A identificação, ou melhor, a individualização do ser humano dentro de uma nação, uma sociedade ou mesmo dentro do seio familiar é fundamental pelos reflexos jurídicos dela surgidos, notadamente afetos à responsabilidade civil e criminal pessoal ou de seu representante legal.
O Governo, então, vem buscando ao longo do tempo aperfeiçoar os documentos e métodos de identificação, não somente civil como criminal. Para tanto, iniciou tal processo com a imposição aos pais de efetuarem o registro do nascimento do filho, obtendo assim a respectiva certidão de nascimento.
Levando-se em consideração que ao Cartório de registro civil é necessário “prova” efetiva de comprovação do nascimento para viabilização do registro, e abstraindo-se aqueles casos, hoje raros, de nascimentos que não ocorrem em instituição hospitalar (em que a prova do nascimento se dá por meio testemunhal), grosso modo, pode-se considerar a “Declaração de Nascido Vivo” que, por determinação do Ministério da Saúde, é preenchida pela administração do hospital e/ou maternidade onde ocorrido o parto, como o primeiro documento de identificação civil, apto a individualizar o indivíduo.
A preocupação governamental em identificar e individualizar os integrantes da sociedade, como já referido, vem aumentando quase que na mesma proporção do crescimento populacional. Isto porque, diariamente são descortinadas situações de homônimos perfeitos que causam transtornos não somente ao governo que muitas vezes é induzido em erro, como para os próprios cidadãos que, por exemplo, na esfera civil podem ser privados de um direito (exercido irregularmente por outra pessoa) e na criminal pode levar à responsabilização de inocentes.
Prova do empenho do Governo na busca da excelência quanto à identificação dos integrantes da sociedade está na publicação recente da lei n° 12058/09, de 13/10/09, que deu nova redação a artigos da lei n 9.454/97, que instituiu, no âmbito da República Federativa do Brasil, o número único de Registro de Identidade Civil. Também, pela publicação da nova lei acerca da identificação criminal do civilmente identificado, regulamentando o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal e objeto deste singelo trabalho.
Vale lembrar que na Constituição outorgada em 1937 simultaneamente à implantação do regime ditatorial do Estado Novo, apenas 15 (quinze) itens resguardavam os direitos e garantias individuais do cidadão brasileiro. Em menos de 10 anos e no vácuo da edição do Código Penal, veio ao ordenamento jurídico o Código de Processo penal com determinação expressa para que a autoridade policial ordenasse a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico (grifo meu), sempre que possível[1]. Ou seja, independentemente da identificação civil e de se apresentar necessário, sempre que possível estava a autoridade policial compelida a identificar o envolvido, no que já se poderia entender como “identificação criminal”.
Evidente que tal imperativo legal trouxe inconformismo aqueles que estavam sendo submetidos á identificação datiloscópica, ainda que apresentassem o devido documento de identificação civil. Assim, os Tribunais Estaduais estavam concedendo habeas corpus[2] isentando de identificação criminal aquele já identificado civilmente ao arrepio das decisões reiteradas do STF[3], inclusive sumulada em 1977:
“Súmula nº 568 – 15/12/1976 – DJ de 3/1/1977, p. 3; DJ de 4/1/1977, p. 35; DJ de 5/1/1977, p. 59. “A identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente”.”
Mas a ordem constitucional vigente era ditatorial, o que lógica e evidentemente fez com que o supramencionado dispositivo legal fossE utilizado pelas autoridades policiais de forma abusiva e desregrada. Da edição do CPP até que novamente houvesse alguma previsão legal acerca da identificação criminal transcorreram mais de 40 (quarenta) anos, reinando absoluta a Súmula em questão. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal foi além e reconheceu a identificação fotográfica como parte da identificação criminal, estando abrangida pelo inciso VIII do art. 6° do CPP:
“Recurso Extraordinário Re 94491 RJ (STF): identificação criminal. na identificação do indiciado (CPP, Art-6., VIII) inclui-se a fotografia, como elemento útil não só ao serviço de estatística criminal…, para cassar a segurança. Inquérito policial, identificação criminal. Indiciado.”
Mas a evolução da sociedade já vinha demonstrando ser cada vez mais insustentável tal entendimento, o que ficou claro com a promulgação da Carta Magna de 1988. Assim, ficou constitucionalmente garantido o direito do cidadão civilmente identificado de não ser submetido à identificação criminal (art. 5, inciso LVIII).
O legislador constituinte, contudo, entendeu por bem reservar à legislação infraconstitucional, a árdua tarefa de estabelecer as regras permissivas da identificação criminal, o que logo fez surgir divergências doutrinárias quanto à classificação daquele dispositivo constitucional.
De um lado e minoritariamente aqueles que, citados por FERNANDO CAPEZ [4] sustentavam que “o preceituado no inciso LVIII do art. 5º da Lei Maior não é auto-executável, ficando, pois, na dependência de lei regulamentadora”. De outro a grande maioria que, no dizer MIRABETE[5], entendiam que aquela norma constitucional proibitiva “é norma de aplicabilidade imediata e eficácia contida, tendo eficácia plena até que o legislador ordinário edite a lei restritiva”.
De qualquer sorte, na esfera jurisprudencial se viu obrigado a Corte maior a revogar a Súmula até então amplamente aplicada e adequar os julgamentos ao novo ditame constitucional, a saber:
“IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL QUE NÃO SE JUSTIFICA, NO CASO, APÓS O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR O CANCELAMENTO DA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO RECORRENTE. STF. Julgamento em Habeas Corpus: RHC 66471/SP. Julgado em 27/02/89”
E nesta esteira por longos anos o legislador ordinário se absteve de enfrentar direta e especificamente a questão da identificação criminal do civilmente identificado. Até a publicação da lei 10.054/00, que disciplinou integralmente a matéria, inicialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente fez referência ao instituto, mas apenas para reafirmar o contido no texto constitucional, não apresentado hipótese de exceção. Já a lei 9.034/95 que tratou da utilização dos meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, trouxe a exceção inaugural em seu art. 5° ao permitir a identificação criminal de pessoas envolvidas com organizações criminosas, mesmo que já identificado civilmente.
Após longa tramitação, foi publicada a lei da identificação criminal (lei n° 10.054/00) que, apesar de concisa, regulamentou de forma específica a matéria. Assim e a partir dela a identificação criminal passou a ser obrigatória para os indiciados ou acusados de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, de receptação qualificada, contra a liberdade sexual ou de falsificação de documento público; diante da fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade; diante da precária conservação do documento ou elástico lapso temporal de expedição, que causem impossibilidade da completa identificação de caracteres essenciais; documento de identificação comprovadamente extraviado ou não fazer prova o indiciado ou acusado, em 48 horas, de sua identificação civil.
O efeito imediato da entrada em vigora da lei 10.054/00 foi a revogação tácita do art. 5° da lei 9.34/05, vez que a nova lei, além de ser específica, regulamentou integralmente a matéria. De resto, as investigações policiais e os processos penais vinham adaptando-se às novas regras que agora incluíam expressamente a identificação fotográfica como parte integrante da identificação criminal, somando-a ao registro de impressões datiloscópicas. Neste particular, cabe aplausos ao legislador ordinário que deu a devida importância à identificação fotográfica, como bem referiu Emerson Went[6]: “cumpre mencionar que é um grande instrumento público contra o aumento da criminalidade, porquanto várias identificações de autores de crimes são feitas com base nos arquivos de fotografias das Delegacias de Polícia do Brasil inteiro”.
No que pertine à identidade civil, a referida lei considerava identificado civilmente aquele que apresentasse documento de identidade reconhecido pela legislação. Neste particular foi impreciso o legislador, tendo em vista os diversos tipos de cédulas identificações fornecidas por órgão de classe que valem como identificação em todo o território nacional, mas como identidade funcional e não identificação civil. Esta há de ficar restrita ao que dispõe a lei nº 7.116/83, que regulamenta a expedição das Carteiras de Identidade, como documento hábil para identificar civilmente cada cidadão.
Tal lacuna foi perfeitamente preenchida com publicação da lei 12.037/09, que expressamente revogou a lei de identificação criminal anterior. Agora está perfeita e claramente estabelecido quais são os documentos admitidos não como identidade civil, mas como forma de identificação civil, apta a afastar a obrigatoriedade da identificação criminal.
De forma salutar a nova lei deslocou o foco da identificação criminal da conduta praticada pelo criminoso (o que permitia a identificação criminal nos casos de prática de determinadas espécies de crime) para a identificação civil propriamente dita. Isto quer dizer que não importa, a princípio e objetivamente, o tipo de crime que cometeu o preso, investigado ou processado, se atestar a sua identificação civil com a apresentação de qualquer dos documentos arrolados no art. 2° da lei 12.037/09, será considerado civilmente identificado, não podendo ser submetido a identificação criminal.
Evidentemente que toda regra apresenta sua exceção. Com a nova lei ocorreu o mesmo. Reconhecendo ser admissíveis situações em que o documento apresentado pode trazer indícios de falsidade, possuir dados ilegíveis ou insuficientes, autorizou em tais circunstâncias a realização da identificação criminal. Tendo feito o mesmo nos casos em que constar em registros policiais que o ora identificado já se utilizou de outros nomes ou diferentes dados qualificativos.
Outra grande inovação está no dizer inciso IV do mesmo art. 2°. Isto porque permite a identificação criminal mesmo quando o sujeito apresenta documento de identificação civil íntegro e inexistam registros policiais dando conta de utilização de nomes e dados qualificativos diversos. Sendo, pois, uma regra de exceção legal, dentro de uma exceção constitucional, somente poderá ser aplicada nos casos em que a identificação criminal seja essencial à investigação criminal.
Ao leitor desatento poderia parecer que caberia tanto à autoridade policial, como presidente da investigação, como ao Ministério Público, na qualidade de titular da ação penal tombar a identificação como essencial em cada caso concreto para que tal diligência fosse providenciada. Mas na esteira do direito penal cada vez mais garantidor, atribuiu o legislador ordinário exclusivamente à autoridade judiciária autorizar a identificação criminal nos casos em que seja essencial à investigação, situação que poderá ser declarada de ofício ou atendendo a requerimento do Ministério Público, da autoridade policial e também do próprio defensor.
Para encerrar estas singelas considerações e sem a mínima pretensão de esgotar o tema, cabe novamente reconhecer a inteligência da lei quando, ao invés de somente disciplinar a exceção constitucional, foi além permitindo que o acusado solicite a retirada de sua identificação criminal do inquérito policial ou do processo penal nas hipóteses arroladas pelo art 7° da recente lei.
A fim de propiciar ao leitor uma visão global do tema, segue um quadro comparativo do texto legal revogado e das novas disposições legais:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Graciela Gallego Aquino
Agente de Polícia Federal, professora universitária, pós graduada em Direito Penal e em Execução de Políticas de Segurança Pública.