1. Introdução
No presente trabalho tentamos apresentar um esboço filosófico em torno dos valores, princípios, regras e postulados que permeiam o Direito e, especificamente – mas não exclusivamente –, o Direito do Trabalho no Brasil. Ao fazermos referência a “esboço filosófico” não nos referimos ao sentido literal da idéia de filosofia que seria a intensão de ampliar incessantemente a compreensão da realidade. O objetivo é apenas apresentar um trabalho racional, lógico e sucinto sobre tais questões. Trata-se, assim, de um estudo propedêutico e – acreditamos – de suma importância para uma melhor compreensão dos institutos que permeiam as ciências jurídicas de um modo geral.
Tentaremos expor as questões de forma didática com a finalidade de facilitar a compreensão do leitor que ao percorrer o presente trabalho se sentirá forçado a (re)pensar por categoria. Por tal razão, sugerimos a divisão deste tema em três momentos: uma breve definição das espécies normativas em análise, para nos familiarizarmos com cada uma; a interligação dessas espécies com os valores; e, por fim, o modo em que os valores se realizam no Direito do Trabalho no Brasil através da interação das espécies normativas.
2. As espécies normativas – definições preliminares
A importância da definição das espécies normativas – categorias – não está na definição em si, mas na sua correta compreensão para uma conseqüente correta aplicação. São as espécies normativas que impulsionam o Direito e sendo este um “saber prático” que visa um fim, parte-se do pressuposto que o “Direito” só é “Direito” quando aplicado corretamente.
O objetivo de uma correta definição é na verdade buscar uma clareza conceitual, uma melhor compreensão destes fenômenos tanto pelo aplicador do direito, que os manipula, como para que este seja compreendido pelos seus destinatários[1].
2.1. Princípios
De modo geral, tem-se por definição de princípio o “1. momento ou local ou trecho em que algo tem origem; começo. 2. Causa primária. 3. Elemento predominante na constituição de um corpo orgânico. 5. Base; germe. 7. Origem de algo, de uma ação ou de um conhecimento.”[2].
Todavia, embora não distante deste conceito geral, o que nos interessa para o presente trabalho é o significado de “princípio” perante o Direito.
A doutrina pacificamente, e de forma unânime, descreve princípios como proposições básicas ou diretrizes de comportamento que fundamentam uma ciência, sendo, assim, seus alicerces. Portanto, os princípios jurídicos são enunciados que servem de inspiração ao legislador para elaborar as leis, assim como servem ao intérprete para aplicá-las, seja para pautar esta interpretação, seja para sanar omissões[3].
Podemos ainda definir os princípios como normas (base fática + sanção) abstratas de função valorativa. Não geram aplicação específica, mas iluminam o aplicador do direito que busca um fim. Direcionam-se ao intérprete e expressam valores. Assim, princípios são normas imediatamente finalísticas.
No magistério de CARMEN CAMINO, “o princípio traduz uma ideologia pautada por valores”[4].
2.2. Regras
As regras são normas de conduta (liberdade +consciência) do ordenamento jurídico que prescrevem imperativamente uma exigência determinada com a finalidade de que algo seja observado. As regras impõem, proíbem ou permitem certa conduta[5].
Desta forma, as regras direcionam-se a todos, têm figura típica e ao contrário dos princípios são concretas, possuindo caráter imediatamente instrumental, ou seja, descritivo de comportamento.
Em suma, regras são espécies normativas sancionadoras e coercitivas.
Tal afirmativa, no entanto, não autoriza confundir, por si só, as regras com a lei. Como sustenta HUMBERTO ÁVILA, entre texto e norma não há uma correspondência biunívoca, visto que de um dispositivo podemos retirar várias normas ou de vários textos apenas podemos extrair uma única norma, bem como pode haver norma sem dispositivo ou dispositivo sem norma[6].
As regras podem surgir do texto através da construção e reconstrução do seu significado. O intérprete não descreve significados, ele os constrói e reconstrói através da interpretação do uso da linguagem que varia no tempo, mesmo que reconheçamos limites textuais mínimos que devem ser observados por já incorporados ao uso comum da linguagem. Assim, por ser a norma construída pelo intérprete é que se afirma que o texto não contém regra ou princípio. Esses despendem de valores que não estão no texto, mas na consciência do intérprete, observados os fins de direito e a busca dos bens jurídicos, de modo que definir as normas como princípios ou regras depende da colaboração construtiva do intérprete[7].
2.3. Postulados
A definição de “postulado” como nova espécie normativa – ou “metanorma”[8] – tem relevo de destaque na já referida obra de HUMBERTO ÁVILA sobre a teoria dos princípios.
HUMBERTO ÁVILA busca separar na figura de postulados certas máximas defendidas pela doutrina ora como regras ora como princípios, especialmente a “igualdade”, “razoabilidade” e a “proporcionalidade”.
Mas o que vem a ser postulados para HUMBERTO ÁVILA? Porque estabelecer uma categoria autônoma que não se confunde com “regra” ou “princípio”?
A resposta à primeira indagação já nos esclarece a segunda.
Para HUMBERTO, os postulados normativos seriam normas de “segundo grau” que não impõem um fim ou um comportamento específico, mas estruturam o dever de realizá-lo. São descrições estruturantes da aplicação de outras normas cuja função é otimizar e efetivizar princípios e regras[9]. Desta forma, os postulados não se confundem com os princípios nem com as regras porque não buscam um “fim” nem estabelecem uma “conduta”.
Há quem discorde desta minuciosa classificação, como é o caso do professor INGO W. SARLET, o qual, em palestra realizada em 23.09.06 no ”Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro”, afirmou que “pela sua conexão com o mundo da moral e dos valores, os princípios e os direitos fundamentais exercem a função de critérios de legitimação da Constituição e do Direito. Já por esta razão resistimos tanto ao entendimento de que possam existir princípios eminentemente formais quanto à possibilidade de se ter postulados no campo do Direito” e, embora reconheça que a “proporcionalidade” não guarda exata sintonia com determinadas concepções sobre princípios e regras – como bem examina HUMBERTO ÁVILA na obra já citada – arremata concluindo que não se deveria “desconsiderar que a proporcionalidade (como manifestação da justiça no plano concreto) é sim também um estado, uma situação a ser alcançada, de tal sorte que a noção de proporcionalidade não deixa de ter, assim como os princípios (embora o mesmo, ainda que de modo diferenciado, possa ser dito em relação às regras!) uma dimensão finalística, pois é também um estado a ser alcançado pelo aplicador do direito”.
Entretanto, e a par da discussão ideológica entre um ou outro pensador, preferimos retomar ao início do trabalho para frisar que o objetivo de bem delimitar as categorias normativas é buscar uma clareza conceitual para uma melhor compreensão dos fenômenos tanto pelo aplicador do direito como para o destinatário deste. Em razão disso, preferimos manter separadas essas três categorias normativas.
3. A interligação dos valores com as espécies normativas.
Assim como a prévia e breve definição das espécies normativas, necessário também apresentarmos um entendimento do que seja “valor”.
Antes de mais nada, temos que “valor” diz respeito a um objeto e por isso é algo absoluto; provido de essência própria. Desta premissa podemos dizer que valor, por ser absoluto, não se confunde com “escolha”, “preferência”, “opção”, pois tais categorias são de enfoque subjetivo.
Os “valores” são descritos como fins, como o bem, o bom e o belo. Valor é aonde se quer chegar. Assim, identifica-se um valor pela idéia de fim – é uma causa final.
A axiologia é a parte da filosofia que estuda os valores e sob este prisma axiológico os conceitos se caracterizam por uma idéia intrínseca do que é bom. Assim, ROBERT ALEXY defende que a diferença entre princípio e valor pode apoiar-se numa idéia essencial do que seja valor, de modo que, em suas palavras, “… se toma em cuenta uma diferencia fundamental em el uso de la palavra ‘valor’: la diferencia entre la determinación que algo tiene um valor y algo que es un valor”[10].
Destarte, valor é aquilo que é (bom, belo, justo etc.), ao passo que princípio corresponde a aquilo que deve ser, ou seja, aquilo que se busca alcançar – “o fim”. Enquanto o princípio é o caminho, o valor é a chegada. Exemplificadamente, e partindo dessa premissa, bem como tendo ciência de que o objetivo do direito é alcançar a justiça, podemos concluir que a justiça é o valor do direito, e o caminho para se alcançar esta é o justo. Deste modo, não há como dissociar “direito” de “justiça”.
É bom ressaltar que o fato de se afirmar que o valor é absoluto não se está em momento algum a sustentar ou concordar com a idéia de que o conceito de um valor seja algo absoluto que possa ser universalmente aceito. A “justiça”, por exemplo, é absoluta enquanto valor, mas relativa na sua interpretação. Para ilustrar tal assertiva, tomemos como exemplo a “dignidade humana” que em qualquer nação é admitida como sendo um valor universal – aliás, o maior de todos os valores, de onde emergem os demais. A “dignidade humana”, que traduz o valor “felicidade”, enquanto valor que é, é absoluta. Nenhuma nação do mundo a nega; ninguém a desmerece. Nem mesmo as nações que admitem a pena de morte a ignoram, pois, para estas sociedades não seria a simples execução, a “morte” em si, contraditória à “dignidade humana”, mas sim a forma em que executada a sentença capital. Desta feita, a violação da “dignidade humana” não estaria no cumprimento da sentença em si, mas na forma como esta se processaria caso utilizado meios vis, ultrajantes, degradantes ou vilipendiadores. Como se vê, a definição do que seja “dignidade” pode tomar diversos contornos, mas a aceitação de que a mesma se traduz num valor universal é incontestável.
Porém, não basta definir e reconhecer os valores que são importantes ao ordenamento jurídico, pois, como dito alhures, o direito é um saber prático que visa um fim. Nada adianta reconhecer um valor se não houver meios de alcançá-lo, de realizá-lo. O direito, ao percorrer um caminho justo para alcançar a justiça – seu valor –, irá se ocupar da tarefa de coletar vetores ou hospedeiros para que seja realizado o valor que se busca, mesmo que em parte. Aliás, neste aspecto é bom frisar que os valores não se realizam totalmente, mas apenas em parte[11]. Caso se realizassem totalmente não seriam valores, mas sim utopia.
No mesmo sentido afirmou MIGUEL REALE na sua clássica obra “Teoria Tridimensional do Direito”, in verbis:
“Penso que, para os objetivos do presente trabalho, bastam essas referências para determinar-se o que entendo por valor, quando emprego esta palavra em minha teoria tridimensional do Direito, para indicar uma “intencionalidade historicamente objetivada no processo da cultura, implicado sempre o sentido vetorial de uma ação possível”. (REALE, 1994, p. 94).
Pois são as regras e os princípios os vetores necessários para a realização de um valor. Como já referido, os princípios expressam valores e as normas têm caráter eminentemente instrumental – não que elas não expressem valores também.
Didaticamente resumindo o que até aqui se disse, temos que os princípios buscam “um fim”, ajudados pelas regras (por representarem uma figura típica coercitiva) que impõem uma “conduta”, sendo, ainda, ambos sopesados pelos postulados, de modo que esse “fim” que se almeja nada mais é do que o valor[12].
De fato, o valor somente pode ser compreendido como tal caso seja realizável. Necessário, pois, a interação das espécies normativas – agora vistas sob o enfoque de vetores – para percorrer este caminho do “realizável”. Aqui se salienta que a utilização da palavra “interação” não se dá ao acaso, na medida em que as espécies normativas devem se entrelaçar harmonicamente e com o foco na realização “mais que possível” do valor. De pouco adianta um princípio isolado ou uma regra isolada e, muito menos, um postulado.
Com efeito, princípios expressam valores. Entretanto, a violação de um princípio não tem sanção coercitiva, mas, quiçá, apenas uma sanção íntima que repousa na consciência do ofensor. Essa sanção íntima, no entanto, pode não ser suficiente para intimidar o violador da norma principiológica e isto coloca em cheque a harmonia da sociedade. É nesta hora que se torna necessária a interferência do Estado, detentor do monopólio da sanção coercitiva objetiva, para que o mesmo, utilizando seus instrumentos próprios (Legislativo), intervenha elegendo como digno de proteção os fatos sociais ameaçados pelo livre arbítrio das pessoas. Surge, então, a regra jurídica – impregnada de princípios e valores, mas acima de tudo, instrumentadora e descritiva de comportamento coercitivo (impõem, proíbem ou permitem certa conduta).
Seguindo os dizeres de MIGUEL REALE, a norma (assim entendida como gênero das espécies acima referidas) “é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou não deve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor”[13].
Quanto aos postulados, estes somente tomarão lugar de destaque no caso concreto, ocasião em que se tornará necessária a interpretação das demais espécies normativas (os princípios e as regras) para que o valor se realize na “melhor medida do possível”.
4. Os valores incidentes no direito do trabalho do Brasil e a realização através das espécies normativas.
É indiscutível a autonomia do Direito do Trabalho diante da existência de princípios, legislação e institutos próprios.
Por sua vez, a evolução do Direito do Trabalho se dá com a evolução do próprio homem; da sociedade. Surge, nos primórdios da humanidade, passa pelo trabalho escravo, pela locatio conductio de Roma, pelo sistema feudal e pelas corporações de ofício. Entretanto, o grande marco do surgimento do Direito do Trabalho se deve à Revolução Industrial, pois foi a Revolução Industrial quem transformou o trabalho em emprego.
A Revolução Industrial se caracterizou pelo surgimento do tear e, posteriormente, da máquina a vapor. Esses novos métodos de produção, por sua vez, acabaram por substituir o trabalho manual pelo trabalho mecânico, o que inevitavelmente gerou o desemprego.
O desemprego desestrutura a família, causa miséria e é responsável pela grande oferta de mão-de-obra, a qual favorece ainda mais a exploração do trabalho, gerando-se um círculo vicioso.
De um lado tinha-se o “patrão”, proprietário das máquinas e do poder de direção, e de outro o trabalhador, que não possuía nada. Essa flagrante desigualdade fez unir os trabalhadores que se associam para reivindicar melhores condições. O Estado, abstencionista desde o ideal liberal da Revolução Francesa, passa a intervir nas relações de trabalho, a fim de apaziguar o conflito social. Surgem as primeiras normas de proteção, como a proibição de trabalho aos menores de 9 anos e a limitação da jornada em 12 horas – esses dois pequenos exemplos dão uma dimensão do caos em que vivia a sociedade proletária na época, pois se eram necessárias normas para estipular tais proibições, dá para se imaginar como era a realidade vivenciada.
Este apanhado histórico é rico para que tiremos algumas conclusões: o Direito do Trabalho surge da luta de classes (trabalhadores unidos vindicando melhores condições) e a intervenção estatal se dá para apaziguar o conflito social, garantindo uma maior proteção ao trabalhador que se insere desigualmente numa relação. É como afirma GALARD FOLCH[14]: “deve-se assegurar uma superioridade jurídica ao empregado em função de sua inferioridade econômica”.
Da mesma forma, é possível concluir que o Direito do Trabalho tem princípios próprios que não se alteram em razão da sociedade no qual está inserido, isso porque ele surge de um conflito social – da “luta de classes”, de modo que não foi dado por uma ordem jurídica pré-estabelecida. A ordem jurídica, surgida a posteriori, apenas garante a efetividade – coerção – destas conquistas. Assim, fazer referência a “valores e princípios” no Direito do Trabalho “no Brasil” somente se justifica se forem agregados elementos específicos da “nossa” ordem jurídica, bem como se analisada a importância que é dada a esta ciência autônoma no âmbito doméstico.
Partindo, portanto, para esta analise peculiar dos “valores, princípios, regras e postulados” no âmbito do “Direito do Trabalho no Brasil”, forçoso que esta análise se dê com enfoque na Carta Magna de 1988 – a chamada “Constituição Cidadã”.
O apelido não se dá ao acaso. Seu surgimento (1988) ocorre após um longo período de ditadura, quando se busca quebrar esse paradigma com a criação de uma nova ordem constitucional que restabeleça um estado democrático de direito. Seu preâmbulo isso bem demonstra e seu artigo 1°, inciso III, traz sob o título dos “Princípios Fundamentais” o valor da “dignidade da pessoal humana”, do qual, como dito anteriormente, derivam os demais valores, dentre os quais, também expressamente previstos no preâmbulo, tem-se a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Todos estes valores giram em torno da “dignidade da pessoa humana”, demonstrando que os valores, como bens que são, necessitam de outros valores para se realizarem, de modo que sempre que se realiza um valor se arrastam juntos outros, e a recíproca é verdadeira. Assim, se a sociedade for justa, igualitária, desenvolvida, segura etc., o nível de dignidade desta sociedade será elevado. Por outro lado, se a desigualdade que marcou o surgimento do Direito do Trabalho – empregador e trabalhador – tomar destaque, então a liberdade deixa de ser valor e passa a ser quimera, pois liberdade e igualdade devem andar de mãos dadas.
Nas sábias palavras de CARMEN CAMINO, “a desigualdade econômica, que deixa o empregado a mercê do empregador, é fator de profunda indignidade. A busca da compensação dessa desigualdade, de alcançar uma igualdade verdadeira, substancial, á a busca da realização da dignidade da pessoal humana.” [15].
Desta forma, o primado a “dignidade da pessoa humana” também irá gerar reflexos no âmbito do Direito do Trabalho, o qual ganha especial destaque na atual Constituição. E tal assertiva não é figura de retórica, pois, de fato, é na atual Constituição que os direitos trabalhistas deixam de fazer parte do capítulo destinado à “Ordem Econômica e Social”, como vinha ocorrendo desde a Constituição de 1934, e se inserem no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”. Os “valores sociais do trabalho”, então, passam a ter um destaque e a gozar de uma proteção fundamental na nova ordem constitucional, democrática, cidadã e social. A “Ordem Econômica e Financeira” (arts. 170/192) e a “Ordem Social” (art. 193/232) continuam na atual Carta Política, mas ficam em segundo plano diante do “primado do trabalho” (art. 193, caput).
Este é o enfoque valorativo dado ao Direito do Trabalho no Brasil, a partir da Constituição de 1988. Sua evolução – que se deixa de melhor aprofundar, pois não é objeto deste trabalho – foi lenta e progressiva, mas seus princípios fundantes nunca se alteraram.
Como visto pelo sucinto apanhado histórico, a origem do Direito do Trabalho não prescinde da idéia de proteção ao trabalhador. A classe trabalhadora não possuía nada além da própria força de trabalho, a qual, diante da grande desigualdade frente ao detentor dos meios de produção, acabou por ser fortemente explorada, de modo que se tornou necessária uma intervenção do Estado, até então abstencionista, para impor limites a esta exploração. É, portanto, o “Princípio da Proteção” que resume a ideologia do Direito do Trabalho.
Não se desconhece a farta doutrina que trata dos “princípios do direito do trabalho” – em decorrência, cremos do fato deste ramo do Direito nascer por forte conotação principiológica, o que podemos concluir pelo que foi visto até agora – e que costuma enumerá-los em nomenclatura mais ou menos uniforme, como a que apresenta AMÉRICO PLÁ RODRIGUES[16] – e ficamos apenas com este em homenagem a seu reconhecimento e contribuição doutrinária dada a este ramo –, classificando-os como princípio da “Proteção”, da “Irrenunciabilidade de Direitos”, da “Continuidade”, da “Primazia da Realidade”, da “Razoabilidade” e da “Boa-fé”.
Para os objetivos deste trabalho, no entanto, entendemos considerar apenas o “Princípio da Proteção”, visto ser esse o princípio maior, fundante, do qual decorrem os demais – mesmo PLÁ RODRIGUES assim reconhece –, na medida em que entendemos que “irrenunciabilidade de direitos”, “continuidade” e “primazia da realidade” são apenas desdobramentos do primeiro (ou até mesmo exemplos), visto que é imprescindível ter-se uma noção do que seja “proteção” para entendê-los e justificá-los, bem como temos que a “razoabilidade” e “boa-fé” não se constituem em princípios peculiares do Direito do Trabalho.
São, portanto, o “Princípio da Proteção” e os “Valores Sociais do Trabalho” – borrifado pelo valor da “dignidade da pessoa humana” – que iluminarão o legislador brasileiro para criar a norma coercitiva que ira proteger tais institutos e guiar o interprete, sopesado pelos postulados da razoabilidade, igualdade e proporcionalidade, a livrar os mesmos de qualquer ameaça decorrente do livre arbítrio das pessoas.
As “justas causas” são um bom exemplo para demonstrar a realização dos valores através da conjugação das espécies normativas.
As justas causas que legitimam o empregador a por fim ao contrato de trabalho, sem ônus para este, estão descritas no art. 482 da CLT, sendo particularizadas nas alíneas “a” a “l”. A maioria das referidas faltas são meramente tópicas, de modo que deixam plenamente aberto o campo de interpretação, podendo tomar diversos contornos dependendo do caso concreto a que for vinculada, como ocorre, por exemplo, com a alínea “e” que trata da “desídia no desempenho das respectivas funções”. A desídia é conceituada como “1. Preguiça, indolência, inércia, negligência. 2. Desleixo, descaso, incúria.”[17]. Seus sinônimos, entretanto, parece-nos tão obscuros quanto ela própria, merecendo, assim, interpretação de seu significado num contexto particularizado. Será, pois, este contexto o ponto de partida do intérprete para conjugar a situação tópica com a regra (art. 482, “e”) e com os postulados (razoabilidade, proporcionalidade), tendo sempre em vista a não violação do princípio protetivo do direito do trabalho, o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana (sem esquecer, por óbvio, da dignidade do próprio empregador).
Não é difícil, portanto, concluir que numa relação de trabalho travada a mais de dez anos o atraso do empregado ao local de trabalho, ou mesmo a falta em um único dia, não poderá ser classificada como uma desídia capaz de legitimar uma justa causa. Da mesma forma, se este mesmo empregado, nesta mesma situação, for encontrado dormindo em seu ambiente de trabalho, não poderá, por este fato isolado, receber a alcunha de “preguiçoso”.
Entretanto, se em uma situação particularizada restar demonstrado que um empregado, cuja função exercida é de vigia noturno, seja contumaz dormidor, parece-nos tranqüila a conclusão de que para este trabalhador seria plenamente justificável a incidência da regra disposta no art. 482, “e” da CLT.
Como se observa, em ambos os exemplos as situações são semelhantes, mas o postulado da “razoabilidade” pondera de forma distinta a conjugação da regra geral do art. 482, “e” da CLT, de modo que em nenhum dos casos constatamos ofensa aos princípios do direito do trabalho nem o cometimento de injustiças, mesmo que, para esses casos semelhantes, as decisões dadas tenham sido completamente diversas.
Temos, pois, que a Justiça do Trabalho – assim entendida como valor e não como instituição – será alcançada quando o interprete prudente conseguir compreender e conjugar de maneira harmônica as espécies normativas, de forma a atingir o mesmo fim: o valor social do trabalho e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana.
5. Conclusão.
Ao cabo do presente trabalho, reafirmamos a convicção de que somente o senso crítico é capaz de nos livrarmos da prisão intelectual, cujos tijolos e grades são construídos desde o momento em que somos apresentados ao mundo e ao sistema.
A finalidade da disciplina propedêutica é nos dar instrumentos para seguirmos “com as próprias pernas”. Metaforicamente, podemos definir o conhecimento como o “hábeas corpus do intelecto”.
O estudioso do direito não pode ser preguiçoso, mas crítico. Não pode se deixar levar pela correnteza do conhecimento. Ele deve também remar, seja no mesmo sentido ou em sentido inverso. O importante é saber o porquê de estar remando.
Dizendo isso, não estamos aqui propugnamos pelos fins das máximas, brocardos, teorias e assertivas ditas incontestáveis. Apenas estimulamos que as mesmas sejam primeiro compreendidas para depois serem aceitas ou rechaçadas.
Por esta razão entendemos valioso o estudo realizado para cumprir com o presente trabalho. Mais importante que saber a lei a ser aplicada, é necessário saber interpretá-la à luz das espécies normativas que apontam para o mesmo sentido – o valor.
Nós, operadores do Direito, devemos estar cientes sobre a necessária construção e reconstrução do nosso instrumento de trabalho e, acima de tudo, da Justiça.
6. Obras consultadas
Notas:
Informações Sobre o Autor
Felipe Zorzato