Desde do momento que ao Estado fora atribuído o poder-dever de solucionar os conflitos de interesses. Não se pode mais dissociar a ciência do Direito e a sua finalidade última, o que não é recente.
Não à toa, Erasmo de Rotterdam (na obra Elogio da Loucura), no início do século XVI, já observava, com ironia: "Os jurisconsultos rolam assiduamente a rocha de Sísifo[1], amontoando textos de leis sobre um assunto sem a mínima importância. Acumulando glosa sobre glosa, opinião sobre opinião, dão a impressão de que sua ciência é a mais difícil de todas".
A ciência do processo não pode deixar de dirimir os conflitos de interesses que é uma decorrência da natureza humana, por conta da sua essência gregária. Em verdade, o conflito de interesses é antes mesmo de ser um fenômeno processual, um sociológico.
Pode ser que os litigantes envolvidos até entrem em acordo, ou que um deles renuncie ao o direito que entende ser seu. Mas, pode ser que se segue a tal solução. Se assim for, qualquer dos interessados, poderá recorrer ao Estado-Juiz para que dê uma solução imparcial (porque proferida por alguém não envolvido no conflito) e dotada de força coercitiva.
Quando o envolvido no conflito procura o Judiciário, o processo tem início, é nesse momento que intervém a ciência do processo, cujo fim é perscrutar os mecanismos por meio dos quais o Estado-juiz intervirá na solução dos conflitos a ele levados.
Sem a possibilidade do processo e do recurso ao Judiciário prevaleceria a força bruta, a violência. E, parafraseando Rousseau: "convenhamos, pois, que a força não faz o direito e que não se é obrigado a obedecer senão aos poderes legítimos" (Na obra “Contrato Social”).
O processo civil é o ramo do Direito que contém as regras e os princípios que tratam da jurisdição civil, isto é, da aplicação da lei aos casos concretos, para a solução dos conflitos de interesses pelo Estado-Juiz.
O conflito entre sujeitos é condição necessária, mas não suficiente, para que incidam as normas do processo, que só são aplicáveis quando se recorre ao Judiciário, apresentando-se-lhe uma pretensão. Portanto, só quando há conflito posto em juízo.
Concluímos que o processo civil atua nos conflitos de interesses somados a pretensão que é levada ao Estado-juiz.
Fundamental é distinguir a relação de direito material da relação de direito processual. Até por sua geometria, pois a primeira é linear enquanto que a segunda é triangular sendo formada pelo autor e réu e o juiz.
No fundo, o Direito é um só, assim como o poder é uno e indivisível. Mas a ciência do Direito, influenciada pelos ideais aristotélicos, não se priva de dividi-lo em grupos, subgrupos, ramos e divisões.
O direito processual civil é um dos subgrupos do direito processual, dividido em processo civil e penal, aos quais poder-se-ia acrescentar o processo trabalhista.
Aliás, com o art. 15 do NCPC. Temos polêmicas e controvérsias a enfrentar.
É clássica a divisão entre os ramos de direito público e do direito privado. E, sabemos que o direito processual é ramo do direito público correspondente às coisas do Estado. Ao passo que o direito privado, pertence à utilidade das pessoas, na sua seara privada.
É verdade que se deu uma intensa publicização do Direito que se disseminou sobre os ramos do Direito Privado, realçando a função social de institutos como contrato, obrigações, responsabilidade civil, família e empresa.
Tem sido frequente as hipóteses de publicização de relações que sempre foram consideradas privadas, como vem acontecendo, por exemplo, no direito contratual ou nas relações de consumo.
Conclui-se que o processo pertence à categoria do direito público, tal como o direito constitucional, o administrativo, o tributário e o penal. E pertence ao direito público porque regula um tipo de relação jurídica na qual o Estado figura como um dos participantes: os princípios e normas que o compõem regem a atividade jurisdicional e a dos litigantes, frente à jurisdição.
Novamente se acentua a distinção entre a relação formada no processo, e aquela originada do conflito intersubjetivo. A relação civil entre duas pessoas pode ser privada. Mas, quando posta em juízo, forma uma nova, de cunho processual, que pertence ao direito público.
Assim, o direito material corresponde a um interesse primário. Enquanto que o direito processual corresponde ao interesse secundário que é o instrumento para fazer valer o direito material desrespeitado.
O processo civil é na dicção de um dos maiores processualistas brasileiros, Cândido Rangel Dinamarco, é resumidamente, técnica de solução imperativa de conflitos.
O direito processual é o conjunto de princípios e normas destinados a reger a solução de conflitos mediante o exercício do poder estatal.
No Estado de Direito é natural o exercício da jurisdição que se submete a um conjunto de regras jurídicas e princípios destinados ao mesmo tempo a assegurar a efetividade dos resultados (tutela jurisdicional), a permitir a participação dos interessados pelos meios mais racionais e a definir e delimitar a atuação dos juízes, impondo-lhes deveres e impedindo-lhes deveres e impedindo-lhes a prática de excessos e abusos.
Aliás, Cândido Rangel Dinamarco se opõe a famosa trilogia estrutural do direito processual lastreada na jurisdição, ação e processo; Acrescentou Dinamarco a DEFESA totalizando as quatros categorias jurídicos que compõem o núcleo estrutural que corresponde aos institutos fundamentais.
É verdade que a maior parte dos princípios que rege o processo está prevista na CF/1988. Lembrando-se que os princípios são diretrizes que devem nortear a aplicação e a interpretação das normas processuais.
A consagração de tais princípios no texto constitucional indica claramente que o processo não se resumo a um aglomerado de regras técnicas, mas a um mecanismo político e ético.
A relevância constitucional tornou-se protagonista na maioria dos ordenamentos jurídicos, tanto que hoje, se cogita em Direito Constitucional Processual.
São exemplos contundentes e presentes nas normas constitucionais que possuem importância no processo civil: a garantia geral de acesso à justiça (art. 5, inciso 35); da isonomia, do contraditório (art. 5, inciso 55) entre outros.
A CF/1988 cuida ainda da organização da justiça, da composição e atribuições dos órgãos jurisdicionais e das garantias dos juízes (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos).
O CPC/2015[2] em seus artigos iniciais e, em boa parte dos dispositivos constitucionais que impõem princípios a serem observados em sua aplicação. Há sincero esforço em dar à lei processual um caráter mais orgânico e sistemática, o que se vê logo na Parte Geral quanto se instituem as normas fundamentais.
O que consigna um lembrete permanente no sentido de que a lei deve ser lida, interpretada e aplicada sempre à luz de tais princípios.
O processo contemporâneo acompanha os seguintes valores:
– Facilitação ao acesso à justiça (deve-se reduzir a chamada litigiosidade contida);
– Duração razoável do processo (a justiça tardia é justiça nenhuma).
– Instrumentalidade (pois o processo é instrumento da jurisdição, sendo o mais adequado meio para fazer valer o direito material).
– A tutela de interesses coletivos e difusos[3] (o que é decorrência natural da garantia de acesso à justiça). Há direitos que estão pulverizados entre os membros da sociedade, o que traz o risco à sua proteção principalmente se esta não for atribuídas a certos entes.
– Universalização (todos os valores buscam a democratização e universalização da justiça). Eis aí, a única situação em que o Judiciário cumprirá idealmente o seu papel que é o de assegurar a todos a integral proteção de seus direitos.
– Constitucionalização do direito processual posto que os princípios do processo civil estão, em grande parte, previstos na CF vigente. Devendo a ótica constitucional prevalecer quando se cogitar de direito constitucional processual.
– Efetividade do processo (relacionada a todos os princípios anteriores). O processo deve ser o instrumento eficaz para a solução de conflitos.
O cidadão como consumidor do serviço judiciário deve recebe-lo de forma adequada, pronta e eficiente.
A técnica não deve ser um fim último em si mesma, mas vir atender a finalidade que é a obtenção de resultado que atenda ao que se espera do processo, sob o ponto de vista ético, político e social.
PROCESSO CIVIL NO BRASIL
O CPC de 1973 fora precedido pelo CPC de 1939[4] (que vigorou de 01.01.1940 até 31.12.1973) apesar de consagrado numerosas conquistas, pecava por sua extrema timidez e ainda por falta de técnica.
O CPC de 1973[5] só entrou em rigor em janeiro de 1974 e fora elaborado a partir do projeto do Ministro Alfredo Buzaid que era ilustre representante da Escola Paulista de Processo Civil que foi muito influenciada por Enrico Tullio Liebman e seus discípulos.
Imprimiu ao CPC um caráter mais científico e aprimorou ainda a técnica processual. Outro marco relevante para história do processo civil brasileiro foi a Constituição Federal de 1988 que atribuiu à União a competência exclusive para legislar sobre o direito processual, concedendo aos Estados-membros a competência supletiva sobre o procedimento em material processual.
O CPC de 1973 fora alvo de sucessivas e pontuais reformas na busca de maior efetividade e pelo desenvolvimento de novas técnicas processuais, o que deu ensejo as chamadas ondas de reformas que alteraram completamente a fisionomia do CPC, sem, contudo, alterar-lhe a estrutura fundamental.
Por muito tempo tem-se ouvido que o Brasil é, país cuja estrutura jurídica pertence ao civil law que é própria de sua origem romano-germânica difundida na Europa Ocidental.
Mas, Fredie Didier Junior afirma que não parece correta tal afirmação. Afinal, se reconhece que o sistema jurídico brasileiro, é muito peculiar o que não deixa de ser curioso.
Pois nosso direito constitucional se inspirou do sistema dos EUA[6], daí a consagração de garantias processuais, inclusive o due process of law e, temos um direito infraconstitucional, principalmente o direito privado inspirado na família romano-germânica (presente em França, Alemanha e Itália, basicamente).
Há o controle de constitucionalidade difuso inspirado no judicial review dos EUA e há o controle de constitucionalidade concentrado inspirado no modelo austríaco.
Existem inúmeras codificações legislativas e microssistemas jurídicos como existem no civil law. Ao mesmo tempo em que se constrói um sistema de valorização de precedentes[7] judiciais extremamente complexo composto de súmula vinculante, súmula persuasiva[8], súmula impeditiva de recurso, julgamento-modelo para causas repetitivas de evidente inspiração no common law.
Apesar de termos o direito privado estruturado de acordo com o modelo romano, de cunho individualista, temos também o microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo.
Aliás, como é sabido, a tutela coletiva de direitos coletivos é a marca peculiar da tradição jurídica do common law. É preciso entender que a identificação jurídica não se faz apenas com a análise do sistema jurídico[9].
É preciso também investigar igualmente o papel e a relevância dos operadores jurídicos e, ainda, o modo como se ensina o Direito.
No Brasil, a opinião dos doutrinadores é bem significativa e considerada tal qual no civil law, mas se tem o destaque a jurisprudência o que é a marca característica do common law, sendo um notável exemplo que temos é a súmula vinculante do STF.
Apesar do ensino jurídico Coimbrão[10], portanto, um modelo europeu continental, não se desconhece que existam cursos de Direito estruturados no estudo de casos concretos conforme se faz no common law.
A verdade é que os conflitos de interesses se repetem no mundo todo e a solução das lides varia obviamente conforme os modelos teóricos e os aspectos culturais do país.
Podemos citar nos EUA os problemas relacionados com à boa-fé processual que são resolvidos pela cláusula do devido processo legal e no BGB (§242º) já se expande para os domínios não-civis.
A ilicitude do contraditório é resolvida na Alemanha pela proibição do venire contra factum proprium, na Espanha pela doctrina de los actos proprios; e nos países do common law[11], pelo estoppel.
Assim, afirma Didier Jr., que o venire contra factum proprium corresponde a um vinho da common law dentro das garrafas do civil law.
Portanto, temos uma tradição jurídica bem peculiar que é o que pode ser ironicamente chamada de brazilian law que traz a miscigenação do civil law com o common law.
Enfim, chegou o grande dia e, já se encontra em vigor o novo CPC, o CPC/2015 ou como chamam alguns o Código Fux. Estamos esperançosos com esse novo processo civil, com essa nova dogmática que busca institucionalizar as garantias constitucionais.
É importante frisar que algumas decisões judiciais obterão o status de precedentes normativos. Apesar de que o Novo CPC não atribua o nomen juris de “precedentes”[12], há procedimentos dialógicos (art. 10 e art. 1.038); há uma fundamentação mais rigorosa e específica (vide o art. 489).
E, para que as decisões judiciais sejam encaradas e aplicadas em casos futuros (art. 985, II) deverá de cumprir uma série de pressupostos. De modo que as decisões do passado não vinculam o futuro sem passar pelo crivo do CPC de 2015.
A força de precedentes hábeis à aplicação imediata e que sirvam como fundamento de julgamento (art. 489, §1º, V e VI); julgamento de liminares de improcedência; nas tutelas antecipadas de evidência (art. 311, inciso II); as decisões monocráticas (art. 932, incisos IV e V), a resolução de conflitos de competência (artigo 955, parágrafo único, incisos I e II); obtenção de executividade imediata de sentenças (artigo 1.012, IV); impedimento de reexame necessário (art. 496, §4º), não se olvidando de potenciais funções rescindentes (artigos 525,§1º e 535, §§ 5º e 8º).
Como explica lucidamente Lenio Luiz Streck seria como a regulamentação de súmulas vinculantes[13] produzidas desde 1963 pelo STF fosse aplicado às súmulas persuasivas, gerando força retrospectiva aos pronunciamentos do tribunal que são anteriores ao advento da normal do art. 927 do CPC/2015.
Afinal, só será vinculante a súmula que passar pelo crivo da CF/1988 e só assume seu caráter vinculante se obedecidos todos os pressupostos legais previstos.
Não que sejam apenas um problema de direito intertemporal mas trata-se de questão normativa de racionalidade e de busca contra-fática de institucionalização de um novo modelo promover julgamentos a partir da nova lei processual[14].
Para que uma decisão judicial seja considerada como precedente conforme prevê o artigo 927 de CPC/2015 há de se respeitar o efeito debate, o contraditório dinâmico (artigos 10, 933, 983, caput, §1º, art. 1.038, incisos I e II) de modo a se reduzir os problemas de sub-representação do uso da técnica de causa-piloto e, uma fundamentação estruturada (artigos 489, 984, §2º e art. 1.038, §3º).
Não se pode interpretar o art. 927 do CPC/2015 de forma isolada, deve-se observar o procedimento formativo previsto no artigo 926, ao se respeitar a coerência, integridade e estabilidade.
O novo CPC em seu artigo 10 traz um modelo democrático do princípio do contraditório ao proibir as decisões de surpresa e garantir a influência das partes no julgamento final da demanda.
Não é admissível que existam juízes que decidam simplesmente não aplicar uma norma processual prevista em lei federal. Negando-se a reconhecer e acatar o novo processo civil brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.