Uma análise sobre os conceitos de neutralidade e imparcialidade do juiz

Resumo: Por meio deste artigo, pretende-se analisar os conceitos de neutralidade e de imparcialidade sob o viés contemporâneo. Para tal, discorre-se sobre as distinções entre esses conceitos, estabelecendo-se uma visão crítica acerca de como foram vistos no passado e devem ser encarados no presente, bem como numa visão constitucional e progressista. Conclui-se que o cenário jurídico contemporâneo já não admite a confusão entre a neutralidade e a imparcialidade, pois como o mundo é extremamente plural, as pessoas têm diferentes visões de mundo, podendo essas visões ser contempladas e protegidas pelo ordenamento jurídico, que abarca normas de conteúdo abstrato como dignidade da pessoa humana, cidadania, igualdade, liberdade, entre inúmeros outros. Nesse contexto, o direito deve ser aplicado de modo a ajustar-se aos direitos fundamentais e às reivindicações sociais, políticas e econômicas do sujeito de direito, segmento no qual a neutralidade do julgador é impossível.

Palavras-chave: Neutralidade; imparcialidade; contemporaneidade.

Abstract: In this article, we intend to analyze the concepts of neutrality and impartiality in the contemporary bias. To this end, talks over the distinctions between these concepts, establishing a critical view about how they were viewed in the past and should be viewed in this, as well as a constitutional vision and progressive. We conclude that the contemporary legal scenario no longer admits confusion between neutrality and impartiality, because the world is extremely plural, people have different world views, these views can be covered and protected by the legal system, which includes standards abstract content such as human dignity, citizenship, equality, freedom, among countless others. In this context, the law must be applied in order to adjust to the fundamental rights and claims to social, political and economic rights of the subject, a segment in which the neutrality of the judge's impossible.

Keywords: Neutrality, impartiality; contemporaneity.

Sumário: 1 Introdução. 2 Neutralidade e imparcialidade.  3 Novos tempos e a aplicação do direito. 4 Neutralidade, imparcialidade e casos concretos. 4.1 Juiz do estado Rio de Janeiro usa mulheres do big brother e o futebol carioca para fundamentar sua decisão. 4.2 “Furto” de duas melancias: juiz manda soltar os dois réus com fundamentação inusitada. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 Introdução

A sociedade atual procura nas instituições democráticas o socorro diante das arbitrariedades que ao longo da história da humanidade marcaram a vida daqueles que distantes e não detentores do poder sofriam, visto o estabelecimento de “fraudulentas” e ilegítimas considerações de direito que eram impostas. Basta a promoção de uma retrospectiva histórica que será notado o triste painel em que mulheres, negros, deficientes físicos e aqueles economicamente menos favorecidos enfrentavam diante do mando rude e violento dos senhores feudais, entre outros.  

A evolução do direito, neste horizonte, não poderia ser descrita aqui, mas não se pode deixar de afirmar que a instituição do Estado Democrático de Direito trouxe ao seio da sociedade uma efetiva equiparação, pelo menos numa consecução teórica, entre os “diferentes” e os taxados por moldes.

Nesse quadrante, o magistrado é encarado como um símbolo, pragmaticamente falando, de uma nova ordem social resultante do constitucionalismo. Ou seja, atualmente, o cidadão concebe o juiz como alguém que soluciona os seus problemas, uma vez que ao recorrer aos órgãos judicantes, tem em seu âmago que na caneta deste está a esperança da devida punição ao algoz criminoso, a execução do devedor inadimplente, entre outras.

Sabe-se que o magistrado assume a personificação da autoridade estatal sobre os ultrajantes do sistema legal, mas o cidadão (sujeito de direito) o tem por detentor do poder de impor e executar a justiça, com a devida imparcialidade. Ocorre que o conceito de imparcialidade, não raramente, é confundido com o conceito de neutralidade.

Por meio deste trabalho pretende-se analisar as distinções existentes entre os conceitos de neutralidade e imparcialidade, estabelecendo-se uma visão crítica acerca de como esses conceitos foram vistos no passado e como devem ser encarados no presente, bem como numa visão constitucional e progressista, cujo norte é a tutela e efetividade dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

São analisadas, primeiramente, as definições destes conceitos nos dicionários e no mundo jurídico.

Posteriormente, enfrenta-se a tarefa de se saber se a aplicação neutra do direito é possível, quando se procura demonstrar que a concepção hodierna de aplicação do direito exige do intérprete técnicas distintas daquelas defendidas noutros tempos, pois, contemporaneamente, a aplicação do direito foi inovada, tratando-se de uma falácia o discurso de que o intérprete nada mais faz do que procurar no “catálogo legal” a regra aplicada ao caso, pois a neutralidade axiológica do intérprete é inalcançável, pelo fato de que o aplicador do Direito jamais se desfaz de sua figura humana no exercício de suas funções, logo, impossível despir-se, igualmente, de seus complexos, traumas e crenças nesse momento.

Nesse diapasão, dois casos concretos são expostos. Casos nos quais os respectivos magistrados prolatam suas decisões demonstrando, claramente, as suas visões de mundo (ausência de neutralidade), sem, contudo, sob a ótica aqui defendida, deixar de observar a imparcialidade inerente a atividade do órgão julgador.

Por derradeiro, alude-se que a atividade do juiz, sob o viés Constitucional contemporâneo, deve coadunar-se a efetiva tutela dos direitos fundamentais, sendo a neutralidade do julgador, nessa jornada, impossível, mas que isso, não necessariamente, ultraja a sua imparcialidade.

2 Neutralidade e imparcialidade

A empreitada de abalizar as arestas que formam os conceitos de neutralidade e imparcialidade incorre em diversas facetas. A principal delas diz respeito aos seus conceitos literais, que os considera sinônimos:

“neutro. [Do lat. neutru] Adj. 1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; neutral. 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral. 3. Diz-se de nação cujo território as potências se comprometem a respeitar em caso de guerra entre elas. 4. Não distintamente marcado ou colorido. 5. Indefinido, vago, distinto, indeterminado. 6. Que se mostra indiferente, insensível, neutral. 7. Gram. Diz-se do gênero das palavras ou nomes que, em certas línguas, designam os seres concebidos como não animados, em oposição aos animados, masculinos ou femininos. ~ V. cor -a, elemento -, ponto -, pressão -a, rocha -a e verbo. l S. m. 8. Eletr. Num circuito de corrente alternada, condutor permanentemente ligado à terra e que tem potencial constantemente igual a zero”. [Cf. nêutron.] (FERREIRA, 1986, p. 675). 

Frise-se, por oportuno, que os conceitos literais, nem sempre, podem ser considerados juridicamente. Pode-se afirmar, sem dúvidas, que o juiz será percebidamente imparcial quando atinar-se tecnicamente, quando de sua atividade, aos preceitos constitucionais e legais, pois a imparcialidade do julgador está muito mais atrelada ao respeito aos ditames normativo-jurídicos como devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), ampla defesa (CF, art. 5º, LV), contraditório (CF, art. 5º, LV), fundamentação das decisões (CF, art. 93, IX), por exemplo, do que com conceitos valorativos.  

O Estado-juiz, quando da prestação da tutela jurisdicional, se coloca entre partes, acima e equidistante delas. Ou seja, a mesma “distância” que uma necessitar percorrer para fazer valer as suas pretensões em juízo a outra também deverá caminhar.

Assim, nos moldes normativo-jurídicos, o juiz deverá oferecer às partes as mesmas oportunidades processuais, de modo que produzam provas, argumentem e, assim, possam contribuir para a formação do seu livre conhecimento. Se isso ocorrer e o magistrado prolatar a sua sentença com base nos elementos trazidos pelas partes, a imparcialidade do julgador estará presente.

Em outras palavras, caberá ao autor buscar, em sua empreitada, o que pensa tratar-se de seu direito (direito subjetivo), valendo-se, obviamente, de todos os meios lícitos de prova para a consecução de sua finalidade.  Enquanto que à parte ré, caberá contraditar a pretensão autoral, nos mesmos moldes, como aludem Cintra, Grinover e Dinamarco:

“O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de ´colaboradores necessários´: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve” ( CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1993, p. 53).

Agora, perceber a neutralidade nos atos do magistrado constitui tarefa impossível a nós mortais, uma vez que o ser humano tem a sua personalidade e caráter formados por princípios subjetivos, que definem os seus conceitos do que seja moral, de correto e incorreto, de repugnante e de reprovável.  

Neste sentido, Rodolfo Pamplona Filho afirma que:

“[…] é impossível para qualquer ser humano conseguir abstrair totalmente os seus traumas, complexos, paixões e crenças (sejam ideológicas, filosóficas ou espirituais) no desempenho de suas atividades cotidianas, eis que a manifestação de sentimentos é um dos aspectos fundamentais que diferencia a própria condição de ente humano em relação ao frio "raciocínio" das máquinas computadorizadas” (PAMPLONA, 2012, p. 01).

O mito da neutralidade advém do positivismo jurídico. Não é demais lembrar, entretanto, que a neutralidade que essa corrente jurídico-filosófica sustentou é da ciência jurídica e não do intérprete do direito[1], significando inexistir subordinação entre este e uma moral específica. Ou seja, para o positivista jurídico o Direito encontra-se desvinculado de uma moral determinada, sendo descrito de uma maneira puramente formal, conforme o próprio Kelsen, um dos maiores, senão o maior positivista jurídico (normativista) deixa claro:

“Quando uma teoria do Direito positivo se propõe distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para não os confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral” (KELSEN, 2006, p. 75).

 Kelsen, ao que parece, visou demonstrar que o direito não está vinculado a uma moral pré-determinada, a uma moral absoluta. Note-se que para o autor o justo não pode ser prévia e arbitrariamente determinado, pois o direito pode ser vinculado a diversos valores.

 “Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo deve corresponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas morais possíveis. Mas com isso não fica excluída a possibilidade da pretensão que exija que o Direito positivo deve harmonizar-se com um outro sistema moral e com ele venha eventualmente a concordar de fato, contradizendo um sistema moral diferente deste” (KELSEN, 2006, p. 75).

Sobre a relação entre o direito e a moral, Miguel Reale assim alude:

“O certo é que toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ter sido reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento declarado obrigatório. Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura mister é esclarecer, mesmo porque ele está no cerne da atividade do juiz ou do advogado” (REALE, 2002, p. 31).

Nesses termos, pode-se aludir que a norma jurídica tutela valores, cabendo ao aplicador do Direito, de acordo com as circunstâncias oferecidas pelo caso concreto, investigar qual é o valor a ser amparado.

A evidência só é possível pelo fato de que:

“tomamos consciência de que a história e a cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, da especificidade das identidades individuais e coletivas, bem como da grandeza do desafio representado pelo pluralismo epistêmico e que o mundo, nessa perspectiva, se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas dos diversos indivíduos e grupos. Uma espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão do mundo e a autocompreensão, além da percepção dos valores e dos interesses de pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida e é por elas moldada” (HABERMAS, 2007, p. 09).

Habermas sustenta que o pluralismo das formas e dos projetos de vida condiciona o ser humano a encontrar um acordo sobre as normas gerais e abstratas que não são por natureza impostas especificamente para cada caso especial, reivindicando essas normas uma legitimidade na medida em que regulamentam de modo amplo e variado as opções de vida e de interesse do sujeito de direito.

Esse pluralismo e a hodierna ordem Constitucional promoveram uma evolução no que diz repeito a aplicação do direito, trazendo para o arcabouço jurídico (LENZA, 2009) uma nova concepção de justiça, garantindo-se aos órgãos judicantes a possibilidade de uma busca mais efetiva do justo, abandonando-se aquela posição pregada noutros tempos de boca que pronunciava os ditames legais, trazendo para atividade jurídica a necessidade de uma maior atenção às características do caso concreto.       

Busca-se, como nunca, (NOVELINO, 2010) o reencontro do direito com a ética, com a moral e com a justiça, de modo a revelar a importância do homem e a sua ascendência a filtro axiológico de todo sistema jurídico político, com a consequente proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

O aplicador do direito exerce neste cenário, um papel crítico, distinto daquele defendido pela escola francesa da exegese do século XIX, para a qual a lei era obra jurídica perfeita, completa, abarcando o “verdadeiro direito”, reprodução escrita dos valores absolutos de justiça do direito natural, insculpidos na vontade do legislador.

Sobre as acepções da escola da exegese vale analisar as palavras de Bobbio desenvolvendo Bonnecase:

“Para o jurisconsulto, para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo […] que define: o conjunto de leis que o legislador promulgou para regular as relações dos homens entre si […] As leis naturais ou morais não são, com efeito, obrigatórias enquanto não forem sancionadas pela lei escrita… Ao legislador só cabe o direito de determinar, entre regras tão numerosas e, às vezes, tão controvertidas do direito natural, aquelas que são igualmente obrigatórias […] Dura lex, sed Lex; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei: pois ele é instituído para julgar segundo ela e não para julgá-la. Nada está acima da lei, e eludir suas disposições, sob o pretexto de que equidade natural a contraria, nada mais é do que prevaricar. Em jurisprudência não há, não pode haver razão mais razoável, equidade mais equitativa do que a razão ou equidade da lei” (BOBBIO, 1995, p. 86).

Sabe-se que esta ordem legalista foi severamente contestada, primeiramente, pelas considerações trazidas pela Escola Histórica, que inovou ao afirmar que o direito é fruto de um produto histórico, sujeito a permanente e natural evolução, nem estabelecido arbitrariamente pela vontade dos homens, nem emanado de Deus, mas pela consciência coletiva de dado povo, em determinado território.

Mais tarde, já no século XX, sobre a aplicação do direito, com o seu normativismo jurídico, Hans Kelsen afirmara que:

“A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior, tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou execução que aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer” (KELSEN, 2006, p. 388).

Hart, seguindo o raciocínio, defende que o legislador ao criar uma lei, não consegue trazer ao texto normativo uma plena contemplação dos casos supostamente abarcados pelo objetivo da norma, devendo o juiz, além dos ditames legais, atinar-se às minúcias oferecidas pelo fato[2] objeto de análise.

“Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades. Poderíamos criar normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma. Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência “mecânica”. Esse não é, evidentemente, o nosso mundo; os legisladores humanos não podem ter o conhecimento de todas as combinações possíveis de circunstâncias que o futuro pode trazer” (HART, 2009, p. 166-167).

Nesse diapasão, nota-se que o legislador, como ser humano que é não pode prever todas as minúcias do viver, pois as normas têm um condão de indeterminação, servindo unicamente como uma moldura a ser preenchida pelo intérprete, que investigará a melhor maneira da resolução do caso concreto.

3 Novos tempos e a aplicação do direito

Até as últimas décadas do século passado a aplicação da regra jurídica era inquestionável, sendo os princípios considerados meros valores, participando da aplicação do direito em último caso, quando já esgotadas as perspectivas legais, da analogia e dos costumes.

Contudo, com o inquestionável reconhecimento normativo dos princípios o paradigma foi alterado, exercendo o juiz uma função diversa da de outrora, que se reduzia ao silogismo[3].

Tudo isso foi possível porque a Constituição passou a ocupar, segundo Pedro Lenza (2009), o centro do sistema, devendo os Poderes Públicos, quando da observação e aplicação das leis, além das formas prescritas nesta, estarem em consonância com seu espírito, seu caráter axiológico e seus valores, de maneira a revelar a importância do homem e a sua ascendência a filtro axiológico de todo sistema jurídico.

Noutras palavras, o direito deve passar por uma filtragem constitucional. Para Daniel Sarmento (2010) as normas constitucionais que são irradiadas para os diversos ramos do direito impõe uma releitura dos seus conceitos e institutos, já que se encontram constitucionalizados princípios e valores fundamentais de elevada estatura moral.

Conforme dito no início dessa pesquisa, vivencia-se um Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988. Precisar o significado de Estado Democrático de Direito[4], pela tamanha abstração e generalidade que o termo transmite é um grande desafio, mas pode-se dizer tratar-se de um Estado que congrega os anseios do Estado Liberal e do Estado Social, sem, contudo, deixar de contemplar as reivindicações sociais, políticas e econômicas que o dinamismo social do nosso tempo oferece.

Neste contexto, o magistrado, quando de suas decisões, deverá observar como nunca, fundamentos do nosso Estado como cidadania (art. 1º, II, CF); dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF); pluralismo político (art. 1º, V, CF); além dos objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF); de garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, II, CF); de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF); além do de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF), pois essas previsões normativas não estão na Constituição para torná-la “linda” e “sedutora” aos olhos de quem a lê, tampouco, servir de substrato retórico para a demagogia. Essas normas estão ali para serem cumpridas na resolução dos fatos da vida.

Sabe-se que muitos juízes confundem a premissa, passando por cima de previsões constitucionais e legais, defendendo, unicamente, suas posições pessoais quando de prolações judiciais. Contudo, reduzir a atividade do julgador à boca que pronuncia a letra da lei é no mínimo, um retrocesso, para não dizer outra coisa. O juiz não é onipotente, mas o legislador também não o é. Assim, a regra jurídica tem de ser obervada na resolução do caso concreto, por tratar-se de um ponto de partida, mas dependendo das características de dado caso ela nem sempre será um ponto de chegada, tendo em vista obtenção de uma decisão legítima e racional.

Neste segmento, Daniel Sarmento salienta que:

“Não é esse o lugar propício para discutir a complexa problemática da legitimação democrática da justiça constitucional e articular uma concepção razoável, com começo, meio e fim. Mas talvez seja possível, em breves pinceladas, fazer algumas observações mais gerais e impressionistas sobre como não deve ser esta concepção. Para começar, uma teoria adequada da jurisdição constitucional não deve se basear em abstrações contra-fáticas, por mais sedutoras que pareçam, mas sim em premissas empíricas razoáveis. Neste sentido, é preciso ter em mente que os juízes não são semi-deuses infalíveis, como o Hércules de Dworkin. São, pelo contrário, seres humanos de carne e osso, com defeitos e qualidades, e que, especialmente no Brasil, defrontam-se com uma absurda sobrecarga de processos, que não lhes permite enveredarem-se em profundas discussões morais e filosóficas no julgamento de cada “caso difícil”. Mas a lei, por sua vez, também está muito longe de poder encarnar a “vontade geral” do povo a La Rousseau, sobretudo considerando a tremenda crise da democracia representativa brasileira. Portanto, uma boa teoria não deve mistificar nem o judiciário, nem a lei” (SARMENTO, 2010, p. 192-193).

Veja-se abaixo que uma decisão descontextualizada dos princípios que norteiam o caso, pode causar grandiosas injustiças:

“Inspirado em Perelman, podemos adaptar para o nosso espaço ilustrativo. Em uma estação de metrô, limpa, clara e bem conservada, uma senhora passeava com o seu cachorro que, apertado, fêz cocô. A senhora, apressadamente, não limpou a sujeira do seu animal, deixando no chão aquela coisa desagradável e meio mole. Pouco tempo depois, passou uma outra senhora distraída, pisou naquela coisa, escorregou e se machucou. O incidente rendeu um processo e uma indenização paga pela administração do metrô. Após o fato, a administração baixou uma regra muito clara: “É proibido entrar com cachorro no metrô”. Muitos dias depois, passava pela cidade um circo, e o treinador de animais saiu para passear pela cidade levando na coleira um simpático urso panda filhotinho. No mesmo momento que entrava no metrô, entrava também um cego levando o seu cachorro, um belo labrador branco que o conduzia. O guarda de plantão, vendo a cena e olhando a regra “proibido entrar com cachorro no metrô” abordou o cego e disse: “O senhor não pode entrar com o cachorro no metrô”. O treinador passou tranquilamente com o seu urso, pois urso não é cachorro” (MAGALHÃES, 2006, p. 150).

Corroborando o que fora dito anteriormente e comentado citado caso, José Luiz Quadros de Magalhães (2006) alude que a leitura gramatical descontextualizada que deturpa o sentido da norma causa grande problema. No caso acima, por mais que a norma mencione um cachorro, é óbvio ter a finalidade de impedir que animais que não façam xixi e cocô no banheiro o façam no chão do metrô. E no que diz respeito ao cego, ele tem um direito constitucional maior, a liberdade de locomoção, superior à regrinha da administração do metrô, e como ele necessita do cachorro para se locomover não pode ser impedido de entrar com o cão no metrô.

Note-se que (SARMENTO, 2010) as diversas previsões normativas constitucionais abstratas e genéricas, no que tange o processo de legitimidade das decisões judiciais, exigirão do intérprete, no processo de filtragem constitucional, procedimentos hermenêuticos mais complexos, como interpretações construtivas e ponderações, nos quais o julgador terá uma participação mais ativa na definição da norma a ser aplicada a cada caso concreto, obervadas as suas minúcias.

Nesse mundo, encontra-se inserida uma teoria Constitucional que domina toda a aplicação do direito. E uma teoria Constitucional minimamente comprometida com a democracia deve reconhecer que a Constituição deixa vários espaços de liberdade, tratando-se de diretriz vinculativa para toda a produção e aplicação do direito, bem como para que a autonomia privada da pessoa humana possa ser exercitada (BARROSO, 2006).

Luís Roberto Barroso (2006) já havia alertado que as principais marcas do pós-positivismo são a ascensão dos valores e o reconhecimento normativo dos princípios, tendo fundamentado que a dogmática tradicional fomentou-se sob o mito da objetividade do Direito e da neutralidade do intérprete, encobrindo seu caráter ideológico e sua instrumentalidade à dominação econômica e social.

Nesse viés, trata-se de uma falácia o discurso de que o intérprete nada mais faz do que procurar no “catálogo legal” a regra aplicada ao caso, pois a neutralidade axiológica do intérprete é inalcançável. Ora, se o aplicador do direito jamais se desfaz de sua figura humana no exercício de suas funções, logo, impossível despir-se, igualmente, de seus complexos, traumas e crenças.

Mas isso não o impede de julgar de forma imparcial, desde que as decisões adotadas sejam devidamente justificadas por argumentos (SARMENTO, 2010) limitados por normas constitucionais e legais como ampla defesa, contraditório, prazos processuais e procedimentos processuais, demonstrando não só as partes do litígio, mas ao público em geral, que o resultado alcançado é o que mais se adequa à ordem jurídica e às peculiaridades do caso.

O mesmo autor frisa que:

É verdade que a legitimidade das decisões judiciais não decorre da sua aprovação popular, mas da sua efetiva correspondência à ordem jurídica. Por isso, o fato de alguma decisão que promova a constitucionalização do ordenamento contrariar a maior parte da população não basta para infirmar a sua legitimidade, inclusive porque uma das funções do constitucionalismo é exatamente a de proteger princípios superiores da miopia e do arbítrio das multidões (SARMENTO, 2010, p. 91).

Rodolfo Viana Pereira (2007), neste diapasão, assevera que a atividade de compreensão, interpretação e aplicação do direito é reflexo de uma renovação na tradição do constitucionalismo, por pretender sublinhar o respeito ao pluralismo, matizando a regulamentação da convivência pública, não só como afirmação plena da juridicidade, mas, também, como fruto da solidariedade política, preservando tanto a autonomia individual como a virtuosidade do debate entre as distintas concepções de mundo, entre os distintos projetos de vida plasmados pela ordem constitucional concreta.

Nesse contexto, pode-se afirmar que o bom direito jamais poderá ser entendido sem se recorrer a pressupostos fáticos e a uma dinâmica teórico-filosófica-Constitucional. Tudo isso proporcionará ao intérprete plenas condições de enxergar o que se defende na vida prática, afastando-o da hipótese de ser um mero expectador, conferindo-lhe uma posição crítica e racional, nos moldes normativo-jurídicos.

4 Neutralidade, imparcialidade e casos concretos

Corroborando a discussão em vértice, cabe trazer a tona casos que efetivamente demonstrem, em uma análise real, a aplicação dos conceitos ora defendidos. Ou seja, fatos aptos a demonstrar que o julgador é capaz de passar a sua visão de mundo para a sentença (não ser neutro), sem desrespeitar, todavia, as normas jurídico-legais (ser imparcial) e a racionalidade.

4.1 Juiz do estado Rio de Janeiro usa mulheres do big brother e o futebol carioca para fundamentar sua decisão

No processo de nº. 2008.014.010008-2, que tramitou no juizado especial de uma comarca no Estado do Rio de Janeiro, tendo as Casas Bahia como ré, em que a parte autora (consumidora) pleiteou uma indenização por sentir-se lesada, tendo em vista um aparelho televisor defeituoso, pode-se encontrar um exemplo clássico do que aqui se discute, pois o juiz, ao prolatar a sentença que condenou a parte ré a pagar indenização a título de dano moral no valor de R$ de 6.000,00 (seis mil reais), esboça categoricamente, o que se pode denominar como sua “opinião”. Segue a decisão:

“Sentença Processo nº: 2008.014.010008-2: Foi aberta a audiência do processo acima referido na presença do Dr. CLÁUDIO FERREIRA RODRIGUES, Juiz de Direito. Ao pregão responderam as partes assistidas por seus patronos. Proposta a conciliação, esta foi recusada. Pela parte ré foi oferecida contestação escrita, acrescida oralmente pelo advogado da Casas Bahia para arguir a preliminar de incompetência deste Juizado pela necessidade de prova pericial, cuja vista foi franqueada à parte contrária, que se reportou aos termos do pedido, alegando ser impertinente a citada preliminar. Pelo MM. Dr. Juiz foi prolatada a seguinte sentença: Dispensado o relatório da forma do art. 38 da Lei 9.099/95, passo a decidir. Rejeito a preliminar de incompetência deste Juizado em razão de necessidade de prova pericial. Se quisessem, ambos os réus, na forma do art. 35 da Lei 9.099/95, fazer juntar à presente relação processual laudo do assistente técnico comprovando a inexistência do defeito ou fato exclusivo do consumidor. Não o fizeram, agora somente a si próprias podem se imputar. Rejeito também a preliminar de ilegitimidade da ré Casas Bahia. Tão logo foi este fornecedor notificado do defeito, deveria o mesmo, na forma do art. 28, § 1º, da Lei 8078/90, ter solucionado o problema do consumidor. Registre-se que se discute no caso concreto a evolução do vício para fato do produto fornecido pelos réus. No mérito, por omissão da atividade instrutória dos fornecedores, não foi produzida nenhuma prova em sentido contrário ao alegado pelo autor-consumidor. Na vida moderna, não há como negar que um aparelho televisor, presente na quase totalidade dos lares, é considerado bem essencial. Sem ele, como o autor poderia assistir as gostosas do Big Brother, ou o Jornal Nacional, ou um jogo do Americano x Macaé, ou principalmente jogo do Flamengo, do qual o autor se declarou torcedor? Se o autor fosse torcedor do Fluminense ou do Vasco, não haveria a necessidade de haver televisor, já que para sofrer não se precisa de televisão. Este Juizado, com endosso do Conselho, tem entendido que, excedido prazo razoável para a entrega de produto adquirido no mercado de consumo, há lesão de sentimento. Considerando a extensão da lesão, a situação pessoal das partes neste conflito, a pujança econômica do réu, o cuidado de se afastar o enriquecimento sem causa e a decisão judicial que em nada repercute na esfera jurídica da entidade agressora, justo e lícito parece que os danos morais sejam compensados com a quantia de R$ 6.000,00. Posto isto, na forma do art. 269, I, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido, resolvendo seu mérito, para condenar a empresa ré a pagar ao autor, pelos danos morais experimentados, a quantia de R$ 6.000,00 (seis mil reais), monetariamente corrigida a partir da publicação deste julgado e com juros moratórios a contar da data do evento danoso, tendo em vista a natureza absoluta do ilícito civil. Publicada e intimadas as partes em audiência. Registre-se. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquivem-se os autos. Nada mais havendo, mandou encerrar. Eu, Secretário, o digitei. E eu, Resp. p/ Exp.,subscrevo” (ULTIMA INSTANCIA, 2010, [S.N.]).

Note-se a priori que o magistrado estabeleceu o aparelho de televisão como sendo um bem de uso essencial, uma vez estar presente em quase que na totalidade dos lares brasileiros, sendo por isso, indispensável ao indivíduo (sujeito de direito). Por conta disso, o autor da ação estaria notadamente lesado, já que, por ter comprado um aparelho defeituoso, não poderia ver as mulheres do reality show Big Brother Brasil, as quais denominou “as gostosas do big brother”.

Na sequência, demonstrando, igualmente, a sua visão de mundo, o julgador corrobora a tese pelo cabimento indenizatório citando como algo de suma importância o fato de o autor ser torcedor do Flamengo, afirmando, por conseguinte, que caso o autor fosse torcedor do Vasco ou do Fluminense não teria a necessidade de ter televisão, pois bastaria tal fato para sofrer, não precisando para tanto de um aparelho televisor.

Ora, apesar desta fundamentação, pelo que se viu em outros pontos da decisão, conclui-se que às partes foram conferidas as mesmas oportunidades jurídicas, para que postulassem em juízo as suas pretensões. Pôde-se visualizar que as Casas Bahia, mesmo sucumbindo neste pleito, ofereceu contestação escrita e oral, arguindo em preliminar de contestação a incompetência do juizado especial sustentando suposta necessidade de prova pericial, sendo, posteriormente, franqueada vista a parte autora para se manifestar acerca de tal pretensão, que se valeu dos termos da inicial para fundamentar a impertinência de tal preliminar.

Enfim, pelo disposto, pode-se concluir (facilmente até), que a conduta do juiz ao trazer à sentença sua visão de mundo, inclusive manifestando sua preferência futebolística e grande admiração pelos atributos físicos das componentes daquele reality show, não feriu em momento algum os preceitos normativo-jurídicos, pois antes disso, ofertou aos patronos condições igualitárias de se manifestarem no processo, bem como corroborou sua decisão em dispositivos da Lei nº. 9.099/95 e no Código de Defesa do Consumidor, além do que fora sustentado pelo autor na inicial, dando ensejo, portanto, aos ditames estabelecidos pela ordem jurídica.    

4.2 “Furto” de duas melancias: juiz manda soltar os dois réus com fundamentação inusitada

Seguindo a premissa aqui defendida, importa apresentar mais um caso em que o magistrado demonstra a ausência de neutralidade axiológica do intérprete sem violar a imparcialidade inerente a sua atividade.

“Decisão proferida pelo juiz Rafael Gonçalves de Paula nos autos nº 124/03 – 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO: DECISÃO: Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão. Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional),… Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia,…. Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.  Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo. Expeçam-se os alvarás. Intimem-se. Palmas – TO, 05 de setembro de 2003. Rafael Gonçalves de Paula. Juiz de Direito” (MEIRA, 2010, [S.N.]).

O Magistrado da 3ª Vara Criminal de Palmas Tocantins, ao decidir sobre a liberdade dos acusados de terem furtado duas melancias, inova e representa na íntegra o que se deve interpretar acerca dos conceitos de neutralidade e imparcialidade.

Após relatar brevemente o caso, observando que o Ministério Público pugnou pela manutenção da prisão dos acusados, o juiz invoca em sua decisão, além de argumentos inerentes à dogmática jurídica, uma sensível percepção da realidade que nos envolve. Sua decisão fundamenta-se nos princípios da insignificância ou bagatela, da intervenção mínima, do direito Alternativo, no furto famélico, bem como aclama pela condição social dos acusados e da injustiça que seria mantê-los presos, na contramão de estarem livres e impunes os corruptos de colarinho branco, que extraviam milhões e milhões de reais. Ademais, destacou, inclusive, que seria de um risco considerável colocar tais indiciados na Universidade do Crime, fazendo uma referência lógica e objetiva ao sistema penitenciário nacional.

Fugindo completamente do que se vê no dia a dia, o juiz se vale de orientações que extrapolam a fundamentação jurídica tradicionalmente conhecida, ao citar as promessas do governo brasileiro e a sua ineficiência. O magistrado expressa, da mesma forma, a sua indignação pessoal ao criticar as pretensões neoliberais, a utopia socialista e o modelo capitalista de exploração do trabalhador. Por fim, após assumir que diante de tal lógica sua capacidade de argumentar era desnecessária ou “medíocre”, conclui que tantos são os fundamentos justificadores da concessão de liberdade dos acusados que simplesmente manda soltar os indiciados, permitindo a quem quisesse apontar o motivo.

Enfim, é notório tratar-se essa decisão de um desabafo do magistrado quanto às condições sociais, políticas e econômicas mundiais e do nosso país. Ou seja, a ausência de neutralidade salta aos olhos. Destarte, muito embora o magistrado não tenha sido neutro, nada demonstra que sua conduta tenha afrontado a ordem jurídica. Logo, é possível ser imparcial sem ser neutro. Até porque, a neutralidade, conforme sustentado nesta pesquisa, trata-se de algo impossível (inatingível) aos juízes, seres humanos que são.

5 Considerações finais

No mundo jurídico atual, os direitos humanos parecem ser o único consenso ético-político. Esse paradigma impõe a necessidade de se saber como esses direitos se legitimam frente aos problemas contemporâneos e as atividades dos órgãos legislativo, executivo e, principalmente, judiciário.

A Constituição Federal de 1988 revela (SARMENTO, 2010) um profundo compromisso com os direitos humanos, contendo o que talvez seja o mais amplo elenco de direitos fundamentais do constitucionalismo mundial, composto não só por liberdades civis clássicas, como também por direitos econômicos e sociais, incorporando, igualmente, direitos como o meio ambiente e a proteção à cultura.

Nesse quadrante e após desenvolvimento dessa pesquisa, pudemos chegar a algumas conclusões.

Os conceitos de neutralidade e imparcialidade não podem ser confundidos à luz da ciência jurídica ou do direito, por mais que os dicionários possam indicá-los como sinônimos.

O juiz, quando da efetivação da função judicante, não consegue despir-se de seus valores, traumas, convicções filosóficas, ideológicas e crenças, pois tais fatores são inerentes ao ser humano. Assim, a neutralidade axiológica do intérprete é impossível.  

Nada impede, contudo, que o juiz exerça sua atividade de forma imparcial ainda que não detenha uma neutralidade axiológica, pois a imparcialidade está ligada ao respeito aos ditames normativo-jurídicos como devido processo legal, ampla defesa, contraditório, fundamentação das decisões judiciais, previsões legais, ritos e prazos processuais.

É óbvio que se o juiz julga dada contenda, utilizando-se de conceitos axiológicos pessoais, sem oferecer às partes igualdade de armas, contempladas em normas constitucionais e legais, bem como, sem ater-se às características do caso concreto e às provas produzidas, seu julgado será flagrantemente parcial, violando o princípio da imparcialidade.

Entretanto, se o juiz oferece às partes as mesmas possibilidades a partir das normas constitucionais e legais e, dentro das provas produzidas transmite a sua visão de mundo por meio da sentença, não será parcial, desde que demonstre fundamentadamente a todos (partes e público em geral) que o resultado alcançado é o que mais se adequa à ordem jurídica e às peculiaridades do caso.

O cenário jurídico contemporâneo já não admite a confusão entre os conceitos aqui estudados, pois o Estado Democrático de Direito prima pela declaração, proteção e efetivação de direitos para todos, independentemente de raça, credo, etnia e sexo. Logo, como o mundo é extremamente plural, as pessoas têm diferentes visões de mundo, podendo essas visões ser contempladas e protegidas pelo ordenamento jurídico, que prevê normas de conteúdo abstrato e indeterminado como dignidade da pessoa humana, cidadania, igualdade, liberdade, entre inúmeros outros.

Nesse contexto, o direito deve ser aplicado de modo a ajustar-se aos direitos fundamentais e às reivindicações sociais, políticas e econômicas do sujeito de direito e obrigações, segmento no qual a neutralidade do julgador é impossível, mas isso, não necessariamente, ultraja sua imparcialidade.

 

Referências
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Notas:
 
[1] Ao que tudo indica a aplicação do Direito em nosso tempo que se deu de uma maneira legalista, havendo necessidade de uma lapidação é da Escola legalista da Exegese, aplicada sob o manto do Positivismo Jurídico. O positivismo jurídico foi e continua sendo estigmatizado por elementos que não lhes são peculiares, uma vez que o legalismo exacerbado por nós vislumbrado representa em verdade os ditames doutrinários da Escola da Exegese e não os preceitos daquele. 

[2] Mar Weber já havia vislumbrado essa assertiva quando mencionara no texto Ordem Jurídica e Ordem Econômica, Direito Estatal e Extra-Estatal que a tarefa da ciência jurídica (de um modo preciso, a jurídico-dogmática) consiste em investigar o reto sentido dos preceitos cujo conteúdo se apresenta como uma ordem determinante da conduta de um círculo de homens, demarcando de alguma maneira, isto é, em investigar as situações de fato subsumidas nesses preceitos e o modo de subsumi-las. WEBER, Max. Ordem Jurídica e Ordem Econômica, Direito Estatal e Extra-Estatal. In: Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (Organizadores). São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2005, p. 117.

[3] Quanto ao silogismo, Tércio Sampaio Ferraz Junior assim alude: (a) normal (geral) funciona como premissa maior; (b) a descrição do caso conflitivo, como premissa menor; e (c) a conclusão, como ato decisório stricto sensu. Essa operação valeria não apenas para a obtenção de sentenças judiais, mas também para decisões administrativas e, no sentido de que o legislador, ao emanar leis, aplica a Constituição, também para as decisões legislativas. Entretanto, reduzir o processo decisório a uma construção silogística o empobrece e não o revela em sua maior complexidade. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 330.

[4] As definições de Estado Democrático de Direito e de Lênio Luiz Streck e José Luiz Bozan de Morais, e, José Afonso da Silva Muito contribuíram para chegarmos ao que alegamos. Segundo Lênio Luiz Streck e José Luiz Bozan de Morais, o Estado Democrático de Direito tem como princípios a constitucionalidade, entendida como vinculação deste Estado a uma Constituição, concebida como instrumento básico de garantia jurídica; a organização democrática da sociedade; um sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, de modo a assegurar ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, bem como proporcionar a existência de um Estado amigo, apto a respeitar a dignidade da pessoa humana, empenhado na defesa e garantia da liberdade, da justiça e solidariedade; a justiça social como mecanismo corretivo das desigualdades; a igualdade, que além de uma concepção formal, denota-se como articulação de uma sociedade justa; a divisão de funções do Estado a órgãos especializados para seu desempenho; a legalidade imposta como medida de Direito, perfazendo-se como meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo de normas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; a segurança e correção jurídicas. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do Estado. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 97-98. Já para José Afonso da Silva, reforçando o raciocínio, o Estado Democrático de Direito visa à promoção de um processo de convivência social numa sociedade, livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses distintos da sociedade, há de ser um processo de libertação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de direitos individuais, coletivos, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas, suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 119-120.


Informações Sobre os Autores

Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE

Jadson de Oliveira Barbosa

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – FADILESTE


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