Sumário: 1- Imputação Objetiva. 2-Ilicitude e imputação objetiva. 3-Imputação objetiva e dolo. 4-Imputação objetiva e culpabilidade/inexigibilidade de conduta diversa. 5-Teoria do crime e imputação objetiva
1- Imputação objetiva
“As raízes históricas espirituais da teoria da imputação objetiva remontam-se até a filosofia jurídica de Hegel. Dela é que Larenz, no ano de 1927, extraiu uma concepção da imputação objetiva, que logo depois foi aplicada por Honig, especificamente, na dogmática jurídico penal. Foi a Honig (e, é claro, também a Larenz) que me referi ao desenvolver em 1970 aquilo que denominei de princípio do risco, que desde então tem feito uma carreira repleta de sucessos.” (Claus Roxin, Estudos de Direito Penal, pág. 124)
A teoria da imputação objetiva significa, num conceito preliminar, atribuição (imputação) de uma conduta ou de um resultado normativo (jurídico) a quem realizou um comportamento criador de um risco juridicamente proibido. Tem guarida nas idéias de que o resultado normativo só pode ser imputado a quem realizou uma conduta geradora de um perigo juridicamente proibido e de que o evento deve corresponder àquele que a norma incriminadora procura proibir. Trabalha com os conceitos de risco permitido (excludente da tipicidade) e risco proibido (a partir do qual a conduta adquire relevância penal). Como métodos auxiliares, serve-se dos princípios da confiança, da proibição de regressus, do consentimento e participação do ofendido e dos conhecimentos especiais do autor a respeito das condições e circunstâncias pessoais da vítima ou da situação de fato.
São as linhas mestras da imputação objetiva:
“Em sua forma mais simplificada, diz ela: um resultado causado pelo agente só deve ser imputado quando o comportamento do autor cria um risco não permitido (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este resutlado se encontra dentro do alcançe do tipo (3)” (Claus Roxin, Estudos de Direito Penal, tradução: Luis Greco, 2006, página 104)
Tem tal teoria três grandes regras (das quais é possível inferir outras):
(a) a criação (ou incremento) de um risco proibido relevante:
(b) conexão direta entre esse risco e o resultado jurídico;
(c) que esse resultado esteja no âmbito de proteção da norma.
A teoria da imputação objetiva não se confunde com responsabilidade objetiva (que significa responder por um crime sem ter atuado com dolo ou culpa). Difere ainda da imputabilidade penal (elemento da culpabilidade normativa pura) que significa a capacidade da pessoa de entender o caráter ilícito/proibido do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.
São unidos por tal teoria, portanto, a conduta do agente com o risco proibido criado (ou incrementado) (teoria da imputação objetiva da conduta) assim como esse risco com o resultado jurídico (teoria da imputação objetiva do resultado). Há, como se vê, duas modalidades de imputação objetiva: da conduta e do resultado.
Na imputação objetiva da conduta o que se procura saber é se a conduta criou (ou incrementou) um risco proibido/intolerado relevante. Se a conduta, apesar de típica formalmente, era permitida, não há falar em criação de risco proibido.
Na imputação do resultado importa saber duas coisas: (i) se existe conexão direta entre o resultado e o risco criado e (ii) se o resultado está inserido no âmbito de proteção da norma.
O melhor é enfocar o tema em duas vertentes: imputação da conduta e imputação do resultado. O elo existente entre ambas é inegável.
A imputação objetiva complementa (não substitui) a teoria do nexo causal (art. 13 do CP – teoria da conditio sine qua non). É impossível abdicar do nexo de causalidade, pois a comprovação material e física do elo existente entre a conduta e o resultado naturalístico é uma garantia que não podemos dispensar.
Uma vez constatada a causalidade natural (ou mecânica ou causal), importa agora, ainda no âmbito da tipicidade, também verificar a imputação objetiva, que é levada a efeito de acordo com seus critérios normativos. Leia-se: a imputação normativa (objetiva) vem depois da comprovação da causalidade natural. Só se pode falar em imputação objetiva (juízo valorativo ou normativo de imputação), em suma, depois de constatada a adequação formal do fato à letra da lei, garantindo-se, portanto, que a teoria da imputação objetiva de forma alguma viola os princípios da legalidade e anterioridade.
A imputação objetiva é requisito normativo (ou axiológico) do fato ofensivo típico.
Nesse sentido, ensina Damasio E. de Jesus:
“A imputação objetiva constitui elemento normativo do tipo, seja o crime doloso ou culposo.”
No mesmo sentido:
“A imputação objetiva é um elemento normativo implícito em todo o tipo, cuja ausência implica exclusão de elementar e conseqüente atipicidade do fato.” (CAPEZ, Fernando. O Declínio do Dogma Causal. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, mar. 2000. Disponível em: <www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>.)
2- Ilicitude e imputação objetiva
A imputação objetiva exige, como elemento normativo do tipo penal, que a conduta gere um risco juridicamente proibido. Ela é, portanto, um elemento normativo de valoração jurídica, haja vista que um dos seus requisitos/regras é a proibição jurídica do risco/conduta.
Toda conduta ilícita/proibida cria um risco juridicamente proibido. Ao contrário, toda conduta lícita/permitida cria um risco juridicamente permitido. O risco que advém da conduta será licito ou ilícito conforme a conduta for licita ou ilícita. Não há risco lícito advindo de uma conduta ilícita, nem o inverso. O risco, portanto, tem a mesma característica (licitude/permissão ou ilicitude/probição) da conduta da qual ele advem. Neste sentido, Luis Flavio Gomes ensina:
“Se a conduta, apesar de típica formalmente, era permitida, não há falar em risco proibido. Conduta permitida (exemplo: intervenção cirúrgica) não gera risco proibido.” (Crime culposo e teoria da imputação objetiva, http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041008100448382).
Quem mata alguém em legítima defesa, quem mata em estado de necessidade, quem mata em exercício regular de um direito, quem mata em estrito cumprimento de um dever legal, cria um risco juridicamente permitido ao bem jurídico vida. Todas as vezes em que o agente age amparado por uma causa de exclusão de ilicitude/antijuricidade, ele tem a permissão legal de agir (tanto que sua conduta é lícita). Se tem a permissão legal de agir, logo tem a permissão legal de criar o risco. É permitido o risco, portanto, em todas as hipóteses de exclusão de ilicitude/antijuridicidade . Não há sequer uma situação de conduta justificada por uma causa de exclusão de ilicitude, que não seja criadora de um risco permitido/tolerado.
Sempre que a conduta for lícita/permitida, não há imputação objetiva (não há tipicidade, pois a ausência da imputação objetiva acarreta a atipicidade). Não há conduta típica que seja lícita, havendo um elemento normativo tão amplo: a imputação objetiva. Assim, se a licitude/permissão da conduta já é analisada na tipicidade, porque analisá-la novamente na antijuridicidade? Se típica a conduta, ela será obrigatoriamente antijurídica. Tornar-se, portanto, desnecessário analisar-se o segundo filtro da teoria do crime (a antijuridicidade/ilicitude)
“Um comportamento que gera um risco permitido é considerada socialmente normal, não porque no caso concreto esteja tolerado em virtude do contexto em que se encontra, mas porque nessa configuração é aceito com natural. Portanto, os comportamentos que criam riscos permitidos não são comportamentos que devam ser justificados, mas que não realizam tipo algum” (A Imputação Objetiva no direito Penal, Gunthes Jakobs, página 39)
3-Imputação objetiva e dolo
Leciona Damasio:
“o dolo deve abranger todos os elementos da figura típica” (Direito Penal; parte geral. p. 259)
Ensina Nelson Hungria:
“Dolo é a vontade livre e conscientemente exercida no sentido do resultado antijurídico. (O novo Código não repeliu a noção normativa do dolo. Dolo é a vontade sceleris. Não existe sem a consciência da ilicitude)” (Comentários ao Código Penal, Decreto-Lei 2848, de 07 de dezembro de 1940, vol. V, página 45).
Ainda:
“O dolo não é só representação e vontade do resultado antijurídico: é também consciência de que se age contrariamente ao direito, ou, mais concisamente, consciência da injuricidade. Sem o entendimento de oposição ao dever jurídico ou de que se incide no juízo de reprovação que o informa o preceito incriminador, não há falar-se em dolo. É este o postulado da chamada teoria normativa do dolo” (Comentários ao Código Penal, Decreto-Lei 2848, de 07 de dezembro de 1940, vol. I, página 143).
O dolo pela teoria finalista da conduta/normativa pura da culpabilidade é desprovido da potencial/real consciência da ilicitude. Ele é elemento subjetivo implícito do tipo penal nos crimes dolosos, estando localizado no primeiro filtro da análise/teoria do crime (tipicidade). “Em todos os delitos dolosos, o dolo é elemento essencial do injusto” (Hans Welzel, O Novo sistema Jurídico Penal, pág. 72). O dolo, para essa(s) teoria(s), é somente a vontade de realizar o tipo penal, independente de o agente saber ou não saber se a conduta que ele pratica é lícita/permitida ou ilícita/proibida, haja vista que essa verificação será (seria) feita na culpabilidade.
Porém, se o dolo é a vontade de realizar o tipo penal com todos seus elementos, o dolo deve abranger a imputação objetiva (elemento normativo do tipo). A imputação objetiva é um elemento normativo, pois se traduz na exigência da criação de uma risco juridicamente proibido (1ª regra) e que esse risco tenha conexão direta com o resultado jurídico (2ª regra). Se o tipo penal tem um elemento normativo amplo (proibição do risco/conduta), logo é necessário que o dolo seja provido do real conhecimento da ilicitude. Se o agente não conhece a iliciude/proibição de sua conduta, o seu dolo não alcança um elemento do tipo penal (a imputação objetiva/elemento normativo do tipo). Assim, a teoria da imputação objetiva exige um remanejamento do conhecimento da ilicitude da culpabilidade para a tipicidade/elemento subjetivo/dolo. O agente deve saber que o comportamento/risco/resultado é proibido. O dolo não pode ser neutro, alheado de qualquer juízo de valor sobre a conduta.
A culpabilidade normativa pura esvazia-se, porque seus elementos (potencial conhecimento da ilicitude e imputabilidade) são requeridos no dolo/elemento subjetivo/tipicidade. Junto com a capacidade especifica (potencial conhecimento da ilicitude) vai a capacidade genérica (imputabilidade). A imputabilidade “é a capacidade de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer” (Luis Regis Prado, Elementos do Direito Penal, volume 1, pág.120); conhecimento da ilicitude é o conhecimento especifico da proibição da conduta. Todos os argumentos utilizados para o remanejamento do conhecimento da ilicitude aplicam-se à imputabilidade, pois sem o genérico/imputabilidade não há o específico/conhecimento da ilicitude.
4-Imputação objetiva e culpabilidade/inexigibilidade de conduta diversa
A inexigibilidade de conduta diversa, cujo significado está no seu próprio nome, é tradução do livre arbítrio, fundamento/dogma de todo o direito penal. “A jurisprudência alemã vê a essência da culpabilidade no fato de que o autor se decidiu em favor do ilícito, apesar de lhe ser possível comportar-se licitamente, decidir-se em favor do direito.” (Claus Roxin, Estudos de Direito Penal, página 145). Se é exigível conduta diversa é porque o ser humano poderia impedir o curso das condicionantes exógenas e endógenas; poderia livrar-se do caminho imposto pelo determinismo e agir de outra forma. Pelo contrário, se não é exigível conduta diversa é porque o ser humano foi determinado àquela conduta sem outra opção. Se a pessoa pudesse não cometer o crime, era lhe exigível conduta diversa. Caso contrário, se a pessoa foi determinada e não poderia evitar o cometimento do crime, era lhe inexigível conduta diversa, estando afastada a culpabilidade/reprovabilidade da conduta (teoria normativa pura da culpabilidade).
Qualquer conduta, cuja carga de determinismo impõe ao ser humano nenhuma outra alternativa senão o cometimento do crime, deve ser tolerada/permitida. Sem opção de agir de outra forma, o homem não pode ser punido. A sociedade não pode exigir outra conduta. E se ela não pode exigir outra conduta, deve tolerar aquela conduta que foi praticada sob o determinismo extremo. A liberdade mínima do agente de impedir a sua própria conduta, de frear os impulsos, causas, determinações e tudo que o leva aquele comportamento, deve estar presente para que a conduta seja proibida/intolerada. Não se proíbe o que é impossível, se não há possibilidade de agir de outra forma, a proibição não pode alcançar a conduta. Acentua Helmut Mayer: “o que não pode ser razoavelmente exigido a um homem, não lhe pode ser imposto pelo direito positivo” (Das Strafrecht des deutschen Volks, 1936, pág. 230: “Wes einem Menschen nichit zugemutest wird, das wird ihm auch nicht geboten”)
Todos os casos de inexigibilidade de conduta diversa, são casos de condutas toleradas/permitidas, porque: i) não se proíbe o impossível; ii) se não há livre arbítrio, a conduta é imputável às causas e condições determinantes, que o agente não poderia de maneira alguma evitar, não sendo sua responsabilidade o comportamento. iii) se as causas do crime não são imputáveis ao ser humano livre, a pena também não se lhe pode impor.
Se os casos de inexigibilidade de conduta diversa são casos de condutas/riscos tolerados, logo não há falar em imputação objetiva nesses casos. A tipicidade, portanto, está afastada por falta do elemento normativo/imputação objetiva. Especificamente, por ausência de criação de um risco juridicamente proibido/intolerado.
Portanto, o último elemento da culpabilidade normativa pura é exaurido na tipicidade, em seu elemento normativo/imputação objetiva.
5-Teoria do crime e imputação objetiva
Com a imputação objetiva, a única análise/teoria do crime possível é a da tipicidade. Se é típica, a conduta é crime, sem necessidade de nenhuma outra verificação. Ficam inúteis as análises da antijuridicidade e da culpabilidade. A sistematização resume-se nos diversos elementos (objetivos/normativos/subjetivo) do tipo penal.
O dolo/elemento subjetivo é dotado de conhecimento da ilicitude para satisfazer a necessidade de consciência do elemento normativo/imputação objetiva. A imputação objetiva impõe que o dolo seja provido/completo com o conhecimento da ilicitude, sem o qual ele não alcança todos os elementos explícitos e implícitos do tipo penal.
A antijuridicidade/ilicitude é verificada quando da análise da conduta/risco/resultado ser proibido/intolerado ou permitido/tolerado, que se faz no juízo da tipicidade/elemento normativo/imputação objetiva. Se há imputação objetiva, logo a conduta é ilícita, dispensando-se a verificação do segundo filtro da antijuridicidade/ilicitude.
A culpabilidade normativa pura esvazia-se porque a imputabilidade (capacidade genérica de conhecimento e determinação) e o conhecimento da ilicitude (capacidade específica de conhecimento da proibição) são elementos do tipo/aspecto subjetivo/dolo. E a inexigibilidade de conduta diversa, como princípio geral de direito que impõe a tolerância da conduta, afasta a imputação objetiva da conduta, dispersando-se da culpabilidade, onde estava alojada.
Não há desrespeito à análise/teoria do crime estratificada, como sempre foi. A análise se faz agora só na tipicidade, que engloba plenamente todos os demais requisitos/filtros do crime. Não há insegurança jurídica, nem chance de que a tipicidade seja estendida pelo operador do direito, porque ele ainda tem limites legais nos tipos penais previamente estabelecidos pelo legislador. Nenhuma conduta geradora de risco proibido por outros ramos do direito terá relevância jurídico penal se não houver o prévio tipo penal estabelecido pelo legislador. Assim como nenhuma conduta, cuja intolerância social seja entendida pelo aplicador do direito, será crime sem o tipo penal (tatbestand/fatispecie) prévio.
Há algumas conseqüências: i) o erro de proibição vencível deixa de interessar ao direito penal; ii) os inimputáveis estão fora do alcance do direito penal, devendo ser tratados por outro ramo do direito (sendo inadequado o desenvolvimento desses ramos do direito aqui); iii) as antigas excludentes de ilicitude (legítima defesa/estado de necessidade/exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever legal) são causas de exclusão da tipicidade, sem ser necessário socorrer-se à teoria da tipicidade conglobante; iv) a inexigibilidade de conduta diversa leva à atipicidade da conduta. Há outras conseqüências, as quais não pretendo exaurir, lembrando que a graduação da reprovabilidade e a necessidade da pena, sob o ponto de vista preventivo especial e/ou geral devem ser tratados na teoria da pena.
Finalizo, pensando ter demonstrado que a teoria da imputação objetiva deve ser entendida de forma coerente. Não se pode negar todas as suas conseqüências na teoria do crime. Os argumentos que dão guarida às conclusões não são novos, pelo contrário são assaz antigos e aceitos.
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Ricardo Antonio de Souza