1 — Introdução
O objetivo deste artigo é concernente à defesa de duas teses no Direito Matrimonial: primeiro, a de que o termo nulidade, ao ser empregado ao casamento, é inadequado, sendo, portanto, mister que seja interpretado como anulabilidade; segundo, a de que, como conseqüência da equiparação do casamento dito nulo ao casamento anulável, dever-se-á dar àquele — assim como é feito no que diz respeito aos anuláveis — prazos decadenciais e não o condão da imprescritibilidade.
É, portanto, com o propósito exposto que o artigo subdivide-se em sete seções. A seção 1 é a introdução. A secção 2 terá como intuito o de expor os casos de impedimento do matrimônio para que o argumento principal que aqui se elaborará fique resguardado de maior encadeamento e contextura. A seção 3 exporá as diferenças entre o casamento anulável e o dito nulo. A seção 4 analisará se as diferenças expostas na seção 3 são impeditivas do que o artigo propõe, que é, como se disse, a equiparação do casamento dito nulo ao anulável. A seção 5 mostrará as razões por que tal equiparação seria vantajosa. Para tal, a referida seção subdivide-se em duas subseções: a subseção 5.1 apresenta o problema a ser superado e a subseção 5.2, o caminho de uma solução. A seção 6 é a conclusão e terá por fito a retomada, em compêndio, da idéia principal deste artigo e também intentará propor que a equiparação entre os casamentos anulável e dito nulo seja extensiva, inclusive, ao que diz respeito aos prazos decadenciais. A seção 7 apresenta a bibliografia referenciada, a qual, de forma alguma — diz-se desde já —, tem o propósito da indicação exaustiva da leitura.
2 — Dos impedimentos
Diz-se, mas em primeira e superficial análise, que no Código Civil vigente (CC, doravante), há três institutos que podem concernir ao impedimento do casamento. São eles representados pelas:
i) Causas Suspensivas: concernem à enumeração das causas suspensivas do matrimônio (CC, art. 1523);
ii) Anulabilidade: concernem à relação das situações em que é anulável o casamento (CC, art. 1550); e
iii) Nulidade: concernem à especificação dos casos em que se decreta a nulidade do casamento (CC, art. 1521 e art. 1548, I).
Em exame mais minucioso, contudo, logo se vê que (i) não deve compor as situações impeditivas do casamento, pois as situações expostas no Capítulo IV do CC, que trata das causas suspensivas, são todas sanáveis. Diz-se, assim, que as causas suspensivas têm apenas o intuito de informar aos nubentes das sanções que eles sofrerão ao contrair o matrimônio, de sorte que a inobservância delas não tem o propósito de invalidar o casamento, mas apenas, em primeiro momento, de suspender a celebração do ato matrimonial e, em um segundo, de impor sanções aos contraentes do matrimônio caso a celebração venha a ocorrer sem que se tenham sido sanadas as causas suspensivas da sua celebração (ver Diniz, 2002, p. 69). Veja-se que, com efeito, há no ordenamento jurídico disposições sancionais civis que a esses contraentes, por exemplo, impõem, entre outras sanções, a obrigatoriedade do regime de separação de bens (CC, art. 1641, I).
Tem-se, assim, que a situação exposta em (i) não deve ser entendida como causa impeditiva do casamento, de forma que, concernindo ao mencionado impedimento, resta apenas a análise de (ii) e de (iii), quais sejam, os institutos da anulabilidade do casamento e o da decretação de sua nulidade, respectivamente. De fato, o CC distingue o conceito de nulidade absoluta do de anulabilidade, também chamada nulidade relativa, mas, como aqui se argumentará com mais detalhes na seção 5 — mais especificamente, na subseção 5.2 —, essa diferenciação não passa do âmbito da nomenclatura, visto que se entende ser muito mais adequado o juízo de que ambos (ii) e (iii) deveriam ser tomados como casos de anulabilidade. Em outras palavras, pretende-se argumentar aqui que (iii) deveria ser reduzido à (ii), ou seja, que as causas de nulidade do casamento deveriam ser entendidas como causas de anulabilidade, visto que o entendimento contrário e predominante acarreta uma contradição insanável, devidamente exposta na subseção 5.1.
Antes de se exporem os argumentos em favor do entendimento de ambas a anulabilidade e nulidade nos termos daquela, mister se faz apresentar as diferenças entre (ii) e (iii) abarcadas pela legislação e pela doutrina para, somente então, poder o artigo debruçar-se sobre, primeiro, se tais diferenças seriam suficientemente significantes para impossibilitar a redução de (iii) à (ii), ou seja, se as diferenças entre os casamentos nulos e anuláveis não comportariam a idéia de que ambos deveriam ser entendidos exclusivamente como anuláveis e, depois, se há vantagem de qualquer espécie em se entender o casamento nulo como anulável, ou seja, em se reduzir (iii) à (ii). Sendo assim, dado o itinerário, que se vá ao trabalho da viagem.
3 — Das diferenças doutrinária e legal entre anulabilidade e nulidade
De forma suficientemente sistemática, diz-se que o casamento nulo difere-se do anulável pelos:
iv) casos previstos em lei para um e para outro (arts. 1548 e 1521 do CC, nos casos de nulidade e art. 1550 do CC, nos de anulabilidade);
v) fato do Ministério Público ser parte legítima para a ação de decretação de nulidade e não para a de anulabilidade (CC, art. 1549); e,
vi) pelo fato de que a “ação de nulidade é perpétua, podendo ser proposta enquanto houver interesse, até mesmo depois da morte ou divórcio dos cônjuges [enquanto] a ação de anulação sujeita-se a prazo decadencial” (Tesheider, 1999, p. 9; ver art. 169 do CC e Brasil, STJ, 1999).
Para o melhor feitio do argumento, decidiu-se detalhar cada uma das diferenças (iv), (v) e (vi) na seção seguinte, em que, além do referido detalhamento, apresentar-se-ão as razões por que se entende que tais diferenças não são suficientemente significantes para impossibilitar a redução de (iii) à (ii), para depois, apenas na seção 5, serem analisadas as vantagens de se entenderem os casamentos nulos como anuláveis.
4 — Da insignificância das diferenças entre (ii) e (iii)
A justificativa para a diferença (iv) é de ordem puramente legal, ou seja, é concernente ao fato de que o CC apresenta os casos de anulabilidade de forma separada dos de nulidade. O entendimento de que tal diferença não representa um estorvo à redução de (iii) à (ii) é simples. Ora, é fato que os casos de anulabilidade são apresentados em artigo diferente dos de nulidade, mas isso não representa problema, pois, como se vê, no próprio âmbito da nulidade, há um de seus casos, mais especificamente o que reza que “[é] nulo o casamento contraído […] pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil” (CC, art. 1548, I), que se encontra em artigo diferente dos demais casos, qual seja, o art. 1521 do CC. Dessa forma, sem que se faça necessária uma análise conceitual extensiva, pelo simples fato de (iii), ou seja, dos casos de nulidade apresentarem-se em dois artigo e serem todos esses casos entendidos como de nulidade de casamento, entende-se que não há nada na diferença (iv) que possa impedir o entendimento de que os casos concernentes à (ii) e à (iii) poderiam todos serem entendidos como casos de anulabilidade, embora estivessem dispostos em artigos diferentes.
A justificativa para a diferença (v) exige uma explanação mais conceitual. Note-se que o fato de ser também dada ao Ministério Público a legitimidade de impetrar ação de nulidade de casamento e não de anulabilidade é concernente ao fato de que, segundo entendimento do CC, (iii) demanda interesse predominantemente público, enquanto (ii), privado. Em outras palavras, diz-se que, no caso da anulabilidade, o interesse é diretamente do particular — ou seja, da esfera privada —, enquanto no de nulidade, é diretamente público. Obviamente, na anulabilidade, há interesse público, mas esse é indireto e eminentemente processual, pois consiste primordialmente na manutenção da ordem jurídica, enquanto no que diz respeito à nulidade, o interesse público é direto, pois se relaciona à manutenção da ordem social, através da tutela da estabilidade da família e, por conseqüência, da estabilidade da própria sociedade.
A lei contempla, assim, o interesse público direto na nulidade do casamento ao dispor que “[a] decretação de nulidade de casamento […] pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público” (CC, art. 1549). Ora, estendendo-se ao Ministério Público a tarefa de promover a ação de nulidade do casamento, o legislador nada mais fez senão dar aos vícios de nulidade a susceptibilidade de serem investigados pela sociedade em sentido amplo e não apenas pelos juridicamente interessados, como acontece com a anulabilidade. De fato, no que tange às causas de anulabilidade, por tratarem de questões puramente particulares, a ação somente pode ser impetrada por interessados legalmente identificados (CC, arts. 1552, 1555 e 1559).
Deve-se dizer que, do ponto de vista conceitual, saber quando o interesse é predominantemente público ou privado em questões matrimoniais — notadamente nas de impedimento desses — não representa tarefa de estreita envergadura. Com efeito, o entendimento que se gostaria de propagar aqui é o de que o interesse nesse campo deveria ser predominantemente privado, mas se deixará o argumento em favor de tal posicionamento para outra ocasião. Por ora, para que se demonstre que (v) não seria um empecilho à redução de (iii) à (ii), basta dizer que o interesse da sociedade não é vinculado aos termos “nulidade” ou “anulabilidade”, mas sim às especificidades das situações expostas em (ii) e em (iii). Dessa forma, poder-se-ia, sem prejuízo social ou jurídico, entender-se as situações (ii) e (iii) como de anulabilidade e, se fosse o caso, fazer-se a ressalva de que nas situações tais e tais — quais sejam, as expostas em (iii) — o Ministério Público teria legitimidade para propor ação, sem prejuízo do fato de que essas situações pudessem ser interpretadas como casos de anulabilidade.
A última diferença, devidamente exposta em (vi), é relativa aos prazos decadenciais. De acordo com o que se diz, no caso da anulabilidade, o direito dos interessados em ajuizar as ações que viessem a anular o casamento decai com o passar de lapso temporal determinado, enquanto, no que diz respeito à nulidade, as ações de decretação de tal estado são imprescritíveis. Para justificar tal diferença, não há mecanismo senão o de se ater à teoria geral dos atos nulos, segundo a qual, “sendo o ato nulo contrário ao interesse público, não se pode conceber a idéia de que ele possa um dia ganhar eficácia. É o princípio do resguardo da ordem legal” (Castro, 2003, p. 4), que, segundo apresenta a doutrina, deve ser mantido no que se relaciona aos casamentos ditos nulos e o qual, analisado de forma genérica, encontra respaldo na idéia de que “[o] negócio jurídico nulo não […] convalesce pelo decurso do tempo” (CC, art. 169).
É forçoso admitir que parece, realmente, sensato expor que os atos nulos não devem ganhar eficácia, de forma que, contra isso, jamais se intentaria argumentar. Mas, no caso em questão, essa assertiva é inoperante. Primeiro, porque o cerne do argumento que aqui se impetrará é o de que o casamento nulo não deve ser entendido como tal — sob pena de acarretar a contradição que se exporá em 5.1 — e, por conseqüência, isto é, por não ser entendido como um ato nulo, não deve também ser imprescritível — como em favor de que se argumentará logo depois e, com mais ênfase, na seção 6 —; segundo, porque a relação entre casamento dito nulo e imprescritibilidade não é uma relação, diga-se, necessária, dada a sua infidelidade de quase um século exposta no código civil de 1916 (CC/1916, doravante). Explica-se: a despeito do supramencionado resguardo da ordem legal, o CC/1916, que vigeu até o dia 10 de janeiro de 2003 — se não por quase um século, por quase noventa anos, pelo menos —, dispunha um caso de ato nulo prescritível ao rezar que “[é] […] nulo o casamento contraído perante autoridade incompetente […]. Mas esta nulidade se considerará sanada, se não se alegar dentro em 2 (dois) anos da celebração” (CC/1916, art. 208).
Em defesa da imprescritibilidade das ações de nulidade do casamento, pode-se ainda argumentar que o direito à nulidade do casamento nasce no mesmo momento em que nasce o direito à ação que promova tal nulidade e, por isso, o direito a essa ação é imprescritível. Esse argumento é o de que somente faz sentido se falar em prescrição quando se concerne à inércia de um titular de direito em impetrar ação que tenha por fito restaurar situação jurídica anterior a um fato qualquer que tenha desestabilizado essa situação. Em outras palavras, de acordo com o que aqui se diz, somente haveria prescrição nas ações desconstitutivas dos efeitos jurídicos de um fato que houvesse desestabilizado um direito, repete-se, anterior a esse fato. No caso do casamento nulo, conforme se argumenta, o que há é um direito à ação que nasce no mesmo momento em que nasce o direito à nulidade, ou seja, o que há, em consonância com o que argumenta a doutrina, é a possibilidade de impetração de ação declarativa de inexistência de um ato que, em caso de deferimento, deve ser entendido como se nunca tivesse existido e, por isso, não poderia sofrer quaisquer prazos temporais, tais como os de prescrição.
Entenda-se bem que o que se argumentará aqui é que a ação cabível à decretação de nulidade do casamento é a constitutiva e não a declarativa, mas, para o que se quer por ora não se faz necessário estender demasiadamente este argumento, pois para descaracterizar a diferença (vi) como uma possível ameaça ao entendimento dos casamentos nulos como anuláveis, basta dizer que, assim como o que acontece com os primeiros, também nos anuláveis, o direito à ação nasce no mesmo momento em que nasce o direito à anulação do casamento. Assim sendo, pelo mesmo argumento em favor da imprescritibilidade das ações de nulidade, ter-se-ia que as ações de anulabilidade também deveriam ser imprescritíveis, se não fossem os prazos decadenciais previstos em lei (CC, art. 1560). Dizendo o mesmo, mas ao contrário, tem-se que, a despeito dos argumentos em favor da imprescritibilidade das ações de nulidade, essas teriam prazos decadenciais assim como os têm as ações de anulabilidade, mesmo porque há o prazo geral de dez anos de prescrição previsto em lei (CC, art. 205), que poderia ser aplicado aos casos ditos de nulidade.
Conclui-se esta seção, então, ao se dizer que as diferenças entre (ii) e (iii), expostas em (iv), (v), (vi), embora sejam razoavelmente justificáveis, não são diretamente concernentes aos conceitos de nulidade e de anulação, mas sim a cada caso exposto em (ii) e em (iii). Dessa forma, diz-se que, à parte as especificidades expostas em (iv), (v) e (vi), pode-se afirmar que “[q]uanto aos efeitos, não há diferença: tanto a nulidade quanto a anulação decorrem de sentença com eficácia retroativa, salvo putatividade. Os casos de casamento anulável são somente os expressamente previstos na lei. Assim, também a exigência de previsão legal expressa é característica comum ao casamento nulo e ao anulável” (Tesheider, 1999, p. 9).
5 — Da conveniência de se entender casamento nulo como anulável
Viu-se na seção 4 que as diferenças entre os casamentos nulo e anulável, embora existentes, não têm o condão de impossibilitar a compreensão de que se deve entender aquele nos termos deste, ou seja, de que se deve entender casamento nulo como anulável. Por outro lado, é forçoso aceitar que, do fato das diferenças não representarem empecilhos à redução de (iii) à (ii), não se infere que tal redução deve ser efetuada. Com efeito, faz-se mister que se apresentem os argumentos por que seria mais vantajosa a efetuação de tal redução, de sorte que se diz que é exatamente esta a empreitada travada nesta seção.
5.1 — Da contradição em termos
Deve-se atentar para o fato de que parece ser ponto pacífico a idéia de que o ato nulo, qualquer que seja, há de ser interpretado como sempre inexistente e, portanto, não ser capaz de produzir efeitos diretos. Isto é dizer que o ato nulo “[n]ão tem existência legal e, por isso mesmo, nenhum efeito produz” (Nunes, 1999, p. 134). Em outras palavras, “[n]ulidade é negação de efeitos jurídicos, sendo, pois, intrinsecamente contraditória a assertiva de que ato nulo pode produzir efeitos jurídicos. Se [o ato] é nulo, não produz efeitos jurídicos. Se produz efeitos jurídicos, [o ato] não é nulo” (Tesheider, 1999, p. 7). Vale ressaltar que o argumento aqui exposto é logicamente válido, pois, se é o caso que “se o ato é nulo, então não produz efeitos legais”, por modus tollens[1], ter-se-á que também será o caso que:
vii) se o ato produz efeitos jurídicos, então não é nulo.
Resta agora saber se há produção de efeito jurídico direto e legal pelo casamento dito nulo. Caso haja, imperativo será admitir que, pelo menos, há problema veemente na nomenclatura a ser analisado.
Ora, parece não ser mister uma análise exaustiva para se demonstrar que um casamento nulo, até o ponto de ser decretada a sua nulidade, produz efeitos jurídicos, os quais, quase sempre, resistem à própria decretação de nulidade do matrimônio. Bem se sabe que os cônjuges que contraíram casamento que no futuro venha a ser decretado nulo não deixaram, por um dado período de tempo, de exercerem as mesmas atividades e funções dos que se casaram sob a égide do casamento válido. Dessa forma, diz-se que, assim como os que se casaram em matrimônio válido produzem efeitos jurídicos — muita vez, irreparáveis e insusceptíveis de sofrerem retroatividade —, os que contraíram casamento nulo também produzem efeitos de mesma natureza.
Deve-se ainda entender que, embora o mundo jurídico não seja o mundo dos fatos, ele deve servir a este, de forma que não é razoável a aceitação de uma incompatibilidade insanável entre ambos. Explica-se: dizer que um casamento que depois de dez anos foi decretado nulo inexistiu por todo o tempo mais parece um disparate do que uma assertiva juridicamente válida. O casamento de dez anos, mesmo que abarcasse vício, existira até o ponto em que foi decretada a sua nulidade, de forma que, antes da referida decretação era ato não nulo e, portanto, tinha — como sempre tem — o condão de produzir efeito jurídico. Em outras palavras, “[a] produção de efeitos, enquanto não pronunciada a nulidade, explica-se com a observação de que nulidade não é o vício do ato, mas conseqüência da sentença” (Tesheider, 1999, p. 7). Retomar-se-á este ponto na subseção 5.2. Por agora, contudo, deve-se se ater ao fato de que, como em favor de que se argumento, não há como fugir da idéia de que:
viii) o casamento nulo produz efeitos jurídicos.
Logo aqui, ao se confrontarem (vii) e (viii), aparece uma contradição. Veja-se que, de acordo com (vii), se um ato nulo produz efeitos jurídicos, logo não é nulo; e, de (viii), tem-se que o casamento nulo, que é um ato jurídico, produz efeitos jurídicos. Logo, por modus ponens[2], infere-se que o casamento nulo, por produzir efeitos jurídicos, não é nulo; ou melhor, tem-se que:
ix) o casamento nulo não é nulo.
Sabe-se, obviamente, que contradições como a exposta em (ix) devem ser abonadas do mundo jurídico a todo custo, de forma que aqui já se apresenta um motivo suficientemente plausível para se reformular o entendimento do que seria casamento nulo. Resta explicar o porquê que se pensa ser a redução de (iii) à (ii) a maneira mais adequada de se dar cabo à contradição presente em (ix).
5.2 — Da solução
Recapitulando, o que se tem aqui é uma contradição, exposta em (ix), que é uma decorrência válida da premissa maior (vii) e da premissa menor (viii). Além disso, sabe-se que o que se pretende é sanar a contradição exposta por (ix). Para tal, como é forçoso observar, somente há duas saídas: deve-se ou promover a mudança da interpretação de (vii) ou a de (viii), excetuando-se a idéia de que promover a mudança de ambos (vii) e (viii) representaria saída alternativa às duas anteriores. Vê-se que a assertiva (vii), qual seja, a de que “se um ato produz efeitos jurídicos, então não é nulo” parece ser suficientemente sólida para sofrer qualquer mudança. Isso se dá mesmo porque é da própria definição de nulidade do ato não produzir efeitos jurídicos, de sorte que se faz impossível qualquer reformulação de (vii). Resta, portanto, mesmo por exclusão, a necessidade de reformulação de (vii), ou seja, da idéia de que o casamento dito nulo produz efeitos jurídicos.
A saída pata tal situação é simples. Basta se entender que a ação que decretará a chamada nulidade do casamento deverá ser sempre constitutiva e nunca declaratória, pois, se for declaratória de nulidade, ter-se-á a situação em que o mundo jurídico declara que o casamento nunca existiu e, ao mesmo tempo, terá de declarar que esse casamento que nunca existiu, que é nulo, portanto, produziu efeitos jurídicos. Conseqüentemente, cair-se-á na teia do argumento exposto pela conjunção de (vii), (viii) e (ix), de forma que será forçoso se admitir o constrangimento de se ter no mundo jurídico uma contradição exposta pela assertiva de que há um ato nulo que não é nulo, ou seja, que algo pode ser nulo e não ser nulo, como facilmente se colige de (ix).
Se, por outro lado, entender-se que a ação para decretação da chamada nulidade do casamento deverá ser constitutiva, a contradição não aparece, pois a referida ação terá por fito desconstituir uma relação matrimonial viciada, mas existente até o ponto em que a sentença desconstitutiva seja proferida. Nesse caso, o que produziu efeito jurídico não foi um ato nulo, mas um ato que depois de ter produzido os referidos efeitos foi anulado por sentença desconstitutiva. Em outras palavras, caso se entenda que é a ação constitutiva a mais adequada, não se propagará a idéia de que um casamento dito nulo nunca existiu, mas sim a de que ele existiu até o ponto em que foi decretada a sua desconstituição, de forma análoga ao que ocorre com o casamento anulado. Assim, a terminologia “casamento nulo” deverá ser interpretada como “casamento anulável”, guardadas as peculiaridades não dos conceitos de nulidade ou de anulabilidade, mas sim das especificidades que cada caso exposto em (iii) impõe e que as diferenças expostas por (iv), (v) e (vi) apresentam.
Note-se que, de acordo com o entendimento que aqui se propaga, (viii), ou seja, a idéia de que o casamento nulo produz efeitos jurídicos não fará mais sentido, pois o casamento que vier a ser decretado nulo o será como se fosse anulado, tendo, assim, a sua existência reconhecida do dia da celebração do mesmo ao dia da decretação de sua nulidade, que deveria ser compreendida como anulabilidade. Desta feita, repete-se, não mais se poderá dizer que o casamento nulo produz efeitos jurídicos, pois dado que a ação é desconstitutiva de uma relação e não declaratória da inexistência dessa, o casamento, antes de ser desconstituído, produziu efeitos jurídicos e não era, durante aquele período, nulo.
Deve-se notar que o que se argumentou até aqui nesta subseção é diferente de se defender que a sentença desconstitutiva do casamento por infringência ou de impedimento ou do inciso I do art. 1548 do CC não deve retroagir à data da celebração do casamento. Defende-se, sim, que a sentença deve retroagir, se for o caso. É bem verdade que pode haver situações em que a sentença de decretação de nulidade do casamento não retroaja, ou seja, tenha efeito ex nunc: são os casos de putatividade em que, por exemplo, o casamento, “[e]mbora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, […] em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória” (CC, art. 1561), mas, em regra, a sentença desconstitutiva terá efeito retroativo, ou seja, ex tunc, sem que isso represente prejuízo para o entendimento de que o casamento, durante a existência no mundo factual, também existiu no jurídico, não sendo, portanto nulo durante esse período e produzindo, validamente, os inevitáveis efeitos jurídicos.
6 — Conclusão
Esta breve conclusão tem dois propósitos. Primeiro, nos dois parágrafos subseqüentes, resumir-se-á o que constitui o argumento central aqui exposto, qual seja, o de se promover o entendimento de que o casamento nulo deveria ser entendido como casamento anulável. Segundo, nos parágrafos restantes, apresentar-se-á uma idéia que poderá, como decorrência da equivalência entre os casamentos nulo e anulável, ser em outro momento mais pormenorizadamente desenvolvida e, espera-se, incorporada pelas doutrina e jurisprudência. Fala-se, aqui, da defesa de que o direito de ação concernente aos casamentos ditos nulos deve sofrer prazo prescritivo, ou, de outra forma, os prazos seriam atrelados ao próprio direito de decretação de nulidade, situação em que se falaria de prazo decadencial. Antes de se chegar lá, contudo, deve-se expor os dois parágrafos prometidos.
Assim sendo, diz-se que se demonstrou, neste artigo, que desarrazoado parece ser o posicionamento da doutrina em se entender o casamento dito nulo como manifestação de ato nulo, pois isso, conforme demonstrado em 5.1, acarretaria uma grave contradição. Mostrou-se ainda que a saída para que se possa aniquilar a supramencionada contradição diz respeito ao entendimento que o termo nulidade, nos casos de impedimento do matrimônio, deve ser entendido como anulabilidade, de forma que a ação de nulidade deveria ser unicamente desconstitutiva e nunca declaratória.
Desta feita, reitera-se, é que se demonstrou que o termo “nulo”, que o próprio CC atrela ao termo “casamento”, não representa nada mais senão uma infeliz nomenclatura, a qual deve ser entendida como “anulável”. O casamento anulável é aquele que existiu até ter sua anulação decretada e que, portanto, é totalmente compatível com a idéia de que pode produzir efeito jurídico até o dia de sua anulação. Deve-se, assim, entender que o casamento foi válido, repete-se, até o ponto em que a sentença decreta a sua nulidade. Da decretação da nulidade, tem-se não a retroatividade no tempo, não a ficção de se entender que nunca houve casamento, mas sim a simples assertiva técnica de que a sentença, essa sim, retroage no mundo jurídico — salvo caso de putatividade —, mas não no mundo real.
Ademais, pode-se afirmar que o entendimento doutrinário não deveria ser o da imprescritibilidade das ações ditas de nulidade, pois os argumentos que sustentam tal entendimento são todos relativos ao fato de que o direito à ação de decretação de nulidade seria imprescritível porque tal ação nasce com o direito que por ele viria a ser tutelado. Ora, independentemente da propriedade de tal argumentação, não há como se fugir da assertiva segundo a qual, também nos casos de anulabilidade, o direito a tal anulação nasce com o direito à ação que a tutela. Mas, mesmo assim, os casos de anulabilidade sofrem prazos decadenciais, de sorte que se entende que, da mesma forma, tais prazos deveriam dizer respeito aos casos ditos de nulidade.
Em outras palavras, diz-se que o fato de haver prazos específicos decadenciais para o exercício do direito à anulação do casamento (CC, art. 1560) e desses prazos serem cumpridos apesar dos argumentos a favor da imprescritibilidade da ação de nulidade — que, como se disse, são todos aplicáveis aos casos de anulabilidade — deveria ser, o referido fato, suficiente para que os juízes entendessem que se deveria aplicar ao direito à dita nulidade do casamento o prazo dado ao direito à ação em casos em que a lei não expuser disposição específica, que é, como se sabe, de dez anos (CC, art. 205).
Somente assim, com o entendimento dos casos de nulidade como casos de anulabilidade, é que se poderá livrar o ordenamento jurídico dos constrangimentos intelectuais gigantescos de se ter de lidar com contradições como se elas não existissem e, na mesma proporção, diz-se que somente através da aplicação de prazos a ambos os casos de anulabilidade e os ditos de nulidade de casamento é que se poderá imprimir ao direito a estabilidade e segurança jurídicas, que tal ciência tanto almeja.
Bibliografia e referências
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VENOSA, Silvio de Salvo. (2002). Direito Civil: Direito de Família. 2 ed. São Paulo: Atlas.
[1] Modus tollens é a forma de raciocínio válida segundo a qual, se a afirmação “se A, então B” é verdadeira, então “se não B, então A” necessariamente também será verdadeira. Por exemplo, se a assertiva “se choveu, então o chão molhou” for verdadeira, então necessariamente também será verdadeira a afirmação “se o chão não molhou, então não choveu”.
[2] Modus ponens é a forma de raciocínio válida segundo a qual, se as assertivas “se A, então B” e “A” são verdadeiras, então necessariamente “B” também será verdadeiro. Por exemplo, se as assertivas “se choveu, então o chão molhou” e “choveu” forem verdadeiras, então necessariamente também será verdadeira a afirmação “o chão molhou”.
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Tassos Lycurgo