Teoria e caso concreto: Análise do posicionamento do STF à luz alternativa de R. Lyra Filho, L. A. Warat e A. C. Wolkmer

Resumo: O trabalho a seguir analisa um caso jurídico real em que um índio tenta a legitimação judicial para defender o direito coletivo de sua tribo. Tenta-se, a partir daí, adaptar o hard case em questão a três diferentes teorias de Direito formuladas por autores brasileiros de destaque – A. C. Wolkmer, L. A. Warat e R. Lyra Filho –, procurando identificar as conexões entre teoria e realidade a fim de entender e elaborar uma crítica acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal.[1]

Palavras-chave: Brasil, crítica, direito, índio.

Abstract: This paper examines a real legal case in which a native attempts to legitimize the right to defend the collective rights of his indigenous tribe, trying to conform it with three different theories of law formulated by important Brazilian authors, A. C. Wolkmer, L. A. Warat and R. Lyra Filho. The goal is to identify the links between theory and reality in order to understand and develop a critical analysis of the decision of the Supreme Federal Court.

Keywords: Brazil, criticism, law, indigenous.

Sumário: 1. Introdução: o caso; 2. A proposta antidogmática de R. Lyra Filho; 3. A carnavalização do Direito por L. A. Warat; 4. A. C. Wolkmer e a pluralização do direito; 5. Conclusão; 6. Notas.

1. Introdução: o caso

Analisar-se-á a decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em consonância com acórdão do Superior Tribunal de Justiça, negou recurso a um indígena que buscava judicialmente legitimar o direito de defesa da sua tribo, a qual julgava prejudicada por um ato legislativo. O recorrente alegou sua condição de cacique da etnia Tembé, e, nessa qualidade, havia impetrado mandado de segurança com o objetivo de suspender os efeitos de uma portaria baixada pelo Ministro da Saúde que dispõe sobre mecanismos governamentais que atuam junto aos povos indígenas na área da saúde.

A defesa sustentou que sua legitimidade para a causa emana do art. 232 da Constituição Brasileira, que prega que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. O referido preceito constitucional configuraria, portanto, exceção ao inciso LXX do art. 5º, que contém o rol de legitimados para o mandado de segurança coletivo. Foi arguido que a mencionada portaria ministerial deixa as comunidades indígenas à mercê de políticas municipais, enfraquecendo o subsistema de saúde indígena ao violar os princípios da integralidade, universalidade e igualdade. Por esses motivos, pediu que o STF julgasse a inconstitucionalidade da portaria.

Na ementa do acórdão do STJ constata-se ausência de comprovação de ferimento do direito líquido e certo. O art. 5º, LXX, da Constituição restringe a legitimação ativa em caso de mandado de segurança em que se discute direito coletivo a partido político com representação no Congresso Nacional e a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um ano, em defesa de interesses de seus membros ou associados. A Súmula 101/STF assegura que o mandado de segurança não substitui a ação popular, enquanto a Súmula 266/STF considera inviável o mandado de segurança contra lei em tese. Assim, o agravo regimental não foi provido. O ministro-relator do STF, em sua decisão, concorda no caráter especial do art. 232 em relação ao inciso LXX do art. 5º, mas nega o recurso com base no que preconiza a Súmula 266/STF. O STJ já havia similarmente admitido a relevante preocupação social que o mandado de segurança evoca, embora insuficiente para demonstrar a existência de direito dito líquido e certo.

2. A proposta antidogmática de R. Lyra Filho

Lyra Filho é bem claro ao afirmar que incorre em erro todo aquele que pretende perpetuar o Direito dogmático. Toda sua argumentação na obra Para Um Direito Sem Dogmas gira em torno dessa crítica feita pelo autor carioca à cristalização do Direito nos códigos e à manutenção desse pensamento pelo ensino jurídico de uma maneira geral. Esse sacramento das normas, para Lyra Filho, serve de instrumentos para as classes dominantes eternizarem seu controle sobre as demais, assim como ocorreu com a nobreza cristã no Feudalismo e a burguesia no século XIX. Ele propõe uma renovação do Direito por completo, a superação do paradigma das verdades incontestáveis e a ascensão de um Direito mais próximo da realidade, que foque no homem e em seus problemas e rechace o que ele chama de “fetichismo da lei”.

Um dogma, etimologicamente falando, trata-se de uma verdade incontestável, algo imutável, intocável, uma regra, uma tese, ou uma lei; contudo, no campo do Direito, esse conceito, mais próximo do encontrado nos dicionários é secundário. Lyra Filho assume que o caráter semiológico – abrangente da gama dos significados, representações – é bem mais importante para designar o que vem a ser um dogma no campo do Direito. Nesse campo, dogmatismo representa a tendência a enuclear-se em torno das idéias de teoria assentes ou práxis obrigatória, amparadas no argumento de autoridade ou na determinação do poder, sem qualquer apoio ou experimento ou demonstração[2].

O dogma sempre foi assunto recorrente à Filosofia. Desde a Grécia Antiga, onde já se tentava difundir uma centralização das decisões e a formalização destas, se discutem a validade de verdades absolutas. Platão já contrapunha a idéia dos céticos que propunham a epoché, isto é, a operação que suspende o assentimento e propõe o reexame crítico[3]. Em Kant, o dogma assume um novo patamar. O filósofo de Koenigsberg critica veementemente os dogmas metafísicos para acatar um dogmatismo racional, que prega a aceitação da ciência como verdade absoluta, dando a base para o desenvolvimento do positivismo de Comte. Kant ainda propõe, já no campo jurídico, uma separação entre os campos da Filosofia e do Direito. Essa distinção, para Lyra Filho, assumida bem à época das grandes revolução do fim do século XVIII e início do século XIX, é o arremate final da classe burguesa em ascensão, que pretendia deixar o direito justo a cargo de alguns filósofos inoperantes e sacramentar o direito positivo como aparelho do Estado, passível dos desmandos da classe que venha assumir o poder[4]. Embora não tenha dedicado nenhuma obra à sistematização de suas concepções acerca desse apartamento kantiano dos campos filosóficos e jurídicos em suas respectivas faculdades, e mais especificamente sobre o ensino jurídico, embora tenha produzido interessante sobre o material a pedido do Centro Acadêmico de Direito da UnB. Ele considera que o Direito que se ensina errado pode entender-se em pelo menos dois sentidos: como o ensino do Direito em forma errada e como errada concepção do Direito que se ensina. O primeiro se refere a um vício de metodologia, segundo ele, e o segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar[5].

R. Lyra Filho não esquece de dizer que crê que, mesmo hoje, ainda se está tão longe de superar o dogmatismo jurídico quanto na época feudal. Ele afirma com convicção que o Direito tal qual é praticado hoje é errado e está imerso de interesses maiores. Ele defenderá, como será visto mais a frente, uma mudança de foco, e uma aproximação entre o Direito e a realidade que o cerca. O caso escolhido para ser base desta peça é um exemplo claro desse distanciamento que Lyra Filho tanto critica. A decisão de não ceder o direito de participação jurídica ao cacique da etnia Tembé foi tomada com base principalmente nas súmulas 101 e 266 do STF, que pregam, respectivamente, que o mandato de segurança não substitui a ação popular e é incabível contra a lei em tese, já codificada. É bem característica, inclusive, a fala do ministro-relator do caso em sua decisão, ao concordar com o caráter especial do art. 232 – aquele que prega que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses” –, mas nega o recurso com base na já citada Súmula 266/STF, uma clara demonstração da elevação desta acima do “caráter especial” que o caso assume tomada sua situação de inserção social, isto é, o STF admite a relevante preocupação social que o episódio evoca, mas classifica como insuficiente para demonstrar a existência do Direito dito líquido e certo.

Fica claro nesse tipo de decisão a prevalência dos mesmos tipos de dominação presente à época feudal e iluminista, porém sob um novo arranjo. Lyra Filho acredita que, em comum, essas três épocas têm o modelo de sobreposição de uma classe à outra. No caso dos índios, é visível a prevalência da vontade da maioria sobre a da minoria, que deseja tem seus interesses esquecidos em função do estamento social mais privilegiado. Lyra Filho, nesse ponto, expõe sua veia socialista. Ele assegura que só por meio de revoluções o pensamento clássico é modificado; contudo, essas revoluções devem ser constantes (ele crê que só há pensamento em tempos de crise revolucionária: “é falha aquela filosofia que passa a remoer os grandes sistemas do passado[6]”), uma vez que a mesma burguesia revolucionária do século XIX hoje senta em cima do Direito para perpetuar seus ideias e interesses, como explica brilhantemente o intelectual Alexandre Araújo Costa:

“Em sua crítica aos positivismos, Lyra Filho reconheceu que a burguesia e seu jusnaturalismo foram revolucionários em um tempo, mas que esse caráter revolucionário se perdeu logo que as revoluções burguesas tiveram êxito.”[7]

Voltando novamente ao caso trabalhado, o Ministério da Saúde deseja intervir no subsistema de saúde dos indígenas da tribo Tembé, sem considerar que essa intervenção altera profundamente as relações internas da tribo, isto é, sem levar em conta os interesses reais daquela minoria, que é claramente prejudicada em função do que o Estado, de uma maneira geral, julga ser melhor pra ela. Lyra Filho propõe então, uma mudança ampla no Direito e nessa forma de julgar os casos. Sugere o uso do método dialético de interpretação jurídica.

O método dialético é oposto à subsunção ao texto da lei. Repudia completamente o Direito que apenas “copia” o código, e não cria sua situação de acordo com cada caso.

“Esse pensar dialético aproxima-se bastante da teoria hermenêutica de Gadamer[8], cuja influência Lyra admite expressamente em seus escritos. Tanto a hermenêutica quanto a dialética rejeitam a noção de verdade absoluta e imutável e valorizam a idéia de interpretação”.[9]

A principal mudança, logo, seria no modo de interpretar cada ocasião, e nos instrumentos que auxiliariam essa interpretação. Lyra Filho propõe que o foco seja alterado e passe a ser o homem e seus problemas, a fim de propiciar um desvencilhamento dos interesses classistas. Essa mudança, para Lyra, não pode ser parcial, como se propõe em algumas correntes, como o neopositivismo, por exemplo, que para ele é herdeiro do outro, e apenas transferiu seus escribas estatais para o judiciário, e depois para o executivo[10], com os decretos-leis e planos de governo, que no fundo são a mesma coisa, assim, ele propõe uma nova “revolução”, que liberte o Direito dos grilhões do dogma. Por fim, ele completa dizendo que o “sistema jurídico não é nunca uma abstração acadêmica; é criação viva, brotando no solo social e sob o impacto do subsolo em que repousa toda a estrutura[11]”, numa síntese de todo seu pensamento na obra Por Um Direito Sem Dogmas.

Pelo método de interpretação exposto por R. Lyra Filho, o caso teria outra solução. Caso abrissem um pouco mais a mente ao que defende o autor, os juízes do STF julgariam observando a realidade social da situação e veriam que os interesses da minoria – nessa conjuntura o direito de manter seu sistema de saúde isolado e o direito de entrar na justiça – também devem ser respeitados. Uma decisão que vise apenas a lei, e a interpretação fria desta decerto não seria a mais adequada, como é visível no caso em questão.

3. A carnavalização do Direito por L. A. Warat

Luis Alberto Warat não deixa de ter uma teoria acerca do Direito muito próxima da que defende Roberto Lyra Filho. A obra do argentino naturalizado brasileiro defende a carnavalização do Direito e sua pluralidade, em contraste com a castração que as normas, as leis e o códigos tentam impor. A fim de se fazer ainda mais claro, L. A. Warat utiliza a obra Dona Flor e seus dois maridos, do eminente escritor brasileiro Jorge Amado para metaforizar quase toda a extensão de sua compilação de textos mais importante, Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, com ênfase especial no texto A ciência Jurídica e seus dois maridos.

     “Talvez a volta ao mundo de Dona Flor, através de meu mundo de intenções, multiplique e dissemine as possibilidades de sua leitura. Metamorfoses de personagens que me permitirão valer-me deles como metáforas tutoras de minha versão de mundo, da magia dos significados que portam a sensibilidade, do Direito como expressão do amor e dos escribas da lei e sua alienada sabedoria.”[12]

Dona Flor, para Warat seria uma mulher que escapa do uno. “Mulher cabrocha que assume sem nenhuma vergonha a contradição e resiste ao poder de castração de toda a psicologia da unidade[13]”. Seu marido oficial, Teodoro, ainda para Warat, que diz estar além da cabeça de Jorge Amado para pensar tudo isso, conseguiu transformar o amor em obrigação, vivendo envolto em rituais burocráticos, como o casamento. Já Vadinho desconhece qualquer obrigação, anda nu pelas ruas Bahia e ignora o fato de que tenha morrido. Viveu intensamente, alegremente e de maneira despretensiosa. Foge a todos os intentos de castração.

A castração, ainda de acordo com Warat é, sobretudo, “a poda de um desejo […] é um modo de fechar nossos olhos, pelo pavor ao distinto, a tudo que não é conjuntamente verossímil e consagrado culturalmente[14]”. A vida de Teodoro, retomando a metáfora, é repleta de castração. Bem como o é o direito positivado. Warat então estabelece um paralelo entre o marido vivo de Dona Flor e o dogmatismo[15], ambos seguidores de padrões pré-estabelecidos e fechados a experiências novas. Vadinho surgiria nesse ponto como um “carnavalizador” da vida de Dona Flor (que nesse ponto já pode ser entendida como o Direito em si). Ele leva a vida de maneira mais leve, sem muitas amarradas e “solto”. Para Warat, o Direito deve ser mais como Vadinho (por quem o autor nutre sincera admiração), deve se livrar da castração que lhe impõe a norma e buscar a pluralidade na hora de resolver seus casos.

Se Warat tivesse acesso à decisão do STF em questão nesse trabalho, certamente diria que ela se aproxima muito mais da castração por ele criticada do que da carnavalização do Direito que ele defende. Por carnavalização, é bom que se explique, Warat não entende algo pejorativo, pelo contrário, vê como algo benéfico ao sistema jurídico. Warat, ao defender o estilo de vida de Vadinho, vê esse muito mais feliz que Teodoro. Segundo ele, “o homem castrado leva dentro de si uma criança insatisfeita[16]”. Logo, adotar o “método Teodoro” – homem mais morto que o próprio Vadinho – não é benéfico ao Direito. A decisão deve ser muito mais plural, e não restrita à lei e suas amarras. Voltando para a decisão do STF, Warat diria aos nobres juízes do STF que estes deveriam cair em campo antes de expressar suas decisões. Deveriam ver a realidade que cerca o caso, a situação dos indígenas, as conseqüências da intervenção do Ministério da Saúde no subsistema interno da tribo Tembé. Nessa defesa de Warat é que percebe-se mais claramente uma aproximação das teorias de Warat e Lyra Filho. Esse último chega inclusive a citar Warat em suas obras, porque aquele também defende que “é urgente uma alternativa […] para que se desarme a ideologia dominante[17]”. Ou seja, Warat defende a derrocada dos padrões estabelecidos do Direito e a ascensão de um Direito novo, carnavalizado, livre a novas fontes e, principalmente, plural.

4. A. C. Wolkmer e a pluralização do Direito

Seguindo na esteira do “plural” observado por Warat, uma análise do caso escolhido não passa incólume pela ótica do professor catarinense Antônio Carlos Wolkmer, principal nome da teoria do pluralismo jurídico no Brasil. Wolkmer traz uma proposta de Direito Comunitário, não identificado com o monismo jurídico[18]. Segundo ele, a validade e eficiência de tal Direito Comunitário “não se sujeita ao formalismo a-histórico das fontes tradicionais […], estão embasadas nos critérios de uma ‘nova legitimidade’ gerada a partir de valores, objetivos e interesses do todo comunitário […][19]”. Wolkmer é brilhante ao fazer um completo estudo na sua obra Pluralismo Jurídico sobre a emergência dos movimentos sociais e suas consequências ao Direito, que passa a lidar essas demandas minoritárias em polvorosa, tal qual é visto no caso do índio Tembé.

Os movimentos sociais, antes verticais – como que implorando, de baixo pra cima, a ajuda estatal –, agora se orientam comunitária e horizontalmente e não mais são conformados por aparatos institucionalizados como partidos políticos ou militâncias formais[20], mesmo que a institucionalização ainda seja, em certo grau, útil[21]. É o que se pode constatar concretamente: o índio entrou na justiça e carregou individualmente a bandeira da sua tribo, que possivelmente seria prejudicada pela portaria. Nota-se uma postura participativa[22] preocupada em assegurar o acesso à justiça e a ampliação da cidadania.

Apesar de todos os esforços da legislatura brasileira concernente ao direito indígena, a decisão do STF demonstra que essa fonte não estatal do Direito (o índio, detentor de uma cultura diferente) ainda não foi ouvida como deveria. Preso à uma norma, fica evidente a insuficiência do aparato jurídico estatal: calcado na lei (“a lei em tese”), nas fontes jurídicas tradicionais, nas banais formalidades que atravancam a busca real pelos direitos fundamentais. Aliás, a respeito disso, Wolkmer traz a comparação entre os movimentos sociais nos grandes centros capitalistas mundiais e nas nações periféricas, como o Brasil[23]. Aqui, o grito ainda é por demandas sociais básicas: no caso, o subsistema de saúde do índio, que a defesa teme ser enfraquecido pela portaria.

Wolkmer nos ensina:

“Parece claro […] que o problema das fontes do Direito numa sociedade determinada e historicamente concreta não está mais na priorização de regras técnico-formais e na completude de ordenações teórico-abstratas, porém na dialética de uma práxis do cotidiano e na materialização normativa comprometida com a dignidade de um novo sujeito social.” [grifo nosso][24]

Entender o novo sujeito social requer, para Wolkmer, uma transformação no entendimento de “sujeito”, que deve deixar de ser considerado, segundo a ultrapassada ótica liberal-racionalista, cognoscente a priori, para ser entendido como histórico-social[25]. O autor catarinense, entretanto e felizmente, não cai na armadilha da simplificação que pode ter implicações discriminatórias:

“[…] o “novo” e o “coletivo” não devem ser pensados em termos de identidades humanas que sempre existiram, segundo o critério de classe, etnia, sexo, idade, religião ou necessidade, mas em função da postura que permitiu que sujeitos inertes, dominados, submissos e espectadores passassem a sujeitos emancipados, participantes e criadores de sua própria história.”[26]

O índio, assim como o negro, a mulher, a criança, o idoso, etc. emerge na modernidade como entidade consciente de seu papel atual e de sua importância histórica, econômica e social. O índio tenta, segundo os métodos possíveis, fazer valer o seu direito, não só como um membro da cultura indígena, mas como uma voz que foi, por muito tempo, amordaçada pelo Estado pretensiosamente lógico-racional.

Assim, evoca-se o debate sobre um (possível?) novo ordenamento jurídico, paralelo ao Direito corrente (hegemônico), destinado aos índios e construído por eles e segundo suas próprias normas. Esse caráter de incompletude do ordenamento e visualização da lei como parcial e valorativa (e não neutra), discriminadora das minorias e escamoteadora de desigualdades é marcante nos teóricos da corrente brasileira do Direito Alternativo[27], ao qual Wolkmer pode ser associado.

5. Conclusão

Após lançar mão da teoria de três dos mais importantes teóricos jurídicos brasileiros, nota-se uma linha de pensamento comum, que pretende romper com amarras históricas do Direito hegemônico, dogmático, normativo-legalista, abstrato-teórico, lógico-racional, em prol de um novo Direito (ou do reconhecimento de um Direito que já deveria estar legitimado), em função de toda a situação social da qual o Brasil, como evidente exemplo de país periférico, padece.

Aproximando-se da decisão final do caso abordado, percebe-se a não correspondência entre tais teorias críticas do Direito e o Direito aplicado na prática. Primeiramente o STJ, e depois o STF, foram complacentes com um exacerbado apego à letra fria da lei através de uma hermenêutica mecanicista que ignorou o real sentido do Direito moderno, pelo menos nos países periféricos: garantir os direitos essenciais e fundamentais de todos os atores sociais, de modo a impulsionar a eliminação das desigualdades presentes nas relações pessoais brasileiras. As cortes superiores do Brasil, ao optarem pelo tecnicismo formal que só reflete uma desnecessária burocracia impeditiva do real acesso à justiça, comprovam essa arraigada tendência local de leis que são criadas e acabam vazias de significância, na medida em que não encontram lastro na práxis real, cotidiana e emancipadora, criando uma ilusão de ordenamento jurídico completo, abrangente e justo.

 

Notas:
 
[1] O trabalho teve orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa

[2] LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Fabris. 1980. p. 12

[3] LYRA FILHO, Roberto, op. cit.,. p. 12.

[4] LYRA FILHO, Roberto, op. cit., p. 22.

[5] SOUZA, Marcel Soares de; ALMEIDA, Marina Corrêa de. Da contradomática à práxis: duas contribuições para uma educação jurídica crítica. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca. Disponível em: http://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/150. Acesso em 13 de novembro de 2012. p. 201

[6] LYRA FILHO, Roberto, op cit., p. 30

[7] COSTA, Alexandre Araújo, Humanismo dialético: a filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho. Associação Arcos. Disponível em: http://www.arcos.org.br/artigos/humanismo-dialetico-a-filosofia-juridica-de-roberto-lyra-filho/. Acesso em: 13 de novembro de 2012, p. 2

[8] Hans-Georg Gadamer nasceu em Marburg, Alemanha e foi um filósofo considerado com um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica. Sua obra de maior impacto foi Verdade e Método. O cerne de sua teoria é explicar como escapar do círculo fechado das opiniões prévias e que a proposta é manter um constante interpretar até que os conceitos instituídos sejam substituídos por novos, mais adequados.

[9] COSTA, Alexandre Araújo, op cit., p. 2.

[10] LYRA FILHO, Roberto, op cit., p. 19.

[11] LYRA FILHO, Roberto, op cit., p. 35.

[12] WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Fundação Boiteux: Florianópolis, 2004. p. 62

[13] WARAT, Luis Alberto, op. cit., p. 62

[14] WARAT, Luis Alberto, op. cit., p. 63

[15] Warat não costuma usar esse termo em seus escritos. Está sendo utilizado nesta peça para facilitar a compreensão e o desenvolvimento da mesma.

[16] WARAT, Luis Alberto. op cit., p. 67

[17] LYRA FILHO, Roberto, op cit., p. 42

[18] ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é Direito Alternativo? Habitus: Florianópolis.

[19] WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Alfa Ômega: São Paulo, 2001. p. 157

[20] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 132-133

[21] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 143

[22] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 134

[23] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 125

[24] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 153

[25] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 236

[26] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 237

[27] WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p.132


Informações Sobre os Autores

Felipe Adriano Saraiva Lustosa Bezerra

Acadêmico da Universidade Federal do Piauí

Gabriel Vasconcelos

Acadêmico da Universidade Federal do Piauí


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