Visa o presente texto alertar para a necessidade de criação de uma teoria crítica do Direito Penal, que contenha soluções viáveis à resolução dos problemas a partir da realidade fenomenológica local, partindo da experiência observada por um magistrado no sertão do Rio Grande do Norte.
Introdução: por uma virada metodológica nas Faculdades de Direito
A abordagem jusfilosófica passa por uma crise oriunda de seu desprestígio nos bancos da maioria das faculdades, cujos professores mesmos, talvez pressionados por uma lógica de competição mercadológica, acabam deixando a impressão de que disciplinas formadoras da crítica dos juristas, como a Filosofia do Direito, a Sociologia, Ciências Políticas, entre outras, não possuem utilidade, leia-se: não ajudam objetivamente a fazer com que o aluno seja aprovado num concurso público.
O que se preza, em geral, é o ensino por repetição, acrítico, formador apenas da opinião comum, sendo jogado para escanteio qualquer modo de ensinar que conduza o graduando a um nível de conhecimento que o faça enxergar as mazelas do sistema em vigor como algo a ser transformado através do seu intelecto, de sua força de pensamento e ação.
Acabam servindo as teorias muito mais para apenas criar falsos problemas do que para tentar solucionar juridicamente de maneira efetiva problemas reais, que normalmente acontecem à nossa volta.
Os corajosos professores de disciplinas mais zetéticas e menos dogmáticas, como Hermenêutica Jjurídica, Filosofia Geral e do Direito, Ciências Políticas, Sociologia, etc., findam se convertendo em meros preenchedores de tempo, esse bem precioso que teimamos em hediondamente matar no dia-a-dia.
Em efêmera passagem como professor da disciplina de Hermenêutica, pude perceber o quão dura é a missão.
Apesar disso, vejo num horizonte não muito distante uma virada metodológica nas faculdades de direito e em certos grupos estudantis que proliferam com a ajuda do meio eletrônico de transmissão de dados – a internet.
Talvez isso se deva à racional constatação de que o Direito não é matemático, e sim uma disciplina relativizável (não consultei o dicionário, por isso desculpem se me utilizei de neologismo) a partir de sua própria designação (“direito”) – afinal de contas, o que é direito?, i.e, o que é certo? – precisando, dessarte, do essencial auxílio de outras disciplinas humanistas, que lhe emprestem uma visão de mundo absolutamente necessária à formulação de regras aplicáveis aos casos concretos, que acontecem no cotidiano.
Tentaremos expor alguns dos problemas de direito penal que assolam as portas do Judiciário no sertão potiguar, numa abordagem fenomenológica dos fatos.
1.O estudo fenomenológico
Inicialmente, cumpre-nos fixar bem a noção do que seja a Fenomenologia.
Trata-se de corrente metodológica da Filosofia que teve como principal ícone o austro-húngaro de nascença Edmund Husserl (Prossnitz, Moravia, 1859), que estudou em grandes universidades, principalmente da Alemanha e Áustria (Leipzig, Berlim, Viena), dando novos rumos, primeiro, a teorias matemáticas, e depois aos estudos fenomenológicos da época, vindo a falecer já aposentado pela Universidade de Freiburg (1938), antes do terror do holocausto que consumiu a Europa.
Mas, enfim, de que cuida a Fenomenologia?
Esse método, segundo Sofia Vanni Rovighi, consiste em se perguntar “[…] quais são os dados indubitáveis com base nos quais é possível justificar certa concepção da realidade…” ou “[…] quais são as coisas manifestas (os fenômenos), tão claramente manifestas que não podem ser negadas.” (História da Filosofia Contemporânea. Trad. Ana Pareschi Capovilla. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 359-360).
O exame fenomenológico é uma análise detida da ontologia das coisas, livre o máximo possível de preconceitos ou de preocupações exageradas sobre os elementos causais dos fatos, ficando consagrada a expressão husserliana Zu den Sachen selbst – vamos até as coisas – fruto de vários estudos de Husserl até o amadurecimento daquilo que se convencionou chamar de Fenomenologia.
Veremos em seguida como a abordagem fenomenológica pode servir ao Direito.
2.A influência da Fenomenologia no Direito
A descrição de como se dão as coisas é o objeto primordial do estudo fenomenológico, sendo certo que uma mesma coisa pode ser vista de vários modos diferentes (nesse mesmo sentido, confira-se BALLESTEROS, Jesús. Sobre el sentido del Derecho: introduccion a la Filosofia Juridica. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 72).
Não se confunda essa visão essencialista das coisas com o mundo das idéias de Platão, em contraposição ao mundo das formas degradadas (para os platônicos, há a idéia “livro”, por exemplo, e sua forma deturpada “livro”, tal como nos aparece).
Para a Fenomenologia, a essência das coisas está limitada pela intencionalidade da consciência (mais uma expressão-chave para se compreender a teoria), com uma impressão diversa daquela trazida pelo “artificialismo da tecnociência”, como expõe Aquiles Cortês Guimarães (Fenomenologia e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 19): “A evidenciação é a característica mais relevante do método fenomenológico, porque diz respeito à preocupação dominante em todo o curso da filosofia ocidental – a preocupação com a evidência que se dá a partir da vivência originária, do vivido, e não do imaginário idealizante do mundo.”
Essa intencionalidade da consciência importa numa verdadeira abertura interpretativa dos fatos que nos rodeiam, do que nos é dito, do que, enfim, nos é apresentado pelo mundo, constantemente (re)descoberto, de acordo com nosso valores, com nossa cultura.
Para o Direito, atitudes filosóficas desse jaez impedem que o jurista se acostume com lugares-comuns que normalmente são impostos num processo de idealização pela dogmática, a qual por vezes se esquece que a verdade pode estar contida no real, porquanto o dado é posto diante do ser humano, e da intencionalidade de sua consciência.
É na interação entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido que a Fenomenologia vai encontrar o seu repouso, sua mirada metodológica, e é aí que irá contribuir de maneira decisiva à Hermenêutica, isto é, à teoria da interpretação do Direito, evitando-se um engessamento do discurso jurídico.
3.Fenomenologia e direito penal: alguns casos observados no sertão potiguar
No exercício da jurisdição no sertão do Rio Grande do Norte, pude logo observar que alguns crimes são mais corriqueiros que outros e em alguns deles a resposta dada pelo direito posto (para utilizar expressão cunhada por Eros Roberto Grau, em O Direito Posto e Pressuposto – 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 59 et seq.) não é adequada, ora por se mostrar demasiadamente exarcebada, ora por se apresentar penalmente insuficiente, porquanto fora de sintonia com a realidade local.
O sertão nordestino é marcado por um povo aguerrido, porém muito carente e sofrido, seja pelas condições de tempo (muito seco), seja pela histórica falta de políticas públicas que atinjam suas finalidades (e aí não vou entrar na questão do desvio de finalidade de vários programas sociais, como é público e notório).
Pois bem. É nessa realidade de carestia e costumes típicos que deve a jurisdição se concretizar, com todas as dificuldades inerentes.
O primeiro caso que trazemos a lume está ligado ao chamado “Estatuto do Desarmamento” (Lei 10.826/2003), que apesar da denominação, vem gerando graves celeumas, como, por exemplo, se deve ou não o cidadão brasileiro se desfazer de suas armas de fogo, polêmica esta na qual não adentrarei.
Esta lei, em seu art. 21, traz disposição genérica proibindo expressamente a concessão de liberdade provisória para os crimes descritos nos arts. 16 (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo).
Não discuto se é benéfico ou não andar armado.
O que discuto está no plano da realidade que me é tangível, a qual independe de resolução política ou ideológica, mas que igualmente não pode ser modificada de uma hora para outra como num passe de mágica, através da imposição através da força (ou pseudo-força) da letra fria de uma lei, contrariando um cenário específico vivido em certas regiões interioranas do Brasil.
Por questão de defesa pessoal, em razão do lugar remoto em que se vive, ou por precisar caçar para sobreviver, evidencia-se no sertão nordestino com grande facilidade o homem comum portar algum tipo de arma de fogo (espingarda de “soca”, v.g.), ou mesmo a venda em feiras livres dessas armas e respectivas munições.
Não se trata de um meliante pronto a roubar alguém, ou um facínora assassino que vá sair por aí atirando na primeira vítima que lhe aprouver, nem de um louco pronto a dizimar outrem sem razão.
É o seu vizinho que porta a arma. É você!
E aí qual a solução encontrada pelo legislador em Brasília para a solução do problema da violência armada no País? O aumento da carga de pena contida nos tipos, a proibição de concessão de liberdade provisória, etc., como sempre se faz quando se quer resolver um fato da realidade através do desejo hobbesiano de se controlar a vida através da força do Estado.
Fica então a pergunta: será que se quer mesmo resolver o problema? Penso que não, e digo isso porque apenas se preocupar em encarcerar significa somente que outro problema está sendo criado (superlotação em celas), sob o mito de que a ameaça da cadeia irá suplantar a vontade dos demais em “delinqüir”.
É preciso então que o Ministério Público e o Judiciário estejam atentos à realidade sócio-econômica comunitária para fazer a necessária distinção entre bandidos e mocinhos, entre o velho senhor que vai à feira vender espingardas para abater passarinho do meliante que alimenta o crime organizado com armas e munições de grosso calibre.
Essa abordagem fenomenológica – de investigação ontológica do objeto – a lei jamais poderá fazer, apesar de haver quem pense em contrário.
Por isso é que não deve nunca ser descartada uma análise tópica e problematizante do caso concreto.
Nem sempre a solução estritamente literal irá poder compor a melhor interpretação, exigindo do juiz uma aplicação do direito por vezes contra legem, porém em compasso com os ditames constitucionais principiológicos e também axiológicos.
Outras espécies de crimes que comumente batem às portas do Fórum no interior em que trabalhamos são os cometidos contra a ordem sexual, e aí incluo os delitos praticados também contra crianças e adolescentes.
O relacionamento sexual entre crianças e adolescentes ou entre estas e adultos é bastante comum e se funda, em muito, na falta ou na má prestação de um serviço público educacional, ou mesmo na moral da comunidade, ou seja, tem pouco a ver com a atividade preventiva que o Direito exerce através da força da norma jurídica.
Em recente palestra que tive a oportunidade de proferir em um termo da Comarca, juntamente com o Ministério Público e o Conselho Tutelar, cujo tema homenageava o dia internacional de combate à exploração sexual infantil, ao se fazer um intervalo para questionamentos dos estudantes e da comunidade, pudemos constatar um total desconhecimento do que fosse proibido ou permitido à luz do Direito.
Isso faz com que pessoas somente venham a apreender exatamente qual o padrão de conduta que devam seguir apenas quando já estão implicadas com a Justiça, de forma que entendemos que uma educação do Direito e para o Direito é imprescindível à construção de um ideal de cidadania, isto é, de conscientização de que direitos e deveres existem e devem ser cumpridos independentemente da via coativa estatal.
Por aqui estamos tentando fazer a nossa parte – que não é suficiente, admitimos – promovendo, na medida do possível, palestras educacionais e preventivas em parceria com órgãos governamentais e não-governamentais, visando principalmente os jovens, na tentativa de chamar a atenção para as condutas moral e criminalmente lesivas a si próprios.
Com relação aos crimes de trânsito, um breve parêntese também merece ser aberto em nossa exposição.
É que a lei proíbe que pessoas não habilitadas dirijam veículos automotores, consoante redação empregada no art. 309 da Lei 9.503/1997, adiante transcrita, in litteris: “Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano.”
Por esse crime pode o acusado ser condenado a uma pena privativa de liberdade que varia de 06 (seis) meses a 01 (um) ano de detenção.
O ineficaz poder de polícia, aliado às altas taxas que se cobram para se retirar uma carteira de motorista, e, ainda, o analfabetismo, têm contribuído para que boa parcela da população sertaneja não se amolde às prescrições legais de trânsito.
Ocorre que vez ou outra chegam autos de decorrentes de prisões em flagrante pelo crime acima destacado (ou outros similares), efetuadas pela polícia em operações esporadicamente realizadas, muitas vezes intencionadas em encontrar entorpecentes, armas de fogo, ou para prender assaltantes após assaltos a bancos.
E a partir desses autos, o Ministério Público faz a denúncia e o acusado acaba sendo até condenado, cumprindo-se o silogismo lógico-formal jurídico de observação do fato, adequação daquele fato a uma norma penal incriminadora e conclusão com a sentença penal.
Dois erros de interpretação, no entanto, são facilmente observados na maioria desses casos.
O primeiro está na aceitação, pelas autoridades locais, da prática da conduta eventualmente reprimida, o que conduz o sujeito a imaginar que, criminalmente, sua conduta é inofensiva, e que, portanto, não está ferindo dever objetivo algum de cuidado.
O segundo decorre da inobservância, pelo Promotor de Justiça ao oferecer a denúncia, ou do Juiz de Direito ao prolatar sentença penal condenatória, de que a parte final do art. 309 da Lei 9.503/1997 vincula a tipificação material da conduta à existência de crime de perigo em concreto (“…gerando perigo de dano”).
Dirigir sem habilitação, portanto, se não estiver comprovado que algum perigo de dano em concreto aconteceu, pode conduzir o agente apenas a algum tipo de ilícito administrativo, nunca penal, e isso quem diz não é este subscritor, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.
Não há crime algum a ser apreciado pelo Judiciário, se o vendedor de leite vier de seu sítio para a cidade dirigindo sua caminhonete velha sem habilitação de trânsito, devendo ser trancada a ação penal ou arquivado o inquérito – o juiz não é guarda de trânsito.
Criminalizar condutas dessa espécie é liquidar de vez o princípio da intervenção mínima do Direito Penal (cf. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 50), ou, se assim se preferir, jogar no lixo toda a construção teórica de que, para haver tipificação, necessário se faz que se atente contra um bem jurídico relevante – princípio da ofensividade (cf. GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. São Paulo: RT; IELF, 2003. p. 111), e que não é o caso.
Há outros padrões de condutas muitas vezes formalmente criminalizáveis, mas que merecem sempre uma atenção especial do julgador em examiná-los de acordo com o contexto da comunidade na qual jurisdiciona, e que um estudo fenomenológico parece enfrentar com melhores armas metodológicas, úteis à argumentação jurídica de uma decisão judicial que se imponha por um diálogo entre o sujeito, com suas convicções culturais e valores (o juiz), e o objeto conhecido – fatos ou representação dos fatos, além do texto normativo vertido em lei.
4.Considerações finais
A realidade do sertão potiguar não deve ser muito diferente da realidade da periferia dos demais Estados nordestinos, historicamente marginalizada e controlada por grupos políticos encastelados em pequenos feudos, com a patuléia a lhe servir.
É exatamente essa patuléia, o povo pobre e carente, o grande cliente das varas criminais de quem jurisdiciona ou advoga por entre palmas, xique-xiques e algarobas.
Os grandes criminosos, isolados ou reunidos em grupos, existem e precisam de muita energia no combate contra todos eles, mas temos de estar conscientes do nosso papel de difundir justiça e não esquecer de que a energia da norma deve ser dosada na medida certa contra aqueles que não se traduzem em criminosos recorrentes, ou que simplesmente não praticaram nenhuma conduta materialmente típica, injusta apenas se vislumbrada de relance numa primeira leitura comparativa do fato com o seco texto da lei.
Há peculiaridades que muitas vezes não conseguimos transformar em palavras, que apenas sentimos – e devemos senti-las, e isso às vezes faz toda a diferença.
Definitivamente, não temos como dizer por antecipação qual a melhor interpretação da norma jurídica; mas temos como afirmar qual ou quais os diversos métodos de investigação a serem aplicados ao Direito Penal no auxílio da atividade jurisdicional, que deve ser eficiente em todos os sentidos. Não apenas rápida, como também em acordo com a Constituição e os direitos e garantias fundamentais por ela albergados.
O Estado Democrático de Direito ainda está, na prática, em fase de construção, de modo que precisamos reunir todos os esforços possíveis para fazer com o que o Direito passe a ser exercitado como instrumento de transformação social, e seja ultrapassada a crise de desfuncionalidade institucional e jurídica de há muito denunciada (cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 33).
Deixamos um pouco de nossa contribuição com esse pequeno escrito, que longe de pleitear conferir uma resposta definitiva aos questionamentos levantados, tem por objetivo primordial fomentar a discussão sobre a necessidade da existência de uma crítica permanente à forma de se pensar o Direito, o que foi feito a partir da realidade do autor, com todas as suas limitações.
Informações Sobre o Autor
Felipe Luiz Machado Barros
Juiz de Direito em Florânia/RN
Mestrando em Direito Constitucional – UFRN
Membro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do IHJ (Instituto de Hermenêutica Jurídica)