O ‘bagaço’ não reciclável

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A sociedade mundial nos últimos anos tem se aperfeiçoado na prática de aproveitar o inaproveitável, consumir o inconsumível, levando a termo a máxima científica de que na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma (Lavoisier). A cana-de-açúcar é um exemplo claro e próximo no nosso Brasil, pois dela se extraí etanol, açúcar, com o bagaço o adubo, energia etc. Do lixo doméstico se aproveita tudo.

Essa industrialização do resto daquilo que consumimos não está ligada a uma consciência ecológica, como querem alguns, mas ao processo produtivo a que estamos todos ligados. Contaminado pela lógica capitalista, o tema ecologia, tão em moda hodiernamente, se transforma num discurso hipócrita, pois posterga a importância da diminuição do consumo e ressalta a idéia de reciclagem. A idéia não é preservar a natureza, mas obter vantagem econômica na industrialização ou, ao menos, uma vantagem moral. O viver do lixo agora tem outro sentido, pois não mais é preciso comê-lo, basta vendê-lo. Algumas pessoas gabam-se por sua filantropia ao separar o lixo para o “outro” que passa para recolhê-lo. O pai agora ensina seu filho que, ao atender o tocar da campainha, não deve mais dizer que não há resto de comida, vez que o lixo pode ser aproveitado.

A característica da reciclagem está no aproveitar aquilo que não pode mais ser aproveitado, já que o consumidor dali retirou o que lhe interessava. É assim com o bagaço! Tiramos o doce suco e o resto vai para o lixo, porém o processo determina sua reutilização como adubo orgânico, dando-lhe nova utilização, tão importante quanto aquela.

Mas nem tudo é reciclável! Alguns restos não conseguem ser reaproveitados, não havendo um espaço no processo econômico a que se consiga dar-lhe destinação. Eis o resto do resto, aquilo que ninguém quer por não se aproveitar. A esse resto, não reciclável, o destino é o isolamento, o afastamento dos nossos olhos, para que não possamos enxergá-lo. Mas o afastamento não nos permite tomar consciência que aquele resto foi por nós produzido e o seu constante amontoamento tende apenas a aumentar e protelar o problema.

A sociedade moderna é antropoêmica, o que significa dizer, vomita a parcela da sociedade que não lhe interessa, excluindo-a do seu meio (Lévi-Strauss). Quem interessa à nossa sociedade? O doente, o velho, o enfermo, o delinqüente? Com certeza, não! Eles são então excluídos, afastados, institucionalizados.

O processo de industrialização aproveita os corpos que são aptos para seu desenvolvimento, sugando-os e devolvendo-os já esgotados. O precioso liqüido da vida é absorvido, mas o corpo esbagaçado pelo trabalho não é aproveitado. A reciclagem não é possível e nem interessante.

Parcela da nossa sociedade não consegue sequer ter seu corpo consumido pelo processo econômico, não que lhe falte vontade, interesse ou capacidade, mas pelo simples fato de não encontrar espaço, vaga – dois corpos não podem ocupar uma mesma vaga (Newton), o que no processo capitalista é levado à risca – o que um empregado pode fazer não justifica a mantença de outros.

O “resto” dessa sociedade passa a vagar pelo seu meio, sem espaço para ligar-se a ela. Não há aderência social. Esse desligamento leva a exclusão ou a inclusão precária e marginal que, muitas vezes, resvala para a prática de atos contrários ao interesse social, fazendo nascer a delinqüência, o crime e o encarceramento. A sociedade contemporânea produziu uma nova desigualdade, que resulta do fim de um longo período de possibilidades de ascensão social. A nova forma de pobreza já não possibilita qualquer alternativa e desaba sobre o destino dos miseráveis como uma condenação. A desmoralização do trabalho, como meio privilegiado de integração, obriga os indivíduos a buscar alternativas radicais.

O cárcere representa a “ponta do iceberg” no processo de exclusão e ao encarcerado uma nova vida lhe é dada. Não há uma nova oportunidade para a vida e sim uma nova vida, que se marcará pela estigmatização e, se antes não conseguia a inserção social, agora a mesma é impossível. A etiqueta de criminoso, imposta socialmente, torna-o invisível aos olhos da sociedade, que enxerga naquela pessoa somente os atributos que lhe foram impostos. A aparência de criminoso é a única a ser vista e o ser humano que por traz se encontra é esquecido.

Não há interesse no aproveitamento desse resto social, na reciclagem, por isso, da mesma maneira que nas favelas, nossas prisões tornaram-se depósitos, afastados dos nossos olhares, como se tivéssemos de ser protegidos daquela nefasta visão para a qual em nada contribuímos. Todavia, cada tijolo levantado foi ali colocado por um de nós e cada pessoa encarcerada representa o nosso fracasso como membros de um grupo social. A “sociedade” não é uma entidade ou algo natural, mas fruto uma construção histórica. Para entendermos a violência precisamos olhar para a nossa história. Nos acostumamos a conviver num mundo onde a desigualdade econômica é vista como fruto da virtude de alguns e incompetência de outros. Quando, na fase do capitalismo sem trabalhadores, o Brasil explode, ficamos todos atônicos e perplexos. Erguemos nossos muros e cercamos nossas casas sem nunca nos questionarmos até onde isso irá!?!

As rebeliões e os ataques ocorridos no Estado de São Paulo não foram fatos isolados no Brasil ou no mundo, pois representam o grito do “resto”. Não foram os primeiros, e nem serão os últimos, já que diariamente o “resto” é amontoado.

A criminalidade organizada cresce e se desenvolve onde nossos olhares não chegam e não querem chegar. Cresce onde a única resposta social levada, muitas vezes a domicílio, é a arma da repressão e da violência.

O grito dos excluídos nos fez acordar por breves momentos, discutir e tentar compreender a razão daquela revolta. Passados alguns dias, nossa consciência tranqüila nos faz adormecer novamente, até que tudo recomece.

 

Referencial bibliográfico
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. Globalização – as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 28ª edição, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Marcelo Gonçalves Saliba

 

Promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, mestrando em Ciências Juridicas pela FUNDINOPI, professor de Direito Penal e Processual Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO

 

Maurício Gonçalves Saliba

 

graduado em historia, mestre e doutorando em Educação pela UNESP/Marília, professor visitante de pós-graduação da UNICAMP e professor de sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos-FAESO.

 


 

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