso,
talvez até do pensamento; e com a família burguesa a idéia do ensinamento em
casa e de cada indivíduo em seu quarto passou a ser vista como condição de
habitabilidade. Mesmo assim não foi o homem do medievo, por demais integrado a
uma vida cotidiana de caráter coletivista, que desejou o isolamento. No outono
da Idade Média surgia o homem burguês que, juntamente com sua necessidade da
propriedade privada, precisava também de uma vida privada. O burguês passou a
se isolar dentro de sua própria classe, dentro de sua própria casa – dentro de
sua propriedade”.

[22] MORI, idem, ibidem.

[23] MORI, op.
cit., p. 14:

“Da decisão constou que, por maior que seja um artista, por histórico
que seja um grande homem, tem sua vida privada distinta da pública, seu lar
separado da cena e do fórum”.

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[24]MORI, idem, p. 16.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Bianca Hämmerle Avelar

 

Acadêmica de Direito, Faculdade de Direito de Curitiba.

 


 

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