Resumo: Pretende-se com este artigo, analisar a relação existente entre a dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade de profissão. Mais precisamente, o cotejo muitas vezes existente entre o direito de um indivíduo trabalhar e garantir seu sustento mesmo que seu trabalho afronte, aparentemente, o conceito de dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Liberdade de profissão. Estado.
Abstract: The intention with this article, analyzing the relationship between human dignity and the right to freedom of occupation. More precisely, the comparison often exists between an individual the right to work and earn a living even though their work will tackle, apparently, the concept of human dignity.
Keywords: Human dignity. Freedom of profession. State.
Sumário: 1 Introdução; 2 O direito contemporâneo; 3 Breve histórico acerca da dignidade da pessoa humana; 4 A consagração do princípio da dignidade da pessoa humana; 5 A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial; 6 Os direitos fundamentais; 6.1 Os direitos fundamentais e a Constituição federal de 1988; 6.2 O direito à liberdade; 6.3 O direito à liberdade de profissão; 7 O direito ao trabalho e a dignidade da pessoa humana frente ao caso concreto; 7.1 O arremesso de anões; 7.2 O mestre-cervejeiro; 7.3 O peep-show; 8 Considerações finais; 8 Referências bibliográficas.
1 Introdução
Poderia o Estado impedir que o indivíduo exerça o seu direito de liberdade de profissão sob o argumento de seu exercício violar o princípio da dignidade da pessoa humana?
Este artigo presta-se a discutir o problema. Para tal, estabelece-se, inicialmente, uma breve análise acerca do paradigma defendido pelo direito contemporâneo.
Posteriormente, reflete-se sobre o conceito de dignidade humana, sua evolução, positivação e consagração na Constituição Federal de 1988.
Desenvolve-se, ainda, algumas questões relativas aos direitos fundamentais, com destaque ao direito à liberdade de profissão, deixando claro consubstanciar-se numa norma de eficácia contida, que a despeito de ser imediatamente exercitável, poderá sofrer contenção nos termos constitucionais, legais, entre outros.
Ademais, aborda-se alguns casos polêmicos, que vez em quando são confrontados com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por derradeiro, procura-se transparecer que em havendo respeito ao ser humano, assegurando-se condições mínimas para a sua existência, com ênfase na tutela e efetividade dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade, pode-se falar em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
2 O direito contemporâneo
Em tempos de pós-positivismo jurídico, a eficácia da Constituição ocupa um papel central, principalmente, no que diz respeito à efetivação dos direitos inerentes à pessoa humana, “devendo os Poderes Públicos, quando da observação e aplicação das leis, além das formas prescritas na Constituição, estarem em consonância com seu espírito, seu caráter axiológico e seus valores destacados” (LENZA, 2009, p. 09-10).
A “bola da vez” é a reaproximação entre o direito e a ética, entre o direito e a moral, entre o direito e a justiça, exercendo o intérprete um trabalho de permanente construção jurídica, de modo que o homem (enquanto sujeito de direito) protagonize todas as atenções do sistema jurídico.
O aplicador do direito, neste contexto, já não está adstrito a uma atividade meramente silogística, de simples exegese, mas a um papel construtivo, cujo norte é a tutela e a efetividade dos direitos fundamentais.
Sob o viés, as relações humanas podem traduzir-se, concretamente, em eventual ofensa a dignidade humana.
Analisaremos, a partir de agora, até que ponto o direito de liberdade de profissão pode colidir com o princípio ora indagado.
3 Breve histórico acerca da dignidade da pessoa humana
Para que se possa apreender o conceito e o sentido de uma determinada palavra, prepondera analisar sua gênese e evolução histórica. Do latim, dignitas, dignidade significa tudo aquilo que merece respeito, consideração, mérito ou estima.
Segundo Ingo W. Sarlet:
“No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia em regra com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas. […] no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade. […]” (SARLET, 2011, p. 34-35).
Na primeira fase do cristianismo, quando este se tornou a religião oficial do Império, o Papa São Leão Magno sustentou que “os seres humanos possuem dignidade pelo fato de que Deus os criou à sua imagem e semelhança e que, ao tornar-se homem, dignificou a natureza humana” (SARLET, 2011, p. 36). Já no auge da Idade Média, Anicio Manlio Severino Boécio define “[…] a pessoa como substância individual de natureza racional” (SARLET, 2011, p. 37), influenciando a noção atual de dignidade da pessoa humana. Seguindo o seu pensamento, surgem Giovanni Pico della Mirandola, para o qual “[…] a dignidade era inerente à racionalidade intrínseca a todo ser humano; todo homem existia por sua própria vontade, por sua própria racionalidade, sendo, portanto, possuidor de dignidade[…].” (LEMOS, 2008, p. 43). São Tomás de Aquino, por sua vez, defende que a dignidade humana tenha um valor próprio:
“[…] além de sua concepção cristã de igualdade entre todos os homens perante Deus, defendia também a existência de duas ordens distintas, que seriam formadas pelo direito natural, como representação da natureza racional do homem, e pelo direito positivo” (AQUINO apud FALCÃO, 2010, p. 2092).
Os responsáveis pela cisão entre o conceito de dignidade humana e o pensamento cristão foram Francisco de Vitoria, no século XVI e Immanuel Kant, no século XVIII. Aquele, vivendo uma realidade absolutamente escravagista em sua terra natal, defendeu serem os índios “seres humanos, em princípio livres e iguais” (LEAL, 2007, p. 86), independente de religião. Já para Kant a concepção da dignidade surge da autonomia da vontade, repudiando toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano, conforme nota-se a seguir:
“[…] no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e por tanto não permite equivalente, então tem ela dignidade… Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de um tal disposição de espírito e põe-na infinitamente de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade” (KANT apud SARLET, 2011, p. 41).
A preponderância da concepção jusnaturalista do conceito de dignidade perdurou por mais de quatro séculos, tendo seu apogeu no século XVIII, donde remontam os primórdios do movimento constitucionalista moderno.
Bonavides aduz que:
“A dignidade da pessoa humana, desde muito, deixou de ser exclusiva manifestação conceitual daquele direito natural metapositivo, cuja essência se buscava ora na razão divina, ora na razão humana, consoante professavam em suas lições de teologia e filosofia os pensadores dos períodos clássicos e medievos, para se converter, de último, numa proposição autônoma do mais subido ter axiológico, irremissivelmente presa à concretização constitucional dos direitos fundamentais” (BONAVIDES, 2011, p. 18).
4 A consagração do princípio da dignidade da pessoa humana
As constituições de diversos países consagraram o princípio da dignidade da pessoa humana após as experiências vivenciadas com o nazismo e com a Segunda Guerra Mundial (século XX).
Pode-se dizer que este princípio seja relativamente recente, tendo nascido positivamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, que em seu artigo 1º prevê: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade” (LEMOS, 2008, p. 45).
O Brasil, após duas décadas imerso em um regime ditatorial, além de instituir, com a Constituição de 1988, um Estado Democrático de Direito, consagra como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
Neste contexto, sem sombra de dúvidas, trata-se a dignidade da pessoa humana de norma (lei), devendo ser observada e aplicada quando da resolução de casos concretos, pois este princípio:
“[…] não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral, mas constitui norma jurídica-positiva, dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material, e como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto, a condição de valor jurídico fundamental da comunidade” (SARLET, 2011, p. 84-85).
Quanto à normatividade dos princípios, Alexy aduz que:
“Os princípios, […], são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. São, por conseguinte, mandamentos de otimização, caracterizados pela possibilidade de satisfação em diferente graus e de acordo com as aduzidas possibilidades fáticas e jurídicas” (ALEXY apud GARCEZ DUARTE, 2011, p. 1)
5 A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial
Inicialmente, apenas o Estado se subordinava aos controles constitucionais. Atualmente, vê-se a necessidade da incidência imediata do princípio da dignidade da pessoa em toda sociedade. A dignidade da pessoa humana é condição e limite da atividade dos poderes públicos, ou seja, é comando estruturante da organização do Estado.
“A dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade” (SARLET, 2011, p. 58).
O Estado tem como obrigação preservar a dignidade, bem como promover a mesma, criando condições possibilitadoras do pleno exercício de seu gozo. Assim, o Estado não deve apenas abster-se de praticar atos que vão de encontro à dignidade, mas de ativamente promovê-la, garantindo o mínimo existencial.
O mínimo existencial, assim, consiste no conjunto de bens e utilidades indispensáveis a uma vida humana digna, evidenciando Sarlet que:
“O nosso constituinte de 1988 […] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício de poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui em si a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal” (SARLET, 2011, p. 80).
A dignidade da pessoa humana é tida como um superprincípio, por se tratar de um princípio em que todos os ângulos da personalidade encontram-se unificados, ou seja, referido princípio atua fundamentando a criação legislativa e jurisprudencial, além de interpretar normas e suprimir lacunas.
Em outras palavras, pode-se definir o princípio da dignidade da pessoa humana como:
“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede de vida” (SARLET, 2011, p. 73).
Seguindo a premissa os Tribunais vêm cada vez mais, interpretando as normas infraconstitucionais à luz da dignidade da pessoa humana, fazendo do princípio um critério hermenêutico.
Corroborando a hipótese, sustentou o Superior Tribunal de Justiça quando de um julgamento:
“[…] A conduta ilícita atinge frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, violando valores basilares ao homem, e ofende todo um sistema de organização do trabalho, bem como as instituições e órgãos que lhe asseguram, que buscam estender o alcance do direito ao labor a todos os trabalhadores, inexistindo, pois, viés de afetação particularizada, mas sim, verdadeiro empreendimento de depauperação humana. Artigo 109, V-A e VI, da Constituição Federal […] (BRASIL, 2011, p. 1).
O Tribunal Superior do Trabalho, nesse mesmo sentido prolata que:
“[…] Constata-se, portanto, que o uso do polígrafo não só viola a intimidade e a vida privada dos submetidos ao teste como também destina-se, direta ou indiretamente, a um fim discriminatório, o que vai de encontro com os objetivos da República Federativa do Brasil insculpidos no inciso IV do art. 3º da CF, cujo fundamento principal é o respeito à dignidade da pessoa humana prevista no inciso III do art. 1º do mesmo diploma legal. Dessa maneira, in casu, comprovado que o uso do “detector de mentiras” resulta em decisões de caráter discriminatório, vai contra não só ao inciso X do art. 5º, como também ao próprio caput do referido artigo, que estabelece o princípio da igualdade e veda as distinções legais de qualquer natureza. […] (BRASIL, 2010, p. 1).
Os direitos fundamentais inseridos na Constituição derivam do princípio ora indagado, pois a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca do ser humano.
6 Os direitos fundamentais
Os direitos do homem foram reconhecidos juridicamente após a Segunda Grande Guerra Mundial, com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tais direitos representam, hoje, um importante marco da civilização, com vistas ao convívio social digno, justo e pacífico.
Sobre o tema, vale apreciar:
“Os direitos inscritos nesta Declaração constituem um conjunto indissociável e interdependente de direitos individuais e coletivos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, sem os quais a dignidade da pessoa humana não se realiza nem se desenvolve por completo” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 55).
O reconhecimento dos direitos fundamentais pela Declaração de Direitos Humanos não foi suficiente, porém, para que suas disposições possuíssem força normativa. Necessário se fez a positivação dos direitos fundamentais pela Constituição, traduzindo em condição de existência e vigência do Estado Democrático de Direito, pois:
“Não há que se falar em democracia sem o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais. Eles tem um papel decisivo na sociedade, porque é por meio dos direitos fundamentais que se avalia a legitimação de todos os poderes sociais, políticos e individuais. Onde quer que esses direitos padeçam de lesão, a Sociedade se acha enferma” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 515-516).
Nesses termos, os direitos fundamentais, além de dar prerrogativas para seus titulares exigirem seus interesses face ao Estado, são considerados a base de um estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito, segundo Dirley da Cunha Júnior pode ser encarado como:
“[…] providência de transformação do status quo e garantia de uma sociedade pluralista, livre, justa e solidária, em que todo o poder emane do povo e seja exercido em benefício do povo, com o reconhecimento e a afirmação dos direitos humanos fundamentais que possam realizar, na sua plenitude, a dignidade da pessoa humana” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 494).
6.1 Os direitos fundamentais e a Constituição federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos (art. 5º); direitos sociais (arts. 6º a 11); nacionalidade (arts. 12 e 13); direitos políticos (arts. 14 a 16) e partidos políticos (art. 17).
O artigo 5º da Constituição Brasileira prevê o direito à liberdade como um direito individual, o qual será objeto de análise, ainda que brevemente, a partir de agora.
6.2 O direito à liberdade
Definir liberdade não é uma tarefa das mais fáceis, pois o termo é amplo, podendo ensejar variadas determinações. A Constituição Federal, entretanto, regulamenta o direito à liberdade como: liberdade de locomoção (art. 5º, inciso XV da CF); liberdade de opinião ou pensamento (art. 5º, inciso IV da CF); liberdade de expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, inciso IX da CF); liberdade de informação (art. 5º, inciso 220 da CF); liberdade de consciência e crença (art. 5º, inciso VI da CF); liberdade de reunião (art. 5º, inciso XVI da CF); liberdade de associação (art. 5º, inciso XVII da CF) e liberdade de opção profissional (art. 5º, inciso XIII da CF).
Por mais que a Constituição tenha definido o direito à liberdade nas formas acima elencadas, pode-se afirmar tratar-se a liberdade “de um direito subjetivo de buscar a felicidade e a satisfação pessoal, podendo fazer tudo aquilo não vedado pela lei […].” (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 1).
Em outras palavras:
“O homem se torna cada vez mais livre na medida em que amplia seu domínio sobre a natureza e sobre as relações sociais. O homem domina a necessidade na medida em que amplia seus conhecimentos sobre a natureza e suas leis objetivas. Então, não tem cabimento sobre a discussão sobre a existência e não existência da liberdade humana com base no problema da necessidade, do determinismo ou da metafísica do livre-arbítrio, porque o homem se liberta no correr da história pelo conhecimento e consequente domínio das leis da natureza, na medida em que, conhecendo as leis da necessidade, atua sobre a natureza real e social para transformá-la no interesse da expansão de sua personalidade” (SILVA, 2011, p. 233).
A presente pesquisa interessa-se pela liberdade de profissão, a qual será analisada juntamente com a dignidade da pessoa humana de modo que se possa descobrir o que há de prevalecer no caso concreto quando de um cotejo.
6.3 O direito à liberdade de profissão
A Constituição Federal declara, no artigo 5º, inciso XIII, a liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
A liberdade de profissão é um direito individual e está condicionada às opções e vocações de cada pessoa, podendo ser restringida, unicamente, quando se tratar de exigência legal de atendimento às qualificações profissionais, como, por exemplo, o exame de ordem para o exercício da profissão de advogado.
A liberdade de se escolher uma profissão é um direito inviolável. Porém, a liberdade do exercício e da admissão poderá sofrer restrição pelo Estado, desde que tenha como finalidade a proteção da vida, da saúde, da segurança, além de condições adequadas à educação e à defesa de valores morais. Desta forma, as restrições que a lei poderá estabelecer são fundadas no potencial lesivo do exercício de determinada profissão, voltada sempre para o interesse público.
Desenvolvendo o tema, Pinto Ferreira assevera:
“No que tange à escolha de profissões, a liberdade é inviolável, porém é legítimo o poder de polícia para legalizar e permitir in totum a admissão e o exercício da profissão. Determinadas profissões exigem habilitações especiais para o seu exercício (advocacia, medicina, engenharia etc.); outras atividades preveem condições materiais adequadas (p. ex., estabelecimentos de ensino) para seu funcionamento. Não somente as atividades liberais estão sujeitas à vigilância do poder de polícia, mas também outras, por razões de segurança pública (hospedagem, hotéis, indústrias pirotécnicas), como por motivo de saúde (produção de produtos farmacêuticos, como afinal por motivos de polícia penal, vedando a prática de crimes e contravenções). Quando o exercício de determina atividade concerne ao interesse público, exigindo regulamentação, a parte pode recorrer à justiça, caso julgue arbitrária a regulamentação” (FERREIRA apud LEITE, 2006, p. 49).
Desta maneira, a natureza de referida norma constitucional é de eficácia contida, ou seja, estatui um direito imediatamente exercitável, no entanto, passível de restrição por outras normas constitucionais, por lei, bem como “por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social” (LENZA, 2009: 137).
Conforme dissemos alhures, trata-se a dignidade da pessoa humana de um termo aberto, abstrato, genérico, que não se pode determinar aprioristicamente, podendo ensejar variadas concepções à luz das peculiaridades de dado caso.
7 O direito ao trabalho e a dignidade da pessoa humana frente ao caso concreto
O Direito do Trabalho surgiu com o objetivo de nivelar as desigualdades existentes no labor, melhorar a condição social do trabalhador, bem como consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana. Atualmente vem crescendo a valorização deste princípio (protetor do Direito do Trabalho) como medida de efetividade da proteção dos direitos fundamentais. Para que ocorra referida efetividade, necessário se faz assegurar um mínimo de direitos ao trabalhador.
A Constituição Federal prevê em seu artigo 1º, incisos III e IV, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, pode-se dizer que a preservação dos valores sociais do trabalho é uma maneira de se garantir a dignidade humana daquele que presta seu serviço de forma pessoal, qual seja o trabalhador, com vistas à efetiva justiça social.
“[…] A aplicação dos direitos fundamentais no âmbito da relação de emprego não concerne a indivíduos abstratos, mas a pessoas, isto é, a seres humanos em situação determinada pelo meio social em que vivem. Ela só se justifica quando considera os seres concretos, vale dizer, as pessoas encaradas em sua diversidade e levando em conta suas peculiaridades e sua particularidade. A fórmula que preside à aplicação dos direitos fundamentais é a que eles concernem ao ‘homem situado’. A pessoa em causa deve ser considerada em sua integralidade, não somente do ponto de vista profissional, mas também em sua vida privada” (ROMITA, 2005, p. 195).
Veja-se, a partir dos casos a seguir, como o conceito de dignidade humana pode conter variadas determinações.
7.1 O arremesso de anões
O caso do arremesso de anões é bastante conhecido, consistindo em suma no fato de que: “Uma empresa do ramo de entretenimento para juventude decidiu lançar nas discotecas em cidades da região metropolitana de Paris e do interior da França[…]” (BERTI, 2007, p. 1), uma competição para ver quem arremessa anões a uma maior distância. Aquele que conseguir arremessar o anão, que veste roupas de proteção, o mais distante possível em um tapete acolchoado, recebe o prêmio. Os anões se inscrevem voluntariamente recebendo em troca, uma importância em dinheiro.
Na referida cidade (Morsang-sur-Orge) do interior francês, o poder executivo municipal, fazendo uso do seu poder de polícia, interditou o evento:
“[…] fazendo valer sua condição legal, de guardião da ordem pública na órbita municipal. Do ponto vista legal, o ato de interdição teve por fundamento o Código dos Municípios. Por outro lado, a decisão administrativa do Prefeito se inspirou em uma norma de cunho supranacional, o art. 3º da Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais” (BERTI, 2007, p. 1).
Um anão proibido de ser arremessado, em litisconsórcio com a casa noturna, recorreu da decisão ao Tribunal Administrativo de Versailles que anulou o ato do Prefeito, sob a alegação que:
“[…] a proibição baixada era ilegal, pois violava a sua liberdade de iniciativa. Por conta de sua baixa estatura, argumentou o anão, estava difícil conseguir um emprego na cidade. Dessa forma, ser lançado de um lado para outro na boate era o único emprego que ele havia obtido. E agora o Estado estava lhe retirando o seu próprio sustento” (SOUZA, 2010, p. 8).
Referido caso acabou sendo submetido ao Conselho de Estado Francês, considerado o alto grau da jurisdição francesa, que acabou por anular a decisão do Tribunal Administrativo, por entender que a dignidade do anão estava acima da sua autonomia da vontade, ou seja, o arremesso de anão atentava contra a dignidade da pessoa humana.
“Na decisão de 27.10.1995, o Conselho de Estado francês pela primeira vez reconheceu a dignidade da pessoa humana como elemento integrante da “ordem pública” e, consequentemente, declarou ser a prática do lançamento de anão uma atividade que atenta contra a dignidade da pessoa, não podendo, mesmo voluntariamente, ser exercida pela mesma” (SOUZA, 2010, p. 8)
A atividade, segundo Leandro José Silva, “pode ser considerada um esporte ou um trabalho, ou ainda uma simples brincadeira, dependendo da óptica do observador, uma vez que a ausência de regulamentação impede a sua devida classificação.” (SILVA, 2010, p. 204).
Há quem defenda a prática de tal “esporte” sob argumento de que o anão é livre para escolher a profissão, ofício ou trabalho e que ofender a dignidade da pessoa humana seria deixar o anão em casa sem emprego e passando fome em vez de ganhar dinheiro sendo arremessado. Argumentam, ainda, que a insegurança “[…] não pode ser alegada como motivo de proibição da atividade, uma vez que outros esportes também oferecem risco aos participantes […]” (SILVA, 2010, p. 205).
7.2 O mestre-cervejeiro
Caso ocorrido no Brasil foi o do mestre-cervejeiro da Companhia Cervejaria Brahma. O trabalho do mestre-cervejeiro é assinar as fórmulas dos tipos de cerveja ou chope, selecionar a matéria prima e acompanhar passo a passo o processo de fabricação da bebida, garantindo a qualidade da mesma.
De acordo com informações colhidas no julgamento do caso abaixo descrito, no ano de 1999, o mestre-cervejeiro da Brahma moveu contra a mesma ação indenizatória por danos materiais e morais decorrentes da incapacidade para o trabalho por alcoolismo adquirido durante o longo tempo em que exerceu a função de mestre cervejeiro, que lhe exigia ingerir diariamente considerável quantidade de álcool. Aduziu, ainda, que nunca foi alertado dos riscos a que estaria sujeito pelo exercício da profissão.
Em primeira instância o Juiz julgou improcedente ao argumento de que não restou provada a culpa da empresa, sendo tal decisão apelada pelo autor que deu provimento ao pedido do mesmo.
Em recurso especial, a empresa alegou que:
“[…] o v. acórdão recorrido teria sido omisso quanto à alegação de incompetência da Justiça Comum para apreciar causa que a CR atribui à Justiça do Trabalho, tema que foi suscitado nos embargos declaratórios. Afirma que a eg. Câmara “julgou a demanda em distonia com a causa de pedir inicialmente apresentada”. Alega, ainda, ofensa a dispositivos legais por erro na valoração da prova (arts. 126 e 127 do CPC); na definição do alcoolismo como doença profissional, em descompasso com o art. 20 da Lei 8213/91; na estipulação do valor da indenização do dano moral, desconhecendo as regras das leis sobre telecomunicações e imprensa, divergindo de inúmeros precedentes, e, por fim, na distribuição dos ônus da sucumbência” (STJ, 2000, p. 168).
O Superior Tribunal de Justiça deu ganho de causa ao mestre-cervejeiro conforme o acórdão abaixo:
“Culpa da empresa de cervejas, que submeteu o seu mestre-cervejeiro a condições de trabalho que o levaram ao alcoolismo, sem adotar qualquer providência recomendável para evitar o dano à pessoa e a incapacidade funcional ao empregado” (STJ, 2000, p. 168).
7.3 O peep-show
Os peep-shows são cabines onde belas mulheres ficam sob a proteção de uma grossa e transparente vidraça e ali tiram a roupa e se insinuam de acordo com o gosto do cliente.
“[…] A Corte Constitucional alemã entendeu que o peep-show violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Na argumentação, o TCF decidiu que “a simples exibição do corpo feminino não viola a dignidade humana; assim, pelo menos em relação à dignidade da pessoa humana, não existe qualquer objeção contra as performances de strip-tease de um modo geral”. Já os peep-show– argumentaram os velhinhos do Tribunal – são bastante diferentes das performances de strip-tease. No strip-tease, existe uma performance artística. Já em um peep-show a mulher é colocada em uma posição degradante. Ela é tratada como um objeto para estímulo do interesse sexual dos expectadores” (MARMELSTEIN, 2008, p. 2).
No Brasil, pode-se comparar as mulheres que se expõem em um peep-show às profissionais do sexo, pois ambas são vislumbradas como objeto, levantando igualmente a discussão acerca da violação ou não da dignidade humana em decorrência da liberdade de profissão.
8 Considerações finais
Diante da diversidade de valores existentes na sociedade não é possível tecer de forma genérica e abstrata a definição do que seja dignidade da pessoa humana, já que referido termo possui conceito amplo, abstrato, indeterminado e, portanto, mutável.
Pode-se dizer, pelo grau de generalidade do princípio da dignidade da pessoa humana, que ele pode até abarcar variadas definições, de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Mesmo sendo um princípio fundamental e estruturante, deve-se efetuar uma ponderação caso a caso, sob o risco de ter sua força normativa banalizada.
O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece limites à ação do Estado e protege a liberdade humana contra eventuais violações, exatamente para que a pessoa (sujeito de direito) não seja objeto de injustiças.
Em virtude da opressão e degradação sofridas pelos trabalhadores, os direitos fundamentais de liberdade e igualdade conquistados pelos próprios constituem exigência para a concretização da dignidade da pessoa humana, mesmo que, ainda hoje, em grande parte dos Estados essa situação indigna não tenha sido superada.
Prepondera respeitar, proteger e promover a igual dignidade de todas as pessoas, o que será conquistado, unicamente, quando do exame de situações concretas, as quais oferecerão os elementos para uma solução constitucionalmente adequada.
Enfim, pode-se afirmar que em havendo respeito ao ser humano, assegurando-se condições mínimas para a sua existência, com ênfase na tutela e efetividade dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade, pode-se falar em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Informações Sobre os Autores
Hugo Garcez Duarte
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
Juliana Silva Oliveira
Acadêmica na Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – FADILESTE