O terrorismo visto do esgoto

“Dos observadores na ‘extremidade errada’ do cano de esgoto, já sabemos o que esperar. Às saídas dos canos só chegam dejetos. E, qual reza o adágio, só se pode dar aquilo que se tem.”

 Mikhail Gorbachev certa vez afirmou que, se as pessoas não apreciavam o marxismo, elas deveriam culpar o Museu Britânico.  Não parece se tratar de uma afirmação propriamente justa, principalmente quando se considera o fato de que, a certa altura da Guerra Fria, quase todos os quadros de funcionários dos serviços secretos britânicos eram compostos basicamente de homossexuais alcóolatras a soldo da KGB. De toda sorte, o exemplo serve para ilustrar parte da imensa esquisitice inerente ao povo britânico e à interpretação que o mundo tem dele. Que os britânicos são estranhos, resta claro: eles têm muito mais semelhanças com os norte-americanos do que com os europeus continentais, e com estes últimos eles têm pouco mais traços de ethos comuns do que com os latino-americanos.

O Canal não foi apenas um curso d’água a separar povos e culturas que, pelo determinismo geográfico e pelo contato milenar dos ilhéus com os continentais, deveriam apresentar um grau de homogeneidade similar àquele observado entre franceses e alemães (em que pese a rivalidade de mil anos entre as duas grandes potências renanas). Ele serviu para cultivar no povo britânico uma consciência de classe que sempre passou ao largo dos enfrentamentos inflamados entre a “classe” operária e todos os demais, tão comum à Europa continental. A consciência aristocrática da nobreza, tão achincalhada no continente até o século XVI, seria, a partir do século XVIII, emulada por todos os europeus, à exceção dos austríacos (porque os Habsburgo davam à identidade aristocrata um caráter dinástico e pródigo) e dos russos (porque a aristocracia dos czares só imitou os franceses – e talvez por isso os Romanov tenham tido o mesmo destino dos Bourbon). O provincianismo e a vocação endógena, tão desdenhada pelo continente, serviu ao propósito de forjar a identidade inglesa que, ao atingir a maturidade no início do século XVIII, liberou a fúria de seus “construtores” e iniciou a formação de um dos maiores êxitos imperiais de toda a História: o Império Britânico.

Foi Voltaire quem escreveu, em meados do século XVIII, que a regularidade e a ausência de ostentação das construções civis inglesas, responsável pela sobriedade e relativo equilíbrio entre as construções de ricos e pobres, contrastava com a indolência ostensiva das construções francesas, cujos suntuosos châteaux e palais contrastavam com a absoluta miséria das residências humildes nos rincões provinciais franceses – e não surpreende que outro francês, Alexis de Tocqueville, tenha tido impressão similar à de Voltaire quando de sua estada nos EUA. O que nos guia à conclusão de que a sobriedade e o equilíbrio fazem dos britânicos um povo razoável, e essa razoabilidade é demonstrada em outras extensões da história britânica. Quando a descolonização era uma “fantasia de insurretos primitivos”, Londres se desfazia de parte de seu quintal, cedendo à independência irlandesa, em 1922, para espanto de gauleses que tocavam a França ultra-marina a ferro e fogo e não faziam quaisquer concessões a seus domínios. Não há na história colonial britânica nada parecido com Dien Bien Phu ou a guerra de independência da Argélia, bem como não há, no rol de eminências anglo-saxãs, ninguém que se assemelhe a Napoleão, Hitler, Stálin, Tojo ou Olivares. A razoabilidade britânica faz dos ilhéus um dos povos mais – se não o mais – sensatos do mundo, que não conta em seu curso com qualquer fato que o envergonhe de forma contundente. Isso sem que nenhuma menção seja feita à contribuição civilizacional do Império Britânico ou às vezes em que os tommies tiveram que pegar em armas para defender a liberdade dos povos.

Tão mais bárbaro e odioso se torna o atentado terrorista ao sistema de transporte público londrino, em 7 de julho, quando se tem em conta o povo que o mesmo teve como alvo. Que um povo que, nos últimos dois séculos, foi três vezes às armas – 1813, 1914 e 1940 – para preservar a liberdade do mundo  tenha tido meia centena de seus civis vitimados. Não convence a justificativa de que o atentado foi uma resposta à adesão britânica à invasão do Iraque, em 2003; igualmente não convence a tese de que o apoio de Blair ao que o fetiche verbal midiático tem chamado de “terrorismo de Estado” de G.W. Bush tenha agora suas conseqüências. Se a intervenção anglo-americana no Iraque teve como objetivo o petróleo iraquiano e se é verdade que Saddam Hussein não mantinha nenhum vínculo com a Al-Qaeda, que razão teria a organização terrorista para atacar um país que invadiu um Estado totalitário sem qualquer vínculo com bin Laden? Não faria sentido, na mesma toada, afirmar ter sido a justa intervenção multilateral no Afeganistão o “motivo” das ações terroristas, bem como um suposto esforço conjunto entre Londres e Washington no sentido de patrocinar quaisquer medidas israelenses tocantes à desocupação de Gaza e à restauração do status quo ante 1967 na Palestina.

Tão inútil quanto buscar justificativas – ou dizer-se justificável, racional ou teleológico – para os atentados terroristas é prosseguir, no longo prazo, com uma política lastreada na ação militar no Oriente Médio. Caso os objetivos ocidentais na região sejam de fato petrolíferos, não faria mais sentido inverter parte das centenas de bilhões de dólares gastos com o conflito iraquiano na aceleração das pesquisas voltadas para a nanotecnologia? Um determinado nível de domínio nanotecnológico poderá resultar na substituição da matriz energética de hidrocarbonetos, reduzindo significativamente a importância do Oriente Médio como global powerhouse. Não seriam viáveis, ainda, os investimentos em setores energéticos de tecnologia já dominada, como a biomassa, e em tecnologias de domínio parcial, como o hidrogênio?

A considerar-se o petróleo como a causa principal das intervenções ocidentais no Oriente Médio, não seria possível depreender, dos atentados em Nova York, Washington, Madri e Londres, que o ônus não compensa o benefício? Ou estaríamos lidando com uma situação em que interesses corporativos e financeiros têm papel fundamental tanto na condução das políticas externas das nações ricas quanto nas políticas tecnológicas e energéticas?

Quaisquer que sejam as respostas, parece claro que é hora de o Ocidente começar a pensar em levantar acampamento do Oriente Médio. Cuidar-se-ia de uma estratégia de longo prazo, posto que a dependência imediata da matriz energética para com o petróleo é indiscutível, e que as democracias ocidentais não podem quedar vítimas das chantagens de organizações terroristas que se valem de expedientes bárbaros para desarticular os pilares da civilização. A curto e médio prazo, faz-se necessária a continuidade das intervenções – militares ou não – com vistas seja à manutenção dos suprimentos de petróleo ou ao equilíbrio de poder regional. São imprescindíveis as ponderações no sentido de que uma total abstenção ou mesmo uma participação leniente das democracias ocidentais no Oriente Médio poderia conduzir a região a um caos anárquico de inspiração clânico-tribal ou a uma modulação hegemônica por parte de algum Estado, pondo a pique o equilíbrio regional e aumentando as já delicadas tensões.

A análise estrutural evitaria, compreensivelmente, conferir demasiada importância geral aos eventos ocorridos em Londres no último dia 7, mas, mesmo com a respeitável força de tal argumento, é mister retornarmos ao caráter nacional do povo britânico. A ansiedade e o desespero do povo britânico, Churchill ressaltou, diminuem à medida que o perigo e necessidade de tomadas drásticas de decisão aumentam. Aos insulares, como observou Barbara Tuchman, não há nada mais distensivo do que o surgimento de grandes desafios. A serenidade anglo-saxã diante do perigo contrasta com a exasperação de povos que esperam que as “asas da liberdade” se abram “sobre nós” e que acreditam que a conquista da liberdade depende de barricadas em boulevares, da chacina de uma família imperial ou de um incêndio nas Tulherias. Empíricos por tradição e desconfiados ante o racionalismo teoricista dos continentais, os britânicos se demonstram céticos perante o verbo retórico de germânicos e latinos, e, qual convém a um “povo de comerciantes”, são econômicos com as palavras e com os propósitos da ação estatal.

De Neville Chamberlain, Churchill disse que tratava-se de um homem que “contemplava a política externa através da extremidade errada de um cano de esgoto municipal.”. Uma estupidez mui própria àqueles que procuram justificativas materiais ou morais para o terrorismo. Concebem o terror como conseqüência de uma “lógica excludente” nas relações inter-estatais e negligenciam o fato de que os terroristas se inspiram num “maquiavelismo de meios”, sem quaisquer fins tangíveis a respaldar suas ações. De resto, dos observadores na “extremidade errada” do cano de esgoto, já sabemos o que esperar. Às saídas dos canos só chegam dejetos. E, qual reza o adágio, só se pode dar aquilo que se tem.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Lindolpho Cademartori

 

Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Goiás e colunista da Revista Autor (www.revistaautor.com.br), do Mídia Sem Máscara (www.midiasemmascara.org), d’O Debatedouro (www.odebatedouro.com.br), do DupliPensar (www.duplipensar.net) e do Jornal Opção.

 


 

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