Em torno da constituição do direito de resistência

Introdução([1])

O problema do direito de resistência ainda é pouco estudado na literatura especializada no Brasil, tema esse que foi por mim analisado em de tese de doutorado em direito([2]). Esse artigo sintetiza essa discussão ao organizar os conceitos, as espécies e os métodos de ação política e jurídica desse fenômeno dentro do sistema constitucional brasileiro. A construção teórica tem o escopo de traçar um sistema racional de interpretação, dentro de uma unidade constitucional que de guarida a todo o estatuto do direito de resistência. Para alcançar essa finalidade essa matéria ainda reclama a sua inclusão constitucional expressa no art. 5o, da CF, por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

Ao estruturá-lo como elemento do direito constitucional, não se pode perder de vista a sua natureza “atípica” e suas características estruturais ali contidas. O direito de resistência é uma realidade constitucional em que são qualificados gestos que indicam enfrentamento, por ação ou omissão, do ato injusto das normas jurídicas, do governante, do regime político e também de terceiros, fundado em razões jurídicas, políticas ou morais. Os temas referentes do direito de resistência dizem respeito ao funcionamento do sistema de poder, às estruturas de governo, aos agentes políticos, às práticas sociais e às instituições jurídicas. Dessa forma, os problemas constitucionais deixam de ser apenas problemas jurídicos para se perfilarem como problemas de poder. A afirmação de que a resistência é apenas uma questão política, além de ser um discurso vazio, demonstra a fragilidade reducionista do argumento. Com efeito, privilegiar, em termos exclusivos, os fatos políticos obscurece irremediavelmente a importância que deve ser conferida à realidade constitucional e, da mesma forma, a resistência “apenas política” se perde em pura retórica. Há uma crescente capitulação do normativo perante o empírico, por força da elevação das leis sociais e, principalmente, econômicas a instrumentos exclusivos da modelação do mundo([3]). No seu conjunto, o fenômeno da resistência forma um universo teórico pertencente tanto ao domínio da política quanto ao do jurídico, sendo uma relação necessária entre ambos os domínios. Ora, se de um lado há uma certeza acerca dos princípios que abarcam a problemática da resistência, de outro surgem dúvidas quanto aos procedimentos de acesso a esse direito, e também sobre o seu conteúdo e limites.

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Nesse sentido, o direito de resistência somente é susceptível de ser compreendido juridicamente, com apelo à ordem constitucional, por força das regras e princípios que informam toda a regulação jurídica do Estado. O problema do direito de resistência enquadra-se, pois, nesse contexto geral da ordem constitucional que opera com um sistema de princípios extensivamente a todo o sistema jurídico. O direito de resistência, enquanto não positivado, busca sua justificação em outros princípios já dispostos constitucionalmente ou, então,  pode-se interpretar que também não se encontra expressamente afastado do ordenamento constitucional (cláusula de proibição). O direito de resistência, como uma “categoria implícita” constitucional,  corresponde, na ordem constitucional, a uma consagração formal de princípios que permite avaliar a extensão desse direito.

1.O direito de resistência na Constituição

O direito de resistência se relaciona com o direito constitucional, já que é ele que dispõe sobre os limites do poder político e os direitos e garantias fundamentais do cidadão. O problema constitucional do direito de resistência está na garantia da autodefesa da sociedade, na garantia dos direitos fundamentais e no controle dos atos públicos, bem como na manutenção do pacto constitucional por parte do governante. Os elementos fundamentais que indicam a presença do direito de resistência no Direito Constitucional se referem necessariamente aos valores da dignidade humana e ao regime democrático. Os valores constitucionais compõem um contexto axiológico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, para orientar a hermenêutica constitucional e o critério de medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade([4]).

O problema do direito de resistência, no sistema constitucional brasileiro, está colocado em dois aspectos: um, suscitado pela referência explícita, e outro, pela implícita. De um lado, o reconhecimento do direito de resistência operou-se pela via explícita em apenas algumas espécies: objeção de consciência (art. 5°, VIII c/c art. 143, § 1°, CF); greve “política” (art. 9°, CF); princípio da autodeterminação dos povos (art. 4°, III, CF).  De outro lado, a construção constitucional elucida, de forma implícita, a materialidade da resistência. A materialidade se combina com os elementos constitucionais formais, como: os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, erguidos como fundamentos do Estado Democrático (art. 1°, III, V, CF); a abertura  e a integração para dentro do ordenamento constitucional de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (art. 5º, § 2º, CF).

A resistência parte do princípio de que está sujeito a uma teoria constitucional, que têm como questões de fundo a legitimidade constitucional do poder político – quanto ao título ou ao exercício. Desta forma, faz-se um questionamento sobre a “qualidade” do ordenamento jurídico, se é ou não justo. As várias posições políticas da resistência operam na busca de fontes formais ou informais que legitimem o seu exercício no Estado de Direito. A resistência procura sua legitimidade moral na dignidade humana, solidificada como princípio jurídico. A lógica da justificação da resistência transcende a evocação dos princípios éticos, pois tem de ser juridicamente fundamentada, seja no jusnaturalismo ou no positivismo jurídico.

A Constituição pode preconizar uma resposta ao problema do direito de resistência na medida em que reconheça esse acionamento automático quando se frustrarem os controles internos do Estado. Esse reconhecimento político do Estado em admitir mais um mecanismo de autodefesa da sociedade demonstra o grau de legitimidade do próprio sistema jurídico e também suas limitações epistemológicas. Uma vez aceito o direito de resistência no modelo constitucional, tem-se um efeito duplo: controla-se a sua potência nos marcos constitucionais  e os governantes sabem dos seus limites. Toda vez que a autoridade pública desleixar de sua função ou a liberdade e a dignidade humana forem espezinhadas, cabe o direito da resistência, assim considerado como implícito nas instituições jurídicas. Dessa forma, o direito de resistência se converte num aglutinador das “demandas de fato”, que se baseiam tão-só na existência de conflitos sociais e políticos para oportunas “soluções constitucionais” destinadas a manter a unidade do Estado e evitar sua completa ruptura político-jurídica.

Ao problema constitucional da resistência projeta para o Direito Constitucional a necessidade de abrir os fatos sociais determinantes do processo político, sendo assim o direito de resistência assume especial relevância como um instrumento privilegiado na interlocução com a realidade social. Contudo, se por um lado as regras jurídicas não esgotam os fatos sociais, por outro “há regras que, não sendo estruturalmente regras jurídicas, são contudo relevantes no campo do Direito político”([5]).

Há situações jurídicas em que o direito opera em determinadas situações como princípio fundamental, podendo, segundo Canotilho, ser o direito de resistência e a legítima defesa([6]). Juntam-se, nessa equação teórica, os princípios jurídicos constitucionais com as regras assentes na ordem constitucional, que determinam as outras normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais. O substrato material está em si, mas que depende da aderência de outros princípios constitucionais. A Constituição em sentido material significa aquele núcleo essencial de fins e forças que rege o ordenamento positivo, que imprime o caráter de juridicidade a todo o sistema de atos sucessivos que se desenvolve([7]).

A licitude do direito de resistência se manifesta dentro do aparelho de Estado, na preservação dos valores constitucionais inscritos na ordem democrática, como no enfrentamento das ações criminosas tipificadas nos crimes de responsabilidade (art. 85, CF; Lei 1.079/50), como no desrespeito aos poderes estatais entre si, na improbidade administrativa e na ofensa aos direitos fundamentais, e também tipificados como crimes constitucionais (art. 5°, XLIV), na ação de grupos armados contra a ordem democrática.

1.1. RESISTÊNCIA EXPLÍCITA

O texto constitucional brasileiro assegura material e formalmente a resistência. A resistência constitucional se apresenta sob o aspecto formal (direitos políticos e civis consignados na Constituição) e sob o aspecto material (os direitos materialmente constitucionais, como os princípios implícitos). A resistência constitucional apresenta-se em duas condições: uma, reconhecendo a resistência como fato empírico, o que desse modo protege os fatos sociais, como os movimentos sociais organizados que praticam a desobediência civil, que está inclusa no art. 5°, § 2°, CF; a outra, submetendo-o à efetividade normativa das espécies constitucionais, como a objeção de consciência (art. 5°, VIII c/c art. 143, § 1°, CF), a greve “política” (art. 9°, CF) e o princípio da autodeterminação dos povos (art. 4°, III, CF) como fator integrador da ordem político-jurídica. Essas espécies de resistência que se expressam positivamente não inibem outras possibilidades de resistências, no que diz respeito à matéria de ordem constitucional.

A Constituição expressamente reconhece a existência de “outros” direitos e garantias além dos nela elencados, verbis, art. 5°, § 2°. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Nesse sentido, há uma abertura constitucional para o direito de resistência em que estariam inclusos também outros direitos, na forma do art. 5º, § 2º, CF.  Mas esse preceito informa a fonte material de outros direitos, além do direito de resistência, que o cidadão pode invocar por razões decorrentes do regime político democrático e dos princípios constitucionais. Caso haja violação do Estado Democrático de Direito ou ofensa aos direitos fundamentais, surge em tela a resistência, como argumento jurídico e político, na tentativa imperiosa do retorno à ordem democrática. O direito de resistência, portanto, pressupõe mais do que a simples admissão formal no texto constitucional, mas uma “relação justa” entre o comando normativo e [DFP1] as práticas constitucionais.

A construção constitucional visa revelar a essência das normas constitucionais, operando assim com a problemática das regras e princípios. Os princípios constitucionais são os princípios que edificam o Estado de direito, que, no caso brasileiro, alcança a condição de “Estado democrático de direito”; isso quer dizer que, quando se aplicam, tais princípios visam ao ideal de justiça material. Esses princípios decorrem da razão do Estado democrático para realizar, segundo o direito, o seu ideal de justiça material([8]).

Quanto aos princípios, o sistema constitucional admite, além dos explícitos, os implícitos. Os explícitos se encontram em todo o texto, mas principalmente na abertura da Constituição, e são, por sua vez, denominados “fundamentos” (art. 1°, CF), “objetivos” (art. 3°, CF) e “princípios” (art. 4°, CF). Os princípios implícitos, por seu turno, se encontram de forma difusa no texto constitucional, no qual podemos listar os seguintes princípios: a) da liberdade geral em que tudo é livre, exceto no que for proibido, decorrente do princípio da legalidade (art. 5, II, CF); b) da finalidade do Estado em realizar a justiça e o bem-estar social; c) da qualidade vida física e mental; d) da legitimidade do título e do exercício do governante.

A própria Constituição, em cláusula aberta (art. 5°, § 2°, CF), manda incorporar “outros” direitos e garantias ao rol dos direitos fundamentais, isto é, não “excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Esse comando consagra, além da tutela de direitos e garantias fundamentais, a previsibilidade de fundamentação de outros direitos decorrentes do regime político ou dos tratados Internacionais. Quanto ao enunciado, não se excluem “outros” direitos. Isso quer dizer que o sistema jurídico integraliza “novos” direitos em três perspectivas: uma, quanto ao regime político; a segunda, por decorrência dos princípios constitucionais; e a terceira oriunda dos tratados internacionais. A Constituição procura assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais por razões políticas, principalmente decorrentes de princípios e do regime democrático.

O sistema constitucional aberto admite os direitos fundamentais implícitos, tanto que o preceito revela a intenção do constituinte de não tornar numerus clausus a enumeração dos direitos e garantias fundamentais, admitindo direitos implícitos, dando-lhe interpretação extensiva quanto à tutela das liberdades públicas. A simples interpretação do art. 5°, § 2° indica que o catálogo de direitos não é exaustivo, que a Constituição apenas enumera alguns direitos fundamentais, mas não todos. Não podemos interpretar a Constituição no sentido estrito e eliminar outros direitos ali não previstos.

A Constituição, ao reconhecer o direito de resistência, age dentro de uma unidade de valor de defesa do sistema de direitos fundamentais e também da concordância estrutural do direito de resistência com a ordem constitucional, que se assenta na defesa do regime democrático e dos direitos fundamentais. Então, a unidade de valor constitucional está nos direitos e garantias fundamentais e no regime democrático.

O sistema aberto se relaciona com valores constitucionais, como o pluralismo jurídico, que recepciona princípios políticos e jurídicos da igualdade e da fraternidade, o pluralismo de idéias, a liberdade de expressão, a liberdade de reunião e a liberdade de associação.

1.2. Resistência implícita 

A resistência implícita decorre dos direitos e princípios constitucionais explícitos e implícitos, enquanto a resistência explícita se demonstra pelas modalidades constitucionais (greve política e objeção de consciência).

A essência da resistência implícita está na materialidade dos princípios do regime democrático e se combina com os elementos constitucionais formais, como os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, erguidos como fundamentos do Estado Democrático (art. 1°, III, V, CF) e com a abertura  e a integração do ordenamento constitucional de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e tratados (art. 5º, § 2º, CF); e, por fim, pela constitucionalização das espécies de direito de resistência (greve e a objeção de consciência).

Os direitos implícitos incorporam a verdadeira contrapartida dos direitos e garantias explícitos e também dos poderes explícitos do Estado. Ainda que esses direitos “implícitos” não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, a Constituição lhes confere um valor integrador do sistema jurídico constitucional que complementa o rol de direitos fundamentais. Os direitos implícitos são identificáveis a partir dos princípios explícitos, antes de se tratar de uma restrição, já que a Constituição não nega a existência de direitos implícitos, desde que sejam harmonizados por ela própria. Toda e qualquer restrição há de ser prevista de forma explícita ou por decorrência direta dos princípios e regras adotados pela Constituição. Da mesma forma, a Constituição não prevê de modo algum, em seu texto, restrição ao direito de resistência nos termos aqui trabalhados; nesse sentido, há que se fazer uso da clássica parêmia: “onde a lei não restringe não pode o intérprete fazê-lo”. A resistência implícita se sustenta pelo regime político democrático, mas, fundamentalmente, pela exegese do art. 5º, § 2º, que traz à colação os direitos fundamentais, entre eles os individuais, que, segundo José Afonso da Silva, combinam três grupos: “1) direitos individuais expressos, aqueles explicitamente enunciados no art. 5°, § 2°, CF;  2) direitos individuais implícitos, aqueles que estão subentendidos nas regras de garantias, como o direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida, o direito à atuação geral (art. 5°, II); 3) direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais  subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente adotados, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a priori([9]). Nessa perspectiva o direito de resistência é apenas individual, e salvo melhor juízo não se pode admitir a resistência apenas nessa perspectiva, principalmente se for decorrente do regime político, quando há uma extraordinária desproporção entre a ação e o resultado. Num cálculo apropriado, a resistência nesse caso só terá êxito se for coletiva, como a greve política,  a desobediência civil e o direito de revolução.

2. Classificação do direito de resistência

Há variadas concepções quanto à classificação do direito de resistência. A classificação que construímos está de acordo com sua unidade temática ou tem semelhança de conteúdo com a resistência, dentro dessa nova sistemática conceitual. A matriz classificatória está assentada na descrição empírica do fenômeno da resistência, obedecendo a uma ordem de graus da intensidade política em que se observa a repercussão na sociedade e no Estado e os meios usados no exercício do respectivo direito. Essa construção classificatória se inicia com a espécie de resistência de menor intensidade, informando sua respectiva particularidade, isto é: 1) objeção de consciência; 2) greve política; 3) desobediência civil; 4) direito à revolução; 5)  princípio da autodeterminação dos povos. Essa classificação não é exaustiva, pois muitas vezes os elementos de análise habitam uma área de difícil identificação entre gênero e espécie.

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A objeção de consciência, enquanto espécie do direito de resistência, é a recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas, numa pretensão de direito individual em dispensar-se da obrigação jurídica imposta pelo Estado a todos, indistintamente. A objeção de consciência se caracterizada por um teor de consciência razoável, de pouca publicidade  e de nenhuma agitação, objetivando, no máximo, um tratamento alternativo ou mudanças da lei. Assente como direito fundamental na constituição de 1988, o instituto jurídico da objeção de consciência se dá em duas perspectivas: uma, como escusa genérica de consciência (art. 5°, VIII, CF) e, outra,  enquanto escusa restritiva ao serviço militar (art. 143, § 1°, CF). Pelo sistema constitucional, o preceito especial combina com o preceito genérico, no caso, a objeção de consciência ao serviço militar.

A greve é sempre uma ação coletiva, que exige um grau de organização e de ação política e jurídica. A Constituição (art. 9°, CF) autoriza os trabalhadores a decretarem greves trabalhistas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves políticas, com o fim de conseguir mudanças junto à esfera do poder político. Na ótica da autodefesa, que é conferida pela ordem jurídica, os trabalhadores, mediante ação direta, respondem a favor de seus interesses, salariais ou não, e, pela greve, forçam a modificação do contrato de trabalho([10]).

A desobediência civil deve ser entendida como um mecanismo indireto de participação da sociedade, já que tem um conteúdo simbólico que geralmente se orienta para a deslegitimação da autoridade pública ou de uma lei, como a perturbação do funcionamento de uma instituição, a fim de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão. A desobediência civil apresenta-se como: a) é uma forma particularizada de resistência e qualifica-se na ação pública, simbólica e ético-normativa; b) manifesta-se de forma coletiva e pela ação “não-violenta”; c) quer demonstrar a injustiça da lei ou do ato governamental mediante ações de grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado; d) visa à reforma jurídica e política do Estado, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema político ou uma proposta para o aperfeiçoamento jurídico. Propõe apenas a negação de uma parte da ordem jurídica, ao  pedir a reforma ou a revogação de um ato oficial mediante ações de mobilização pública dos grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado.

A desobediência civil na perspectiva constitucional brasileira decorre da cláusula constitucional aberta, que admite outros direitos e garantias, e dos princípios do regime adotado (art. 5°, § 2°, CF) e liga-se especialmente aos princípios da proporcionalidade e da solidariedade, que permitem protestos contra atos que violem esses princípios da ordem política.

O princípio político da autodeterminação dos povos assegura às nações a livre organização política e a soberania. A autodeterminação se apresenta em duas ordens: nacional e internacional. Na de ordem nacional, o povo luta por exercer o direito de escolha e a forma de governo. Essa perspectiva abraça a liberdade dos povos em formar um novo Estado, mediante a luta pela soberania, por não mais querer estar submetido à soberania de outro Estado contra sua vontade. Essa lógica interna consiste no direito de cada povo escolher o governo de sua preferência. A Constituição brasileira descreve a autodeterminação dos povos como princípio político de direito internacional (art. 4º, III, CF).

O povo tem o direito à revolução para esmagar as tiranias que espezinham  suas liberdades, nem que ela seja exercida com extrema violência. Negar-lhe esse direito seria desconhecer o direito à dignidade humana e o direito do povo defender pela força seus direitos fundamentais agredidos, pois se encontra na condição-limite de sobrevivência política.

A idéia da revolução de origem liberal torna-se com o tempo uma bandeira socialista, e até hoje pujante. Na teoria da revolução comunista de Marx e Engels indicam que a superação do estado de natureza hobbesiano torna-se a necessidade de não instituir o Estado (sociedade política), mas sim destruí-lo. A doutrina marxista preconiza que a sociedade pode sofrer transformações pela ação política e, para isso, conclama os proletários do mundo a se unirem num ataque ao Estado capitalista.

3. Em torno da Emenda Constitucional do direito de resistência

Das diversas regras e princípios constitucionais nos chama a atenção a correspondente instrumentalização do direito de resistência por meio de proposta de emenda constitucional (PEC) para sinalizar todo o edifício dos direitos- garantias, como o direito de petição, habeas corpus,  mandado de segurança, ações de inconstitucionalidade, mandado de injunção e ação popular. As garantias formais dos direitos, como direito de ação e prestação judicial são instrumentos fundamentais para a efetivação dos direitos e nos termos constitucionais, imediatamente aplicáveis (art. 5°, § 1°, CF).

A transformação expressa na constituição do direito de resistência visa sanar e corrigir inconstitucionalidades ou ilegalidades e abusos de poder, por meio das garantias processuais. Essas ações que instrumentalizam o direito de resistência tem uma fundamentação jurídica evidente, para que se criem, modifiquem ou extingam os atos jurídicos ou políticos, medidas governamentais e atitudes de determinados indivíduos em conformidade com o Estado de Direito.

Desta forma, defendemos a inclusão do direito de resistência por meio de emenda constitucional para decidir os conflitos dentro do sistema jurídico (judicialização do político), com a seguinte redação: “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem ou omissão que ofenda  os direitos, liberdades e garantias e de repelir qualquer agressão, inclusive quando proveniente de autoridade pública”. Essa proposta de emenda constitucional (PEC) visa melhorar o desenvolvimento da solução dos conflitos políticos, próprios da democracia constitucional, principalmente, por:

a) – tornar um recurso educativo de cidadania que faça lembrar de forma permanente ao governante esse fatídico direito, quando o Estado se colocar contra a sociedade. Caso haja golpe de Estado, escaramuças militares, tiranias, leis e atos injustos ou se pretender a ruptura da ordem constitucional, esse dispositivo constitucional dará a cada cidadão e a toda sociedade o direito, senão o dever, de opor sua resistência a essas tentativas de usurpação da soberania popular;

b) dar mais solidez, extensão ou efetividade não apenas à solução demandada pelas forças sociais e políticas, mas também maior rigidez formal e jurídica. Com isso se evita que previsões políticas deponham contra a existência da resistência na realidade constitucional.

c) clarear a diferença entre um ato político de resistência e um ato penal de resistência, como também entre resistência legítima e resistência ilegítima. Facilita-se, assim, a administração da justiça quando se atribui a identificação sobre um tipo de ação e lícita e do crime comum que integram os distintos institutos jurídicos.

d) consubstancia uma nova forma de protesto e impede a explosão da violência, dentro de uma “desordem controlada e criativa” e funciona para a engenharia política como um establishment nos Estados contemporâneos;

e) torna-se mais um “remédio-garantia” contra a “enfermidade” da injustiça e a favor do aperfeiçoamento do Estado democrático de direito. A resistência institucional vai demonstrar a vitalidade do Estado democrático, que a coloca à disposição da sociedade como mais um mecanismo de defesa social.

Considerações finais

A Constituição brasileira projeta a combinação da democracia representativa com a democracia participativa. A Constituição deve ser lida à luz de seu locus político, eis que o sistema jurídico deve dialogar com sua realidade social, já dotado de certa abertura axiológica que permite novas fundamentações de justiça material (art. 5°, 2°, CF). Ao flexibilizar o sistema constitucional com o intuito de administrar a pressão demandada, sem comprometer a estrutura constitucional, o que se perde por essas circunstâncias político-administrativas se ganha, de forma ampla, na democracia e no pluralismo jurídico.

A Constituição, cujo procedimento têm por objetivo assegurar o exercício do poder social e político, deve fazer certas previsões sobre o dissenso, ao prescrever as possíveis violações ao sistema jurídico, pois para arbitrar o dissenso o político necessita ser juridicizado. Dessa forma, é preciso que o direito de resistência não esteja apenas no mundo dos fatos ou da dependência da hermenêutica jurídica, mas previsto e garantido na Constituição, além de construir uma unidade teórica do fenômeno da resistência, independentemente das espécies e da extensão que tomarem assento constitucional.

A Proposta de Emenda Constitucional do direito de resistência reforça três perspectivas (afirmativa, limitativa e negativa) por força da combinação de suas modalidades e respectivas variáveis:

a) resistência afirmativa – resulta da díade contestação/mudança, que consiste no exercício que contrasta com o status quo com o desejo transformações de perspectivas políticas, ou afirmação e ampliação de direitos. Demanda questões localizadas em dois registros principais: a) a resistência não é exercida apenas para a tomada do poder de Estado, mas em razão do direito de participar das decisões políticas, rompendo a verticalidade hierárquica do poder de Estado; b) a resistência não se concentra apenas na defesa de certos direitos, mas na luta para ampliar o próprio direito de cidadania;

b) resistência limitativa – resulta do exercício que visa à conservação política e social, mediante expediente de controle do Estado, com vistas a evitar irregularidades políticas e administrativas ou o desrespeito da liberdade dos indivíduos. Nesse caso, a resistência resulta do contraste entre a manutenção do status quo com aqueles que concordam com a mudança ilegítima do sistema político-jurídico. Se, de um lado, a resistência limitativa censura as violações da ordem democrática e da ordem constitucional, de outro fortalece a objeção de consciência como limite de ação do indivíduo contra o Estado;

c) resistência negativa – resulta da negação da ordem constitucional e da ordem democrática, isto é, do contraste da manutenção da ordem jurídica com aqueles que lutam contra essa ordem, com vista a evitar transformações sociais legítimas, ou, ao contrário, querem a transformação brusca, mediante a revolução. Essa perspectiva não contempla o aperfeiçoamento do Estado, quer sua omissão ou a simples destruição do sistema político-jurídico.

O direito de resistência, por fim somente se justifica no caso de descumprimento de algum direito primário, tanto que opera quase sempre de forma similar a direito de defesa, pois aquele que resiste a uma ordem injusta defende-se. É também um direito para se ter direito, isto é, um direito secundário que supõe que seu exercício está em favor do gozo de um direito primário, como a vida, a justiça, a dignidade humana, a propriedade.

 

Referências bibliográficas
BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional.  2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes.  Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1995.
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MAZZONI, Giuliano. Relações coletivas de trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972.
MORTATI, Constantino. La costituzione in senso materiale. Milão: Giuffré, 1940.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1889.
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitucion. 4.  ed. Madrid: Tecnos, 1988.
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994,
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
Notas:
[1] Texto publica na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, No. 168 (outubro-dezembro de 2005, pg. 19-27.
[2] Vd. BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional.  2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.
[3] EHRHARDT SOARES. R. Direito público e sociedade técnica. Lisboa: Ed. Lisboa, 1969, pg. 30.
[4] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitucion. 4. ed. Madrid: Tecnos, 1988, pg. 288-289.
[5] LEITÃO, J. M. Silva. Constituição e direito de oposição. Coimbra: Almedina, 1987, pg. 13.
[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes.  Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1995, pg. 171.
[7] MORTATI, Constantino. La costituzione in senso materiale. Milão: Giuffré, 1940, pg. 87.
[8] ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994,  pg. 28.
[9] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pg. 174.
[10] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1889, pg. 293.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

José Carlos Buzanello

 

Diretor da Escola de Direito da UNIGRANRIO (Duque de Caxias/RJ) e Doutor em Direito (UFSC).

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