Sumário: I- Introdução; II- Tratamento legal e jurisprudencial; III- Inovações na esfera penal e processual penal militar IV- Considerações finais; VIII – Documentos consultados.
Este artigo trata da revogação do artigo 290 do Código Penal Militar que versa sobre os crimes de tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar em face da promulgação da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 (nova lei de tóxico). A nova legislação traz repercussões, também, na esfera da norma processual penal militar, pois alterou o rito ordinário, até então adotado, para o processamento dos feitos que apuravam estas espécies de delitos. Ressalta-se a importância do tratamento dado ao usuário pela nova norma, atendendo, assim, ao reclamo social, que, infelizmente, não vinha sendo acolhida, até então, pela jurisprudência do Colendo Superior Tribunal Militar. Vale destacar, ainda, os efeitos benéficos introduzidos na sistemática penal e processual penal militar, em face do severo posicionamento, então vigente, adotado pela jurisprudência castrense, pois não se fazia a distinção entre traficante e usuários para imposição de pena, numa clara desproporcionalidade da reprimenda aplicada, fazendo-se necessário uma nova leitura das mencionadas normas, sob o impacto da novel legis. Partindo em seguida para conclusão, examina-se algumas situações específicas, de forma a realçar o avanço introduzido na esfera militar, enfatizando as garantias constitucionais incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, de forma a aplicar a pena de forma mais justa, como forma de assegurar a prevalência dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.
I – INTRODUÇÃO.
Neste trabalho analisaremos a revogação do artigo 290 do Código Penal Militar que versa sobre os crimes de tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar em face da promulgação da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 (nova lei de tóxico).
Abordaremos ainda as repercussões na esfera da norma processual penal militar, pois alterou o rito ordinário, até então adotado, para o processamento dos feitos que apuravam estas espécies de delitos.
Destacaremos a importância do tratamento dado ao usuário pela nova norma, atendendo, assim, ao reclamo social, que não vinha sendo acolhida, até então, pela jurisprudência do Colendo Superior Tribunal Militar. Ressalte-se, ainda, os efeitos benéficos introduzidos na sistemática penal e processual penal militar, em face do severo posicionamento, então vigente, adotado pela jurisprudência castrense, pois não se fazia a distinção entre traficante e usuários para imposição de pena, numa clara desproporcionalidade da reprimenda aplicada, fazendo-se necessário uma nove leitura das mencionadas normas, sob o impacto da nova legislação.
Partindo em seguida para conclusão, analisaremos algumas situações específicas da nova lei em comento, de forma a realçar o avanço introduzido na esfera militar, enfatizando as garantias constitucionais incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, aplicando a pena de forma mais justa, como forma de assegurar a prevalência dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal
II – TRATAMENTO LEGAL E JURISPRUDENCIAL.
O Código Penal Militar-CPM disciplinava os delitos de tráfico, uso e porte de substância entorpecentes no seu artigo 290 e, da mesmo forma, regulamentava os casos considerados similares pela referida legislação, ad literram:
Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar
“Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, até cinco anos.
Casos assimilados
1º Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar:
I – o militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar;
II – o militar que, em serviço ou em missão de natureza militar, no país ou no estrangeiro, pratica qualquer dos fatos especificados no artigo;
III – quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício.
Forma qualificada
2º Se o agente é farmacêutico, médico, dentista ou veterinário:
Pena – reclusão, de dois a oito anos.”.
Pela simples leitura do mencionado artigo constate-se, de imediato, que o mesmo não faz distinção, para aplicação de pena, entre usuário e traficante. Esta era uma das principais e severas críticas que os operadores do direito teciam a respeito da norma em comento.
No entanto, o C. Superior Tribunal Militar, não atendendo aos reclamos e críticas, mantinha a aplicabilidade integral do artigo, não se estabelecendo a distinção entre usuário e traficante condenando os réus nos termos do artigo do CPM, sub examine, mesmo em caso de porte de quantidade mínima de droga, como forma de manter outros princípios das Instituições Militares.
Nesse sentido decidiu a Egrégia Corte[1]:
“EMENTA. Posse de Cannabis Sativa Lineu (“maconha”) no interior de quartel. Princípio da Insignificância. Inaplicabilidade. A pequena quantidade de entorpecente não tem o condão de descaracterizar o delito capitulado no artigo 290 do CPM, por conta das peculiaridades do Sistema Castrense, a repercussão e as conseqüências nocivas causadas pelo uso de drogas. Prova bastante dessa gravidade é a circunstância de o Acusado ter sido surpreendido durante exercício operacional, onde foi encontrada a “droga”, oculta no estojo de limpeza do fuzil que portava. Improvido o apelo defensivo. Decisão majoritária.”
(Num: 2004.01.049746-3 UF: RJ Decisão: 22/03/2005 Proc: Apelfo – APELAÇÃO (FO) Cód. 40 Data da Publicação: 08/06/2005 Vol: Veículo: DJ Ministro Relator VALDESIO GUILHERME DE FIGUEIREDO )
Ainda, na mesma linha do debate, era diuturnamente pleiteado a aplicação do princípio da insignificância ou delito de “bagatela” para os casos de posse de quantidade ínfima de droga para consumo próprio, bem como o atendimento ao princípio constitucional da proporcionalidade, como forma de encontrar a pena justa no caso concreto.
Na esfera penal, tem o magistrado o dever constitucional de encontrar a pena justa, isto porque a nossa Lei Maior impõe ao juiz penal, na individualização da pena, a obrigatoriedade de encontrar a pena adequada (justa) no caso concreto, não se contentando com a simples observância dos preceitos estabelecidos na norma infraconstitucional, consubstanciada no artigo 69 e seguinte do CPM na aplicação da reprimenda.
Nesse sentido já nos manifestamos, asseverando que:
“No nosso ordenamento jurídico a individualização da pena é uma garantia de envergadura Constitucional (art.5º.,inciso XLVI)[2]. Individualizar é tornar peculiar, é especializar, particularizar[3]. É a atividade do Magistrado, no caso concreto, que aplica a sanção penal ajustada aos fatos sob julgamento de forma especial, peculiar e particularizante, tendo por escopo a justa resposta da sociedade, suficiente e necessária, em face daquele que praticou fato delituoso, de modo que a reprimenda imposta seja proporcional, adequada (pena justa), cumprindo, assim, os fins a que se destina”[4].
O princípio constitucional da individualização da pena impõe ao magistrado, para alcançar o desiderato constitucional, a observância não apenas dos requisitos estabelecidos nos artigos 69 e seguintes do Código Penal Militar, como, infelizmente, ainda tem se posicionado a esmagadora doutrina e jurisprudência. Até mesmo porque o não atendimento destes comandos legais enseja a nulidade da decisão condenatória por ofensa à lei penal, nesse passo já decidiu o STF:
“- Sentença condenatória: individualização da pena: método trifásico (C. Pen., art. 68): ofensas que implicam nulidade.”[5]
A pena deve ser justa, como ensinava Francisco de Assis Toledo[6].:
“(…) a pena justa será somente a pena necessária (Von Liszt) e, não mais, dentro de um retributivismo kantiano superado, a pena compensação do mal pelo mal à luz de um pensamento que não esconde o velho princípio do talião. Ora, o conceito de pena necessária envolve não só a questão do tipo de pena como o modo de sua execução. Assim, dentro de um rol de penas previstas, se uma certa pena apresentar-se como apta aos fins da prevenção e da preparação do infrator para o retorno ao convívio pacífico na comunidade de homens livres, não estará justificada a aplicação de outra pena mais grave, que resulte em maiores ônus para o condenado e para a sociedade. O mesmo se diga em relação à execução da pena”
Ao fazer recair a sanção estatal contra aquele que praticou fato penalmente proibido, deve-se ter sempre em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, não se podendo aplicar sanções, mesmo previstas em lei, que atentem contra este princípio, por ser o mesmo o núcleo substancial do ordenamento jurídico e elemento justificador da legitimidade da atuação estatal.
A individualização da pena, como resposta legítima estatal, deve seguir uma aplicação de pena num modelo garantista, segundo as lições de Salo de Carvalho[7]:
“A teoria do garantismo penal, antes de mais nada, propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a “defesa social” acima dos direitos e garantias individuais.(…)os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade, estabelecendo o que Elias Diasz e Ferrajoli denominam de esfera do não-decidível, núcleo sobre o qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do “bem comum”.Os direitos fundamentais – direitos humanos constitucionalizados – adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas”
No entanto, a jurisprudência consolidada no E. STM é no sentido da não aplicabilidade dos princípios da proporcionalidade e da insignificância em relação aos casos em que a quantidade de drogas é mínima, pois entende que há outras regras militares a serem preservadas, nesse sentido, vejamos, ad litteram:
“EMENTA: Embargos. Uso de entorpecente. Inaplicação, “in casu”, dos princípios da insignificância e da proporcionalidade.
Tratando-se do uso de entorpecentes, não cabe aplicar, no âmbito da Justiça Castrense, os princípios da insignificância e da proporcionalidade, eis que tais princípios são absolutamente incompatíveis com as nuances da vida militar, em especial em sua projeção nos quartéis, nos quais se exige permanentemente sobriedade de seus integrantes, em face do manuseio de armas de todos os tipos, da execução de ações de alto risco e da necessidade de rigorosa estrutura de comando, esta última evidentemente imbricada com os princípios da hierarquia e da disciplina.
Rejeição dos Embargos.Decisão majoritária.[8] (g.n)
É, data vênia, um equívoco, pois o tipo penal em comento atentaria, apenas e tão-somente, contra o bem jurídico tutelado saúde, consoante disposto no próprio CPM, em seu Capítulo III do Título IV ( DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE). Sendo assim, a pequena quantidade de substância não teria o condão de afetar a própria saúde do agente, nem aa coletividade, para os que defendem que o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública.
Admitimos, no entanto, que o agente da conduta de porte de substância entorpecente possa, até mesmo, ser punido disciplinarmente, já que busca a jurisprudência até então consolidada a justificativa (única) para as condenações a preservação da hierarquia e disciplina no seio das Forças Armadas.
Ora, quem tem o dever legal de preservar tais valores são as Instituições Militares e isso se faz através do seu poder hierárquico disciplinar, diga-se, na esfera administrativa. A Justiça Militar deve cingir-se quanto ao aspecto jurídico penal. Tal seja, se, do ponto de vista criminal, o fato levado ao conhecimento do Poder Judiciário Militar é ou não crime, considerando, sobretudo, o princípio da útlima ratio do direito penal.
Dessa forma, em que pese o entendimento do C.STM, fundado na preservação da hierarquia e disciplina, não encontra, também, guarida no texto da Norma Fundamental, data máxima vênia, pois tem o magistrado o dever constitucional de aplicar a pena justa, logo não poderá se afastar da proporcionalidade.
Apesar da jurisprudência consolidada, há, naquela Corte, respeitáveis opiniões em contrário, sustentando a necessidade de reforma da legislação, bem como o acolhimento dos princípios da insignificância e proporcionalidade, como forma de encontrar a solução justa ao caso concreto. Nesse sentido são os votos do Min. Carlos Alberto Marques Soares[9] e do Min. Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, nos julgamentos dos casos de porte de drogas em pequena quantidade, manifestando-se pela aplicação dos princípios em tela, destacando o primeiro o seguinte:
“Esse dispositivo legal – art.290 do CPM – dev ser também analisado à luz do princípio da proporcionalidade, ao qual se chega pela conjugação de diversas disposições constitucionais. Consoante esse princípio, a resposta estatal a um delito cometido deve guardar proporcionalidade com a lesividade do ato praticado. Ao colocar na vala comum de uma única e singular norma incriminadora uma pluralidade de condutas diferentes, representadas por nada menos que onze verbos no infinitivo, o legislador desequilibrou, em abstrato, a proporcionalidade entre a gravidade de um fato e a sanção a ele imposta, conforme a sociedade demanda.
(…) Como se depreende do próprio nomen juris do tipo penal, penaliza-se da mesma forma tanto o tráfico quanto a posse e o uso de entorpecente, ao contrário da legislação especial de entorpecentes(Lei 6368/76), que faz expressa distinção entre as condutas de tráfico e uso definidas, respectivamente, nos artigos 12 e 16 do referido diploma legal.
(…) Percebe-se, com isso, que o tratamento dispensado ao traficante, por todo o ordenamento jurídico, é muito mais intenso e rigoroso do aquele dado ao cidadão que porta ou usa substância entorpecente, podendo o intérprete estabelecer claramente uma escala axiológica de reação estatal em relação a condutas distintas.
(…)Diante de todo o exposto, percebe-se que a legislação vigente necessita de alteração, pois não se deve confundir a figura do usuário ou dependente com a do traficante de drogas ilícitas.”
A desproporcionalidade da reprimenda em face do dependente ou usuário de substância entorpecente na esfera de competência da Justiça Militar é patente, pois não se aplicavam na Justiça Especializada nesta as disposições da Lei 6368/76 e da Lei 10.409/2002 que tratavam da matéria. Tal situação (injusta) sensibilizou os nossos legisladores, atendendo, assim, ao reclamo da sociedade, bem como dos operadores jurídicos, editando a Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006[10] que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescrevendo medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelecendo, ainda, normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; definindo os respectivos crimes.
III – INOVAÇÕES NA ESFERA PENAL E PROCESSUAL PENAL MILITAR.
O que nos interessa, de imediato, no tocante à legislação penal e processual penal militar, é o artigo 40, inciso III da novel legis. Este inciso determina a aplicação expressa das disposições penais e processuais da nova legislação na esfera da Justiça Militar, ad litteram:
“Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
I –(omissis);
II – (omissis);
III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;
Ora, se a nova legislação determina, expressamente, a aplicação de aumento de pena de um sexto a dois terços para os delitos praticados nas dependências ou imediações de unidades militares ou policiais é porque quis o legislador, expressa e enfaticamente, que as regras da mencionada norma também se aplicassem àquelas Instituições, por terem tratamento mais benéfico e estarem em consonância com os anseios sociais, em respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, valores estes consagrados no texto constitucional.
Dessa forma, vislumbramos apenas, no momento, dois posicionamento a serem firmado pela Justiça Militar. O primeiro, que não é o mais coerente com a sistemática processual, é a recusa a aplicabilidade da nova legislação na Justiça Militar, no entanto, esta atitude leva à incompetência absoluta desta Justiça em relação aos delitos relacionados com tráfico e uso de entorpecentes. Isto porque a lei em comento foi enfática ao afirmar a aplicabilidade, inclusive com aumento de pena, para os delitos praticados no seio das Instituições policiais e militares. Assim, recusando-se em aplicar a nova lei, ocorrendo a prática das condutas descritas na legislação de entorpecentes, em debate, deverão os autos ser remetidos às Justiças Comuns.
O segundo posicionamento, é pela aplicabilidade plena da novel legis de tóxico na seara militar, adaptando, contudo, o rito processual às disposições da Justiça Militar, como veremos adiante.
Atendendo aos princípios constitucionais da proporcionalidade, bem como a especial preocupação com o usuário e dependente de substâncias entorpecentes, em face da comprovação cientifica que o usuário e dependente de “drogas” sofre de enfermidade e necessita de tratamento médico especializado, segundo a Organização Mundial de Saúde, tratou a referida Lei, sub examine, em seu artigo 20 e seguintes, de políticas públicas de atenção e reinserção social do usuário e dependentes de drogas, in verbis:
“Art. 20. Constituem atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas.
Art. 21. Constituem atividades de reinserção social do usuário ou do dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas direcionadas para sua integração ou reintegração em redes sociais.
Art. 22. As atividades de atenção e as de reinserção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos familiares devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
I – respeito ao usuário e ao dependente de drogas, independentemente de quaisquer condições, observados os direitos fundamentais da pessoa humana, os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social;
II – a adoção de estratégias diferenciadas de atenção e reinserção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos familiares que considerem as suas peculiaridades socioculturais;
III – definição de projeto terapêutico individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução de riscos e de danos sociais e à saúde;
IV – atenção ao usuário ou dependente de drogas e aos respectivos familiares, sempre que possível, de forma multidisciplinar e por equipes multiprofissionais;
V – observância das orientações e normas emanadas do Conad;
VI – o alinhamento às diretrizes dos órgãos de controle social de políticas setoriais específicas”
Prescrições legais estas que hoje têm inteira e efetiva aplicabilidade na esfera militar no que diz respeito ao usuário e dependente de drogas, como forma de atender ao escopo das políticas públicas de atenção e reinserção social das pessoas submissas aos entorpecentes.
No tocante aos crimes e penas, estão disciplinados nos artigos 27 em diante da nova lei de tóxico[11]. O que nos interessa, nesta etapa, no aspecto penal e processual penal militar, é, agora, a possibilidade de tratamento específico dado aos usuários de drogas, seja na esfera civil ou militar, atendendo, assim, ao disposto no art. 5º. caput, primeira parte (todos são iguais perante a lei) da Constituição Federal . Assim dispõe a legislação de regência:
“Art. 27. As penas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério Público e o defensor.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.”
Isto porque o usuário ou dependente de substância entorpecente na esfera militar era tratado unicamente como infrator na norma penal militar, quando, na verdade, por muitas vezes, necessitava de tratamento médico e não de sanção penal. Até mesmo porque pela falência de nosso sistema prisional, de nada adiantaria a medida imposta para os efeitos de recuperação e reiserção social do viciado. Por outro lado, o dependente de drogas “civil” fazia jus ao tratamento médico como alternativa adequada para a solução do quando clínico apresentado. Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS[12] , repita-se, a dependência toxicológica é considerada enfermidade que necessita de tratamento médico.
Questão interessante trazida explicitamente pela norma em comento é o dever do Estado em prestar assistência médico-hospitalar, especialmente voltada para o usuário e dependente. Entendemos, que a assistência referida abrange o tratamento psicológico ou psiquiátrico, conforme o caso. Na esfera militar, tal assistência deverá ser prestada pelas respectivas unidades de saúde das Instituições Militares, nos termo do art. 28, parágrafo 7º. da lei de regência[13], in verbis:
“§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”.(g.n)
No tocante à sanção penal, especificamente neste caso, à multa, o nosso legislador teve especial preocupação em atender ao comando constitucional da individualização da pena, levando em consideração a capacidade econômica do agente na fixação da quantidade da reprimenda imposta, além de outros fatores, como a reprovabilidade da conduta.
Com isso, permite-se ao Magistrado a possibilidade de adequar, ajustar, particularizar a pena (justa) no feito sob julgamento, evitando, assim, como tem ocorrido em alguns casos, a condenação a uma pena de multa impossível de ser cumprida, em virtude da incapacidade financeira absoluta de adimplemento pelo condenado e, por outro lado, afastou a sanção irrisória em face do poder econômico do agente. Vejamos:
“Art. 29. Na imposição da medida educativa a que se refere o inciso II do § 6o do art. 28, o juiz, atendendo à reprovabilidade da conduta, fixará o número de dias-multa, em quantidade nunca inferior a 40 (quarenta) nem superior a 100 (cem), atribuindo depois a cada um, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo.(g.n)
Parágrafo único. Os valores decorrentes da imposição da multa a que se refere o § 6o do art. 28 serão creditados à conta do Fundo Nacional Antidrogas.”
No que se refere à produção e tráfico ilícito, tornou-se mais severa a multa penal cominada, no entanto, manteve-se fiel à individualização da pena, assegurando a proporcionalidade da reprimenda em face da possibilidade econômica do réu, nos termos do artigo 43 ad literram:
“Art. 43. Na fixação da multa a que se referem os arts. 33 a 39 desta Lei, o juiz, atendendo ao que dispõe o art. 42 desta Lei, determinará o número de dias-multa, atribuindo a cada um, segundo as condições econômicas dos acusados, valor não inferior a um trinta avos nem superior a 5 (cinco) vezes o maior salário-mínimo.
Parágrafo único. As multas, que em caso de concurso de crimes serão impostas sempre cumulativamente, podem ser aumentadas até o décuplo se, em virtude da situação econômica do acusado, considerá-las o juiz ineficazes, ainda que aplicadas no máximo”.(g.n)
A pena a ser aplicada nos casos de produção, tráfico ilícito de drogas, associação para o tráfico e o seu financiamento tornou-se muita mais severa na nova legislação de entorpecentes. Implementou-se um significativo aumento da pena mínima, consoante pode-se verificar nos artigos 33 e seguintes da Lei 11.343/2006, sub examine, e, agora, em virtude de sua aplicação também na Justiça Militar, afastou-se por completo a possibilidade de suspensão condicional da pena prevista no art. 84 do CPM,[14] para estes casos.
Por outro lado, permite-se ao réu que tenha colaborado voluntariamente na fase de investigação preliminar ou na instrução processual na identificação dos demais co-autores ou partícipes e na recuperação total ou parcial do produto do crime, em caso de condenação, a redução de pena de um terço a dois terços, nos termos do art. 41 da Lei 11.343/2006, aplicando-se tal preceito, também, na Justiça Militar, por ser regra mais benéfica.
Entendemos, ainda, que as normas que disciplinam a investigação policial, introduzidas pela nova lei em exame, nos termos do art. 50 e seguintes[15], dando novos instrumentos de investigação na fase preliminar da persecução penal, podem ser adotados nos Inquéritos Policiais Militares que apuram o uso, o tráfico e produção de substância entorpecentes.
Vale registrar que a nova lei de tóxico, em comento, no seu artigo. 44 preceitua que os crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1o, 34 a 37 são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Por fim, outra interessante questão diz respeito ao rito procedimental a ser seguido nos caso de tóxicos na esfera penal militar, uma vez que a revogação do dispositivo previsto no artigo 290 do CPM, com a aplicação da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006, nos termos da determinação expressa contida no artigo 40, inciso III da referida norma, para os delitos praticados nas dependências ou imediações de unidades militares ou policiais, o rito a ser adotado é, também, o previsto na novel legis.
Destarte, a regra processual aplicada não mais será o procedimento ordinário previsto no artigo 384 e seguintes do CPPM e sim os preceitos processuais estabelecidos na nova legislação que adota tratamento distinto para os casos que fazem jus à medida de prevenção do uso indevido e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como estabelece normas processuais diferenciadas para os casos de repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e outras condutas assemelhadas, ora em comento.
Para os casos de usuários e dependentes, no âmbito da Justiça Militar, como não se aplicam as regras do Juizados Especiais na Justiça Militar, nos termos do art.90-A da Lei 9.099/95[16], em que pese a discussão acerca da constitucionalidade desta disposição legal, não se empregará, portanto, as regras da nova legislação que remetem o procedimento aos Juizados Especiais, em especificamente as normas previstas no artigo 48, parágrafos 1º, 2º. e 5º.da Lei 11.343/2006[17].
Entendemos que o rito a ser seguido pela Justiça militar, nos casos de usuários e dependentes, como forma de compatibilizar as novas regras introduzidas no sistema penal e processual militar e a impossibilidade de aplicação dos preceitos do Juizado no âmbito da Justiça Militar, será o procedimento estabelecido no artigo 54 e seguinte da Lei 11.343/2006, tal seja:
“Art. 54. Recebidos em juízo os autos do inquérito policial, de Comissão Parlamentar de Inquérito ou peças de informação, dar-se-á vista ao Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma das seguintes providências:
I – requerer o arquivamento;
II – requisitar as diligências que entender necessárias;
III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes.
Destacamos que no processo penal militar, mesmo para caso de usuários ou dependentes de drogas, haverá a necessidade de apresentação da defesa preliminar antes do recebimento da denúncia, nos expressos termos do art.55 da novel legi,s ad literram:
“Art. 55. Oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para oferecer defesa prévia, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.(g.n)
§ 1o Na resposta, consistente em defesa preliminar e exceções, o acusado poderá argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e, até o número de 5 (cinco), arrolar testemunhas.
§ 2o As exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.
§ 3o Se a resposta não for apresentada no prazo, o juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação.
§ 4o Apresentada a defesa, o juiz decidirá em 5 (cinco) dias.
§ 5o Se entender imprescindível, o juiz, no prazo máximo de 10 (dez) dias, determinará a apresentação do preso, realização de diligências, exames e perícias.”
Em sendo recebida a denúncia, o feito prosseguirá na forma disciplinada nos artigos abaixo transcritos até sentença.
Art. 56. Recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, ordenará a citação pessoal do acusado, a intimação do Ministério Público, do assistente, se for o caso, e requisitará os laudos periciais.
§ 1o Tratando-se de condutas tipificadas como infração do disposto nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei, o juiz, ao receber a denúncia, poderá decretar o afastamento cautelar do denunciado de suas atividades, se for funcionário público, comunicando ao órgão respectivo.
§ 2o A audiência a que se refere o caput deste artigo será realizada dentro dos 30 (trinta) dias seguintes ao recebimento da denúncia, salvo se determinada a realização de avaliação para atestar dependência de drogas, quando se realizará em 90 (noventa) dias.
Art. 57. Na audiência de instrução e julgamento, após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, para sustentação oral, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz.
Parágrafo único. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.
Art. 58. Encerrados os debates, proferirá o juiz sentença de imediato, ou o fará em 10 (dez) dias, ordenando que os autos para isso lhe sejam conclusos.
§ 1o Ao proferir sentença, o juiz, não tendo havido controvérsia, no curso do processo, sobre a natureza ou quantidade da substância ou do produto, ou sobre a regularidade do respectivo laudo, determinará que se proceda na forma do art. 32, § 1o, desta Lei, preservando-se, para eventual contraprova, a fração que fixar.
§ 2o Igual procedimento poderá adotar o juiz, em decisão motivada e, ouvido o Ministério Público, quando a quantidade ou valor da substância ou do produto o indicar, precedendo a medida a elaboração e juntada aos autos do laudo toxicológico.
Por fim, reafirmando a aplicabilidade da norma em debate na seara militar, o art.62, em seu parágrafo 4o autoriza, após a instauração da competente ação penal, a utilização dos bens apreendidos, nos processo que evolvem substâncias entorpecentes, sob custódia da autoridade de polícia judiciária ou de órgãos de inteligência ou militares.
III – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo exposto, à lume da nova legislação de tóxico, Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006, que tratou da dependência, uso, tráfico e produção de substâncias entorpecentes, por completo, inclusive disciplinou as regras processuais a serem aplicadas, revogando expressamente as Leis 6368/68 e 10.409/2002 que cuidavam da matéria, bem como, atendendo a um reclamo social e dos operadores jurídicos, restou por revogar também o artigo 290 do Código Penal Militar– CPM, nos termos do artigo 40, inciso III, consoante demonstrado, aplicando-se as regras materiais e procedimentais da nova legislação na esfera militar.
Destarte, temos agora na esfera da Justiça Militar novos delineamentos penais e processuais para o tratamento das questões que envolvam o uso, a dependência, a produção e o tráfico de substâncias entorpecentes. Instrumentos não só de tratamento específico para viciados, através da política pública implementada, como também novos instrumentos de investigação preliminar e de instrução processual.
A alteração das normas penais e processuais no seio da Justiça Militar veio ao encontro da aspiração social e jurídica, pois a pena infligida, até então, ao usuário ou dependente de substância entorpecente era a mesma imposta ao traficante, produtor e outras formas assemelhas, dessa forma não atendia aos anseios de justiça almejados pela sociedade. Além disso, tal prática atentava contra o princípio da proporcionalidade, da igualdade de tratamento, da individualização da pena (pena justa) e também da dignidade da ser humano, estabelecidos na nossa Carta fundamental.
Artigo publicado no Boletim IBCCRIM nº 104 – julho 2001, p.09.).
Informações Sobre o Autor
Esdras dos Santos Carvalho
Defensor Público Federal de Categoria Especial, Titular do 30o. Ofício Superior – Tribunais Superiores – Especializado Criminal;
Professor de Prática Processual Penal, Direito Processual Penal Militar e Professor de Direito Processual Penal do UNICEUB – Brasília /DF
Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNIFACS