1. Introdução
Com a evolução dos direitos coletivos no séc. XX, chamados de “direitos de terceira geração” ou “dimensão”, surgiu a necessidade da introdução de institutos processuais aptos a os tutelarem.
A Magna Carta de 1988, atendendo ao anseio social, incorporou ao ordenamento pátrio o “Mandado de Segurança Coletivo”, o qual está presente no inciso LXX do art. 5º com a seguinte redação:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
O mandado de segurança coletivo é remédio constitucional posto à disposição das pessoas expressamente enumeradas na Constituição Federal. O referido instituto objetiva à proteção de direito líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, não amparado por habeas corpus ou habeas data.(CF, art. 5º, LXIX; lei nº 1.533/51, art. 1º).
Cumpre instar que o mandado de segurança coletivo não possui legislação própria, razão pela qual aplica-se, no que lhe for pertinente, a lei nº 1.533 de 31 de dezembro de 1951, a qual rege o mandado de segurança individual.
Assim, cabe à jurisprudência e à doutrina delinearem os contornos deste novo writ constitucional, o que acaba por causar controvérsias jurídicas que serão tratadas nos próximos tópicos.
2. Defesa de direitos coletivos ou defesa coletiva de direitos?
Em apertada síntese, expor-se-á a diferença entre os direitos coletivos lato sensu (direitos difusos e coletivos stricto sensu) e os direitos individuais homogêneos.
Quando se fala em defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos, o que se está qualificando é o modo de tutelar, respectivamente, os direitos coletivos lato sensu e os direitos individuais homogêneos.
2.1. Direitos Difusos e coletivos stricto sensu
O chamado direito coletivo é o gênero, do qual os direitos difusos e os coletivos stricto sensu são espécies.
Ad instar que os direitos difusos e coletivos stricto sensu assemelham-se em seus caracteres. Assim, é que ambos os direitos são considerados transindividuais (sem titular determinado) e indivisíveis (só podem ser afetados e usufruídos de forma que satisfaça todos os seus possíveis titulares). Outrossim, os direitos coletivos lato sensu são insuscetíveis de apropriação individual, sendo, por conseguinte, incabíveis a transmissão inter vivos ou mortis causa, bem como não se admite a renúncia e a transação.
A defesa em juízo dos direitos difusos e coletivos stricto sensu se dá por intermédio de substituição processual, sendo, portanto uma espécie de legitimação extraordinária. Em vista disso, o objeto do litígio é indisponível para o demandante.
Os direitos difusos e coletivos stricto sensu diferenciam-se apenas no que tange ao seu aspecto subjetivo, visto que os direitos difusos apresentam absoluta indeterminação de seus titulares, havendo uma ligação de fato entre estes, como, v. g., na defesa do meio ambiente (art. 225 C.F.). Já, os direitos coletivos stricto sensu possuem uma determinação relativa de seus titulares, ocorrendo uma relação jurídica-base que liga seus titulares, como, v. g., na defesa de direitos da categoria dos médicos.
2.2. Direitos individuais homogêneos
Os direitos individuais homogêneos, por serem, em verdade, direitos subjetivos individuais, são perfeitamente identificáveis quanto ao seu sujeito. Tais direitos são homogêneos por possuírem origem comum, ou seja, nascem da mesma circunstância fática.
Por se tratarem de direitos divisíveis, a satisfação ou a afetação de tais direitos atinge os titulares de forma individual e diferenciada. Nesse diapasão, são direitos passíveis de transmissão por ato inter vivos ou mortis causa, bem como são suscetíveis de renúncia ou transação, já que fazem parte do patrimônio individual de seu titular.
A defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos se dá, em regra, por legitimação ordinária, vez que o próprio titular do direito é quem ocupará o pólo ativo na relação jurídica de direito processual. Admite-se a defesa por terceiro, todavia essa dar-se-á em forma de representação, necessitando da anuência expressa do seu titular. Na lição do professor José Afonso da Silva[1]:
[…] Outra questão é saber se as associações podem impetrar mandado de segurança coletivo sem autorização ou se precisam desta, tal como prevê em geral o disposto no art. 5º, XXI, segundo o qual ´as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente´. Aquela regra do mandado de segurança coletivo contém uma exceção à regra geral, ou a ela se subsume? Pensamos que a regra geral prevalece em todos os casos em que se reclama o direito subjetivo individual dos associados.
Por exceção, admite-se o regime de substituição processual somente nos casos expressos em lei, conforme se depreende do art. 6o do CPC, in verbis:
Art. 6o Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.
Assim, é que o legislador ordinário habilitou o Ministério Público (substituto processual) para defender, excepcionalmente, direitos individuais homogêneos, como, v.g., em se tratando de direito do consumidor (lei nº 8.078/90, arts. 91 e 92), de investidores no mercado de valores mobiliários (lei nº 7.913/89), bem como, de credores de instituições financeiras em regime de liquidação extrajudicial (lei nº 6.024/74, art. 46).
2.3. O mandado de segurança coletivo como meio de defesa coletiva de direitos
A impetração do writ coletivo tutela a defesa de direitos subjetivos individuais (defesa coletiva de direitos). Nesse sentido, o mandamus não se presta para a defesa de direitos coletivos, como poderia defluir de uma dada interpretação literal do referido instituto.
Obtempera-se que por se tratar de direito individual, o Ministério Público não detém legitimidade para impetrar o mandado de segurança coletivo, conforme aduz o disposto no art. 5º, LXX da Magna Carta. Nesse sentido, é que Constituição Federal em seu art. 129, III, atribui ao Ministério Público a defesa de direitos coletivos lato sensu, razão pela qual o mandamus coletivo tem por objeto, tão somente, a defesa coletiva de direitos individuais.
Por se referir à defesa de direito individual, é que o mandado de segurança coletivo poderá ser proposto individualmente por seu titular, se assim o preferir. Nesse passo, fulmina-se a tese de que o mandado de segurança coletivo defende direito coletivo, haja vista que esse direito não pode ser pleiteado individualmente, pois, conforme já afirmado, os direitos coletivos são indisponíveis e só podem ser defendidos por substituto processual (legitimação extraordinária).
Na esteira desse entendimento, o STF ao editar a súmula 630[2], acabou por assentar que o mandado de segurança coletivo se refere unicamente à tutela de direitos individuais, posto que é possível a impetração do mandamus coletivo para a defesa de parte dos membros de uma dada entidade. Dada a posição do Pretório Excelso, é nítido que o writ coletivo não é compatível com a defesa dos direitos coletivos, isto porque esses são indivisíveis, só podendo ser satisfeitos ou lesados quando atingirem todos os seus titulares.
3. Legitimidade ativa
A legitimidade ativa está expressamente elencada no art. 5º, LXX da Constituição Federal, conforme supracitado.
3.1. Partido político com representação no Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 5º, LXX, a).
É entendimento pacífico tanto na doutrina como na jurisprudência de que basta apenas um parlamentar representante do partido político para que este detenha legitimação para a propositura do mandado de segurança coletivo.
Questão relevante é a de se saber se o partido político detem legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo somente na defesa de seus filiados ou também é legitimado para a defesa de direitos coletivos estranhos a seus membros?
Conforme aduz o eminente doutrinador Hely Lopes Meirelles[3]: “O partido político só pode impetrar mandado de segurança coletivo para defesa de seus próprios filiados, em questões políticas, quando autorizado pela lei e pelo estatuto […]”.
Tal posicionamento é assentado na recente jurisprudência da Suprema Corte, bem como do Superior Tribunal de Justiça.
RMS – CONSTITUCIONAL – MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO – PARTIDO POLÍTICO – O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO VISA A PROTEGER DIREITO DE PESSOAS INTEGRANTES DA COLETIVIDADE DO IMPETRANTE. DISTINGUEM-SE, ASSIM, DA AÇÃO CONSTITUCIONAL QUE PRESERVA DIREITO INDIVIDUAL, OU DIFUSO. O PARTIDO POLÍTICO, POR ESSA VIA, SÓ TEM LEGITIMIDADE PARA POSTULAR DIREITO DE INTEGRANTE DE SUA COLETIVIDADE. (RMS 2423 / PR; recurso ordinário em mandado de segurança 1992/0032590-4. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (1084). 27/04/1993).
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DE PARTIDO POLÍTICO. IMPUGNAÇÃO DE EXIGÊNCIA TRIBUTÁRIA. IPTU. 1. Uma exigência tributária configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo ser impugnada por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE nº 213.631, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 07/04/2000. 2. O partido político não está, pois, autorizado a valer-se do mandado de segurança coletivo para, substituindo todos os cidadãos na defesa de interesses individuais, impugnar majoração de tributo. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 196184/AM – Amazonas. Relatora: Min. Ellen Gracie. Julgamento: 27/10/2004).
3.2. Organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (CF, art. 5º, LXX, b)
Com relação à legitimação ativa da organização sindical, entidade de classe e associação, há controvérsias de relevo, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Parte da jurisprudência, forte no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, bem como da doutrina, em especial ênfase para as lições de José Afonso da Silva[4], entendem que os membros de associação, entidade de classe ou entidade sindical, regularmente constituídas e em funcionamento, podem propor ação coletiva destinada à defesa dos direitos e interesses das categorias que representam, sendo indispensável a anuência expressa de seus membros, ou ao menos que tal assentimento esteja constante no estatuto. Esta corrente baseia-se na premissa de que cada membro dessas entidades poderia impetrar seu writ individual, sob fundamentos jurídicos que acreditasse serem os mais plausíveis.
Por outro lado, a maioria da doutrina, em que se destaca Alexandre de Moraes[5], e da jurisprudência, principalmente a do Supremo Tribunal Federal, é no sentido de que é desnecessária a autorização dos membros de associação, entidade de classe ou entidade sindical, para a impetração do mandado de segurança coletivo, haja vista que se está diante de legitimação extraordinária, o que não se confunde com qualquer tipo de representação ou mandato.
Faz-se necessário citar o mestre Hely Lopes Meirelles[6], em face da tormentosa situação jurídica acima exposta: “[…] A nosso ver, não é necessária a autorização expressa em assembléia, bastando que a entidade impetrante se enquadre, por sua natureza e seus estatutos, como um dos legitimados pela alínea ‘b’ do inciso LXX do art. 5º da Constituição. […]”
Diante das controvérsias jurídicas acima expostas, o Supremo Tribunal Federal firmou o seu entendimento, editando a súmula 629: “A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes”.
3.2.1. Vantagens advindas da adoção da tese da anuência expressa dos membros das entidades arroladas no art. 5º, LXX da CF/88 para a impetração do mandamus coletivo.
Torna-se relevante demonstrar as vantagens da adoção da corrente que sustenta que é necessário o assentimento expresso dos membros de uma determinada entidade para a impetração do mandado de segurança coletivo.
Com base no Princípio Econômico, tido como um Princípio Informativo do Processo Civil, conforme lição do ilustre doutrinador Rui Portanova[7], em seu livro intitulado “Princípios do Processo Civil”, torna-se indispensável que o ator jurídico se incorpore em um estado de economia e racionalização em todo o sistema processual. Nesse passo, busca-se evitar o desperdício de tempo do judiciário que derivaria do trato da mesma demanda por parte de diversos magistrados.
Outrossim, com fulcro no Princípio da Segurança Jurídica, evitar-se-ia que houvesse decisões judiciais divergentes a respeito de uma mesma controvérsia jurídica, o que acabaria por causar descrédito do Poder Judiciário por parte da sociedade.
Forte nos princípios acima expostos, expor-se-á as questões que até hoje são fruto de debates tanto na doutrina como na jurisprudência.
Coisa julgada
A primeira questão que se impõe se refere à coisa julgada. Nesse diapasão, pergunta-se: caso a sentença proveniente do mandado de segurança coletivo seja denegatória, no mérito, formará a mesma coisa julgada frente a todos os membros da entidade impetrante?
A resposta é tormentosa, visto que se for adotada a orientação do STF (súmula 629), a resposta que se impõe é a de que a sentença não sujeitaria os membros da entidade, já que a ação coletiva não traria autorização expressa do associado para sua impetração. Sendo assim, nada obstaria a impetração do mandamus individual pelo associado, até porque esse instituto tutela a defesa coletiva de direitos individuais, e o membro poderia basear sua ação em fundamentos jurídicos que acreditasse serem os mais adequados.
De outra banda, se for utilizada a tese do STJ, ou seja, de que é necessária a anuência expressa dos membros da entidade para impetração do mandado de segurança coletivo, as vantagens advindas desta tese são notórias. Em primeiro lugar, a sentença denegatória no mandado de segurança coletivo formará coisa julgada material e formal a todos os membros da referida entidade. Nesse passo, os mesmos estarão impedidos de ingressarem com o mandado de segurança individual para a defesa de seus direitos subjetivos líquidos e certos.
3.2.1.2. Litispendência
Outra questão que se mostra pertinente diz respeito ao instituto da litispendência. Nas palavras do ilustre processualista Moacyr Amaral Santos[8]:
[…] Litispendência significa lide pendente em juízo. Proposta a ação, pela qual o autor formula uma pretensão, e citado o réu, configura-se uma lide pendente de decisão. As partes estarão sujeitas ao processo e ao que nele for decidido. Dessa sujeição das partes ao processo resulta o princípio da unicidade da relação processual pelo qual se vedam dois processos sobre a mesma lide, entre as mesmas partes. E se vedam a fim de evitar sentenças contraditórias.
Assim é que a corrente que prestigia a necessidade da anuência expressa dos associados deve imperar, já que o Poder Judiciário tendo conhecimento da impetração de um mandado de segurança coletivo, não permitirá que seja instaurada a mesma lide em um writ individual, sob o fundamento da litispendência. Nesse diapasão, o magistrado deverá extinguir ex officio o processo sem a apreciação do mérito (art. 267, V do CPC).
Todavia mostra-se relevante esposar o entendimento adotado pelo STJ, o qual sustenta que o ajuizamento de mandado de segurança coletivo por entidade não inibe o exercício do direito subjetivo de postular, por via de writ individual, o resguardo de direito líquido e certo ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, não ocorrendo, na hipótese, os efeitos da litispendência.
Considerações finais
Pelo exposto, conclui-se que o mandado de segurança coletivo, instituído pela Carta de 1988, necessita de uma legislação própria, a fim de que as diversas questões supracitadas possam ser dirimidas.
Até o advento da legislação adequada do mandamus coletivo, o aplicador do direito deve se pautar nos princípios vetores do ordenamento jurídico. Nesse sentido, forte é a utilização do Princípio da Segurança Jurídica, haja vista a possibilidade de existirem decisões contraditórias, bem como deve imperar o Princípio Econômico, posto que a mesma controvérsia jurídica poderia ser apreciada por juizes diversos.
É de relevante importância frisar, também, que o writ coletivo tutela a defesa coletiva de direitos e não a defesa de direitos coletivos, razão pela qual mostra-se indispensável a anuência expressa dos membros da entidade impetrante. Por se tratar de legitimação ordinária é que o próprio titular do direito material será o ocupante do pólo ativo no processo. Nessa esteira, admite-se a defesa por terceiro, no entanto, essa defesa dar-se-á em forma de representação. Excepcionalmente, é permitido o regime de substituição processual, somente nos casos expressos em lei. Como não há lei que regulamente o mandado de segurança coletivo, a substituição processual revela-se intolerável.
Assim, não resta dúvida de que a melhor orientação há de ser aquela em que no mandado de segurança coletivo deve haver autorização expressa por parte dos membros da entidade impetrante, a fim de que o juiz possa apreciar as questões da coisa julgada e da litispendência, aplicando o art. 267, V do Código de Processo Civil. Em vista disso, o juiz deverá (ex officio) extinguir o processo sem julgamento de mérito.
Informações Sobre os Autores
Renato Braga Vinhas
Acadêmico de Direito na Furg/RS
Filipe Loureiro Santos
Acadêmico de Direito na Furg/RS