1. INTRODUÇÃO
Para delimitar o escopo deste trabalho devemos recorrer à definição de civilização desenvolvida pelo historiador inglês Arnold J. Toynbee, ao longo de suas principais obras.
Ao tratar de civilização, Toynbee a classifica como elemento primordial para se compreender a história. Para ele, o estudo da história deveria partir de um conceito inteligível. Neste sentido, ao propor o problema da civilização, não o considera enquanto não possa encontrar o que chama de unidade inteligível do estudo histórico.
Na sua visão, não é possível compreender a história de uma nação como, por exemplo, os Estados Unidos da América, a Itália ou a França, sem inseri-la numa realidade histórica mais abrangente, que a condiciona, e mesmo lhe dá causa. Faz-se, portanto, necessário, ter em mente o fato de que, falar de civilização de modo a particularizá-la num espaço geográfico ou histórico restrito constitui um equívoco, sendo necessário buscar o conceito de Civilização onde os elementos que a constituem se originam.
Recorrer ao conceito de civilização idealizado por Toynbee, no entanto, pode, a princípio, parecer exótico num trabalho que se destina à análise de um aspecto jurídico tão prático e neutro quanto organização judiciária. Contudo, tal conceito tem muito a ver com a concepção que representa a tônica deste estudo.
Em primeiro lugar, é necessário impor ao Direito um caráter de subordinação à História. Não havendo ciência cultural que possa prescindir de um liame substancial a esta, não deve ser diferente em relação à Ciência Jurídica; sendo-nos de bom alvitre a lembrança do que afirmava Tobias Barreto ao dizer que “o direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade”.
Deve-se perceber também que a análise da organização judiciária inglesa requer um estudo preliminar, ainda que inevitavelmente rápido, do Common Law, já que trata-se de um sistema que nos é estranho e que é essencialmente histórico.
Por fim, assim como o sábio professor de Oxford coloca o problema da unidade ininteligível do estudo histórico, acreditamos que tal concepção deve se estender ao Direito. Também na Ciência do Direito é possível perceber unidades ininteligíveis do estudo jurídico, como o é todo o estudo feito nas Faculdades de Direito do país, onde se atribui uma ênfase excessiva à Dogmática Jurídica, cegando os estudantes com o estudo único da legislação nacional.
A visão do Direito como aspecto essencialmente nacional é um dos vícios do período legislativo da família romanista, que nos acompanha como um cancro recalcitrante até os dias de hoje. O primeiro objetivo deste trabalho, compreendido lato sensu, é romper com esta idéia.
Não se pode, nem se deve, estudar o Direito parametrado pelas fronteiras dos costumes e sistemas nacionais, uma vez que se perceba seu caráter universal e imanente. Tal visão arcaica, encontra menos espaço quando consideramos a realidade do mundo globalizado, com suas variadas características e elementos. O Direito nacional vem, a cada dia, tornando-se uma unidade mais ininteligível do estudo jurídico, permitindo-nos traçar um paralelo entre a teoria de Toynbee e nossa realidade atual.
A aglutinação constitui um dos aspectos mais palpitantes da globalização. A noção de um mundo bem dividido e compartimentado, em todos os seus aspectos, vem caindo por terra. A própria idéia de cultura como algo isolado tem sido abalada pela inovadora noção de uma comunidade multi-cultural, inserida no contexto de aldeia global.
O impacto destas novas correntes no Direito é inevitável, e considerando seu caráter vanguardista, é fácil perceber quão difícil será adaptar-nos a um mundo que joga por terra valores tradicionais, inclusive os jurídicos.
Uma análise da Ciência Jurídica no plano histórico e em dimensões mais vastas que o Direito nacional, leva-nos a perceber sempre uma tradicional divisão dos sistemas jurídicos mundiais em famílias, cujos membros têm uma relação de categorias e conceitos que os caracteriza. Todavia, em face do que foi exposto nos dois parágrafos anteriores, tal conceito parece-nos ameaçado em virtude da interação cada vez maior entre os diferentes Estados, bem como devido ao desenvolvimento do próprio Direito Internacional Público, este por si só, um sinal dos tempos.
Tal concepção justifica, portanto, o estudo de sistemas jurídicos outros, trazendo contribuições para o nosso próprio pensamento crítico.
Nada expande mais as fronteiras que o contato com o novo ou com aquilo que nos parece exótico. Quando tal experiência se dá entre nações, como vem ocorrendo intensamente desde o século XVI, o resultado é imprevisível, muitas vezes traumático.
Convém expor as razões que orientaram a escolha da organização judiciária inglesa como objeto de nosso estudo.
Em primeiro lugar, há de se perceber que a Inglaterra é talvez, a sociedade politicamente organizada mais antiga do mundo. Sua organização político-institucional inicia-se logo depois da invasão normanda, e persiste até os nossos dias. Neste interstício erguem-se instituições as mais diversas e um sistema jurídico bem peculiar que chama a atenção pela praticidade e eficácia.
Em segundo lugar, dado o momento histórico pelo qual passa hodiernamente nosso Poder Judiciário, enfrentando dilemas tais como a ineficácia da Justiça, o número excessivo de processos que dificultam uma prestação jurisdicional célere, o difícil acesso à Justiça, a desconfiança da população em relação aos seus magistrados e aos seus tribunais, bem como a recorrente intromissão dos demais poderes no espaço que deve ser do Judiciário, pareceu-nos por bem analisar um sistema jurídico que, se não é a quintessência da justiça, agrega respeitabilidade e eficácia na prestação jurisdicional e no acesso à esta.
O estudo da organização judiciária inglesa pode, portanto servir-nos de um aprendizado útil na estruturação do nosso próprio Direito.
A análise histórica e comparativa do Direito ainda soa como novidade no meio discente; a História parece dissociada da Ciência Jurídica dada nossa concepção imperfeita do Direito, unicamente em sua dimensão prática, normativa ( que constitui no entanto apenas uma de suas facetas), o que nos conduz à um equívoco imperdoável. A conexão histórica que fazemos, talvez a única, é, de forma improfícua, com o Direito Romano, saltando então, mais de um milênio para a era das codificações. Já a falta de perspectiva comparativa dos sistemas jurídicos constitui um aleijão intelectual.
Compreender uma ciência cultural sem recorrer à História é uma atitude perigosa. O Direito na sua dimensão histórica tem muito a nos dizer sobre a própria estrutura do nosso pensamento jurídico hodierno. Tentar apreender a realidade jurídica abdicando do rico método comparativo, não contribui em nada para o crescimento como juristas.
O futuro do Direito postula uma expansão universal sem precedentes e o rompimento de barreiras nacionais e costumes locais, a exemplo da ação centralizadora do Common Law.
2. COMMON LAW- Um Breve Apanhado Histórico
Para uma introdução acerca do sistema jurídico desenvolvido na Inglaterra, e principalmente da sua organização judiciária , é imprescindível um estudo de sua história, uma vez que, além do caráter jurisprudencial e processualístico, o Common Law tem uma dimensão histórica que pode nos surpreender, já que não estamos afeitos a tal característica nos nossos estudos.
A peculiaridade que confere ao Common Law uma continuidade histórica contrasta com as fases da família romanista, marcadas por profundas rupturas. Não que não tenha havido qualquer ruptura no sistema em análise, ao contrário do que afirmam certos doutrinadores. As rupturas, neste caso, apresentam-se mais como períodos de transição, sendo justamente o que ocorre quando a equity aparece para redefinir a atividade do Common Law, ou mesmo quando o papel legiferante do parlamento age de modo a reformular a organização judiciária inglesa.
Convém deter-nos neste aspecto histórico do Direito Inglês, que é motivo de orgulho para os juristas e historiadores ingleses, e que capacita juizes, nos nossos dias, a evocarem precedentes que remontam ao período anglo-saxônico de seu Direito.
A fleuma britânica, não nos esqueçamos, sempre foi a tônica desta sociedade. Os ingleses chamaram de gloriosa a revolução que ali minou definitivamente o antigo regime e sedimentou as bases do capitalismo por que não foi derramada uma gota de sangue, ainda que olvidem o fato de que, enquanto a França banhou seu solo com o sangue de milhares, os britânicos resumiram tudo isso na decapitação de um rei.
O Direito Inglês divide-se em quatro períodos históricos bem característicos, quais sejam: o período anglo-saxônico, o período de criação e desenvolvimento do Common Law, o período de coexistência dualista entre equity e Common Law, e o período de ascensão do statute.
2.1. Da organização tribal à invasão normanda
A princípio, a história do Direito Inglês não difere substancialmente daquela que se processa no continente.
O intervalo que vai da evacuação das legiões romanas, em torno do quarto século da nossa era, até a Batalha de Hastings, quando William, o Conquistador, ascende ao poder, é marcado por uma luta quase constante de invasões, conquistas e reconquistas entre bretões, saxões, vikings, dinamarqueses, noruegueses, entre outros.
Um arremedo de centralização política é estabelecido com a ascensão de variadas dinastias, mas os elementos necessários para tal intento ainda são insatisfatórios, e o caos e a desorganização política se perpetuam até o momento da invasão normanda.
Com a queda do Império Romano ocorre, como era de se esperar, o declínio da idéia do Direito como alicerce social, em decorrência da própria descentralização política que sucede em todos os níveis; não havendo, portanto, organização social para ser tutelada por um ordenamento jurídico, o Direito, como paladino da ordem social perde a razão de ser. Tal fato é acentuado, principalmente, quando se percebe a parca influência exercida pelos romanos sobre as comunidades que já habitavam as ilhas britânicas; os ordenamentos bárbaros, por conseguinte, ocupam o ideário jurídico naquela região, a exemplo do que ocorre em todas as possessões romanas na Europa Ocidental.
Constitui fato natural que um ordenamento bárbaro apareça na Europa em substituição ao Direito Romano, e em sua maioria, tais ordenamentos guardam consigo estreita semelhanças, porém a partir do momento em que são redigidas as leis, iniciam-se as diferenças. As leis bárbaras redigidas na Inglaterra o são feitas em língua anglo-saxônica, enquanto no continente, tal redação era feita em latim.
O Direito na Inglaterra, vigente no período anterior à conquista normanda é conhecido pelo nome de Direito anglo-saxônico, nome que também é dado ao período em que vige.
Neste estágio, já é possível denotar a influência do Direito Canônico sobre o ordenamento das variadas tribos bárbaras, uma debilitada centralização em torno de um rei e de seu conselho, que desempenhavam funções legislativas, e, paralelamente uma descentralização em relação às funções executivas e judiciais, deixadas sob a responsabilidade dos hundredmen que eram a autoridade máxima, constituída pelo rei na unidade territorial denominada Centena (hundred).
Cada Centena tinha seu próprio tribunal que, via de regra, se reunia a cada quatro semanas. As questões litigiosas eram trazidas perante a corte que iria então citar o réu para comparecimento perante o tribunal. A declaração de inocência, suportada por juramentos de pessoas da comunidade, favoráveis ao réu, eram suficientes para inocentá-lo. Caso não fosse possível suportar a alegação de inocência com o juramento de outrem, o réu estava fadado a passar pelo Trial by Ordeal, os famosos Juízos de Deus, onde seria, então, submetido a certas e determinadas provações que atestariam sua culpa ou inocência, de acordo com o decorrer dos fatos.
Os casos que passavam pelos Tribunais de Centenas, podiam, extraordinariamente, subir a uma instância superior, mas isso só ocorreria quando um determinado Tribunal de Centena não alcançasse um julgamento, ou caso o julgamento de um conflitasse com a competência do outro, surgindo um eventual conflito de jurisdições no espaço.
As sentenças variavam entre a multa, a mutilação e a morte, e geralmente limitavam-se a primeira.
O Direito anglo-saxônico era marcado portanto por todos os elementos que aparecem no estágio chamado de proto-direito, em qualquer sociedade. Uma ordem jurídica carente do pensamento lógico-racional, influenciada pela superstição e religiosidade e também fragmentária, no que tange ao que os ingleses chamam de law enforcement, ou seja, o caráter coercitivo do Direito, sendo o processo, ao qual se submetiam as partes, essencialmente oral.
Quando ocorre a conquista normanda, William manifesta intenção de não promover mudanças substanciais no ordenamento jurídico anglo-saxônico, mesmo porque se considerava herdeiro legítimo do trono e não mero conquistador, entretanto, o Direito anglo-saxônico não encontra-se à altura da organização política normanda, estando fadado ao gradativo desaparecimento.
2.2. Feudalismo e formação do Direito
Atribui-se o nome de Common Law, de acordo com Maria Chaves de Mello, ao “Direito consuetudinário, não escrito ou costumeiro ( em oposição ao direito legislado )”, sendo este, como acentua mais adiante, “o antigo direito nacional inglês que nasceu e se desenvolveu na Inglaterra, estendendo-se aos demais povos do tronco anglo-saxão e cuja eficácia deriva de usos e costumes imemoriais”. Reale o define como “a experiência jurídica da Inglaterra”, sendo caracterizado por “não ser um direito baseado na lei, mas antes nos usos e costumes consagrados pelos precedentes firmados através das decisões dos tribunais”.
Embora corretas, as definições não abarcam o caráter histórico do Common Law, que pode ser definido como o sistema jurídico resultante da concentração do poder jurisdicional por intermédio da ação centralizadora levada adiante pelos tribunais reais, na Inglaterra medieval.
O termo, hodiernamente, adquire uma conotação mais abrangente, constituindo todo um sistema jurídico que envolve diversas sociedades em vários recantos do globo. O sistema desenvolvido na Inglaterra, fundamentou substancialmente o Direito elaborado nos Estados Unidos da América, na Índia, em Israel, na Austrália, enfim em todas as colônias britânicas, ou nações que voluntariamente absorveram o sistema inglês.
O nome Common Law é derivado do francês commune ley, termo utilizado para defini-lo já que o idioma francês exerceu uma enorme influência na comunidade jurídica inglesa que tinha como seu jargão particular o law french, resultante do fato de os normandos advirem da França e constituírem o establishment desde sua invasão e conquista.
As origens do Common Law ligam-se ao desenrolar dos acontecimentos decorrentes da invasão normanda.
A organização político-social que vigia na Inglaterra do período anglo-saxônico, ainda que trouxesse consigo lampejos de centralização político-administrativa, era essencialmente tribal. A invasão normanda põe fim a este período, no momento em que torna-se impossível uma coexistência pacífica e harmônica entre as instituições anglo-saxônicas e as normandas.
Os normandos já haviam adquirido uma complexidade política bem mais avançada que as tribos inglesas. William trouxera consigo um séquito de barões que institui na Inglaterra o sistema feudal de suserania e vassalagem.
Em poucas palavras pode-se definir o feudalismo como a reação natural do animal político a uma situação apolítica e caótica, ou seja a tentativa do homem medieval de reorganizar sua vida e a ordem civil após o desmoronamento do Império Romano e a subsequente degeneração da organização política.
Na Inglaterra daquele período, o feudalismo ainda que bem característico significava uma condição de sobrevivência. A aproximação com o rei garantia segurança contra uma comunidade subordinada, estranha e possivelmente hostil, cuja língua e costumes eram completamente estranhos aos novos landlords.
A centralização portanto, ocorre quase que naturalmente. Entretanto por um longo período a justiça no novo reino ainda permanece fragmentária. Há uma diversidade quase infindável de jurisdições. Na Inglaterra daquele período vigem paralelamente jurisdições eclesiásticas, municipais, comerciais, reais, etc.
A autoridade real no período feudal, foi, em muitos locais da Europa onde o feudalismo se fez perceber, apenas simbólica, sem qualquer significação substancial, só vindo a constituir importância política no período de centralização e formação dos Estados nacionais. Todavia, num ambiente propício à centralização política como era o cenário inglês, e nesse caso, vale salientar que a Inglaterra sempre se antecedeu aos acontecimentos históricos em relação ao continente, a autoridade real não prescinde do monopólio da justiça, sendo-nos de fundamental importância a lembrança do que afirma Rousseau com indiscutível propriedade em Du Contrat Social : ( … )“O mais forte nunca o é bastante para ser sempre o amo, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever ( … )”
A concentração da atividade jurisdicional deu-se através da expansão da competência dos Tribunais Reais que funcionavam na Curia Regis, cognominados, posteriormente, Tribunais de Westminster, criando, desde então, um Direito comum a toda Inglaterra através do soerguimento de um sistema jurídico estruturalmente formalista e essencialmente processual.
É curioso perceber que, num dado momento histórico, o Common Law passa a seguir um caminho totalmente diverso daquele que se verifica no continente. Ocorre a centralização, que é estranha aos países onde vigora o civil law, e que se edifica num sistema cujas bases são rigidamente formalistas, como condição para sua própria sobrevivência. Tal característica acaba conferindo ao Direito inglês um caráter público peculiar, já que a jurisdição real era posta em funcionamento com a concessão do writ, que, no entendimento de Maria Chaves de Mello, trata-se de “mandado judicial, ordem judicial, ação especial que se inicia com o próprio pedido e emissão do mandado.” O writ, na verdade era uma ordem real que acionava todo o mecanismo jurisdicional, e sua concessão era subordinada à rígida análise formal de adequação do caso concreto à forma processual.
Tal fato acaba dando ensejo à expressão remedies precede right, que numa tradução livre significa que o processo e a observação de sua forma antecedem e são mais importantes do que a busca pelo justo.
Desta forma, na Inglaterra, durante muito tempo, o caráter axiológico do Direito não teve qualquer influência significativa na atitude dos juristas; enquanto no continente, o Direito Romano agia como ordenamento supletivo em busca do justo na fragmentária ordem jurídica então vigente.
O Common Law desenvolve-se com um caráter essencialmente prático, com base no respeito à forma, que determinava a adequação do processo ao caso concreto, e, posteriormente, utilizando as decisões judiciais.
Estas características, eventualmente traziam empecilhos à adequação do Direito às novas exigências sociais, uma vez que a lentidão para se introduzir um novo conceito que redefinisse uma noção anterior era desanimadora. O Common Law dá mostras de debilidade e passa a necessitar de um corretivo. Entra em cena o equity.
2.3. Fraqueza do Common Law e surgimento da Equity
Como sói acontecer com sistemas excessivamente formais, o Common Law não pode acompanhar o ritmo do desenvolvimento da sociedade inglesa.
O formalismo rigoroso e o conteúdo puramente processual do Direito inglês não tinha uma capacidade cambiante que lhe impusesse o ritmo necessário para se por a frente dos tempos. Dessa forma aparece a equity, cujo principal intento era corrigir eventuais falhas existentes nos julgamentos dos juízes dos Tribunais Reais.
Este recurso alternativo que surge de forma pretensiosa a partir do século XV, pode ser definido como um sistema jurídico paralelo que visava, através do recurso a um Tribunal específico, o julgamento do caso com base no processo de Direito Canônico, e na capacidade supletiva do Direito Romano, à semelhança do que ocorria no continente.
O julgamento era feito pelo Chanceler do rei, que em geral era um jurista, e suas decisões, a princípio, eram plenamente aceitas pelos tribunais de Common Law.
O problema maior da equity como sistema rival é que seu surgimento coincide com uma gradativa concentração do poder real, e uma indisposição cada vez maior entre o rei e o parlamento.
Ora, tanto o parlamento como os tribunais reais faziam parte do que era chamado de Curia regis. Gradativamente essa ligação, resultante do tipo peculiar de feudalismo aplicado na Inglaterra e já mencionado aqui, foi se desfazendo.
O primeiro grande sinal de tal afastamento foi a feitura da Magna Carta, pelos barões ingleses, que tanto impõe limitações ao poder real, como à atividade jurisdicional dos Tribunais de Westminster.
A peleja continuou indefinidamente até justamente o século XV, quando numa série de dois reinados, o do Rei James I, e o do Rei Carlos I, a Inglaterra entra numa vertiginosa série de acontecimentos que levará à primeira revolução burguesa da história.
A razão do parlamento se insurgir contra a monarquia tem origens socio-econômicas. O deslocamento do poder econômico, passando da aristocracia para as camadas médias da população, notadamente aquela que sofrera maior influência da ideologia reformista calvinista, impõe a necessidade de semelhante deslocamento do poder político. Assim a Câmara dos Comuns, principal expoente da defesa dos ideais anti-absolutistas no parlamento, passa a ser o maior entrave na autoridade real.
Justamente em razão dessa disputa cada vez maior pelo poder político, o rei tenta trazer mais uma vez a capacidade jurisdicional para o seu campo de atuação. Dessa forma, a equity torna-se um instrumento de expressão do absolutismo real, pois a atividade jurisdicional era exercida pelos tribunais reais, e ainda que o nome denotasse algum tipo de comprometimento com o monarca, a atividade dos tribunais do Common Law era completamente independente.
Não nos esqueçamos, porém, que o surgimento do novo sistema jurídico supletivo é oportuno para eventuais correções na rigidez formal e na essência processual do Common Law.
A conotação absolutista da equity vai desaparecer definitivamente quando a Inglaterra embarca na sua revolução burguesa que culmina com a Revolução Gloriosa.
A solução encontrada para harmonizar os dois sistemas, depois de violentos embates entre os dois tribunais, é uma coexistência dualista entre ambos. Com o passar do tempo, no entanto, a equity vai perdendo o conteúdo supletivo e a sistematização de suas normas torna-se tão rígida quanto a que ocorre com o Common Law.
O que há de interessante neste período de ruptura do Common Law , é que o instrumento utilizado para neutralizar a ação da equity como ferramenta do poder absolutista, que é o Parlamento, vai dar ensejo a produção e ênfase de uma nova ruptura que remodelará o Common Law, nos séculos XIX e XX: a lei.
2.4. A modernização do Common Law
A revolução burguesa ocorrida na Inglaterra um século antes de chocar o mundo com o similar francês, redefiniu o caráter geral do Estado.
O absolutismo monárquico, ali, foi definitivamente sepultado. Houve, em função da luta contra a tirania, uma produção caudalosa de documentos libertários, e o Parlamento passou a ter poder total de legislar no Reino Unido.
O reflexo dessa atividade na área jurídica, na Inglaterra, era esperado, já que o que concedia o maior poder ao Parlamento, era a capacidade de produzir uma fonte do Direito que não era levada em conta pelo sistema inglês, fundamentalmente jurisprudencial.
O papel da lei cresce gradativamente. Mas o que vai marcar uma ruptura do sistema jurídico, a última, desde então, e vai redefini-lo, é a atividade parlamentar de reformulação da organização judiciária inglesa, claramente obsoleta diante das novas exigências da sociedade industrial, que demandavam eficácia e celeridade jurisdicional, e um acesso mais amplo à Justiça.
Esta reforma é efetuada através dos Judicature Acts do século XIX, dando novos contornos a organização judiciária inglesa, que será objeto da segunda parte de nosso estudo.
O Estado contemporâneo também apresenta-se como um desafio para o Common Law. Com o aumento cada vez maior da industrialização, a institucionalização do capitalismo e o crescimento vertiginoso do Estado, o Direito inglês enfrentará problemas em duas frentes distintas. A primeira delas é a defesa do indivíduo perante o Estado e a segunda é o crescimento do socialismo inglês, com a nova noção de Welfare State, desenvolvida pelo Partido Trabalhista, no início do século, ambos os desafios, com caráter puramente administrativo.
O que marca, porém, definitivamente o período em análise é a atividade parlamentar de reformulação da organização judiciária, o que nos dá uma noção da importância que se defere ao caráter funcional do Estado, baseado na atividade precípua de dizer o Direito.
3. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
O Direito, quando manifesto na sociedade através de normas, é domínio da disciplina que atende pelo nome de Dogmática Jurídica. Injusto, já que conhecimento científico dogmático é conceito inaceitável, atribuído em função de seus estudiosos, e não da matéria em si. Todavia, quando isso acontece, e passa-se do estudo essencialmente teórico, para uma organização e sistematização prática, com o escopo de servir a sociedade dos aspectos positivos da Ciência Jurídica, dois elementos assomam de imediato, para a proficiência de tal intento, um deles é o acesso à Justiça, o outro a rapidez e eficácia da prestação jurisdicional.
Tais elementos constituem a rigor, o fim maior da organização judiciária em qualquer nação do planeta, o pleno acesso à justiça para solução de lides, e a célere e eficaz prestação jurisdicional.
Antes de mais nada, tal fim é de interesse imediato do Estado, pois resulta na solução de conflitos de interesses, recuperando com isso, a harmonia social rompida, ainda que de forma localizada.
A organização judiciária inglesa , a rigor, é resultado óbvio de quase um milênio de desenvolvimento e aperfeiçoamento jurídico, aliado ao respeito quase devocional pelas instituições.
Há uma singular interação entre comunidade e Estado para resultar numa Justiça rápida e eficaz, objetivo que só pode ser alcançado em locais onde a sociedade civil, como entidade atuante, já nasceu e desenvolveu-se para estágios além dos conceitos ultrapassados de nossa atrofiada cidadania.
Tal organização divide-se em dois tipos de “Justiça”:
1. Alta Justiça – composta pelos tribunais superiores, onde os litígios são dirimidos, e onde se pode observar a formação e desenvolvimento do Direito inglês. René David faz uma colocação muito apropriada ao afirmar que se alguém deseja compreender o Direito Inglês, deve observar a Alta Justiça, pois nela as decisões constituem — no momento em que se transformam em coisa julgada — o precedente, um dos alicerces do Common Law, cuja base é essencialmente jurisprudencial.
2. Baixa Justiça – na verdade este é, quiçá, um dos aspectos mais formidáveis do Direito Inglês e de sua organização judiciária. A Baixa Justiça é fundamental para a eficácia da jurisdição imediatamente superior. Em suma, é responsável pela rapidez da prestação jurisdicional desta, e representa um primor de acesso à justiça. A maior parte das lides, e cremos que assim se podem chamar os conflitos de interesses expostos ao juízo da Baixa Justiça, são dirimidas na instância que compete às suas cortes inferiores, sem a necessidade de passarem pelo crivo das cortes superiores, embora estas, necessariamente, conheçam acerca do litígio e se manifestem de uma forma ou de outra. O resultado final é uma Justiça onde os tribunais superiores conhecem de todos os fatos em juízo no país, mas só julgam aqueles que não podem ser solucionados em instâncias não judiciárias, no sentido da produção oficial de jurisprudência. As jurisdições inferiores não compõem o Poder Judiciário propriamente dito, e suas sentenças alcançam somente a espécie julgada.
3.1. Alta Justiça
No topo da organização judiciária inglesa está o Supremo Tribunal de Judicatura ( Supreme Court of Judicature ), composto por três subdivisões, quais sejam, o Alto Tribunal de Justiça ( High Court of Justice ), o Tribunal de Apelação ( Court of Appeal ) e o Tribunal da Coroa ( Crown Court ).
Necessário se faz, perceber, que as três subdivisões não constituem jurisdições inferiores, mas partes do corpo principal.
O Supremo Tribunal de Judicatura representa uma compactação dos diversos tribunais superiores existentes na Inglaterra até o Século XIX, que foi efetivada após os Judicature Acts , reforma legislativa iniciada no Século XIX e desenvolvida ao longo deste século.
O braço mais notável deste gigantesco tribunal superior é o Alto Tribunal de Justiça, que apresenta a seguinte divisão:
Alto Tribunal de Justiça (High Court of Justice):
-Seção da Chancelaria;
-Seção do Banco da Rainha;
-Seção da Família;
O Alto Tribunal de Justiça divide-se em três seções. Tais seções, no entanto, não são especializadas em julgamentos cujas características lhe cabem, podendo julgar qualquer espécie.
Este tribunal é composto por setenta e cinco juízes, chamados justices, aos quais são acrescentados o Juiz Presidente, que preside a Seção do Banco da Rainha, o Vice-chanceler, que preside a Seção da Chancelaria, e o Presidente, que preside a Seção da Família.
Não se pode alcançar a posição de Juiz do Alto Tribunal de Justiça sem haver antes ocupado o cargo de advogado. O recrutamento para a investidura de funções de juiz no Alto Tribunal de Justiça é feito entre os advogados ingleses. Neste tribunal, as questões em primeira instância, são submetidas à análise e julgamento de um único juiz.
Um outro papel de crucial importância é desempenhado pelo Tribunal da Coroa, que é uma seção do Supremo Tribunal de Judicatura, cuja competência compreende matéria criminal.
O Tribunal da Coroa é relativamente novo, tendo sido instituído em 1971, como uma das reformas judiciárias que vêm ocorrendo na Inglaterra desde o século passado.
Na sua composição pode-se notar uma diversificação que contrasta com a rigidez imposta pelo Alto Tribunal de Justiça. Tal diversificação varia de acordo com a natureza da infração a ser julgada, podendo este julgamento ser feito por um juiz de circuito ou por um recorder, que é um advogado investido temporariamente das funções de juiz, ou mesmo por um juiz do Alto Tribunal.
O julgamento pelo Júri, neste âmbito da organização judiciária, faz-se necessário sempre que o réu se declarar inocente, e sempre que este escolher ser julgado pelo Tribunal da Coroa, o que pode acontecer, dependendo da infração cometida.
A acusação, no julgamento pelo Tribunal da Coroa é desempenhada pelo equivalente inglês ao Promotor Público brasileiro, embora inexista na Inglaterra o Ministério Público. A tarefa de acusar cabe ao Master of the Crown Office.
Há um segundo grau de jurisdição no Supremo Tribunal de Judicatura cujo papel é desempenhado pelo Tribunal de Apelações ( Court of Appeal ), composto por dezesseis juízes, os quais são presididos pelo Master of Rolls.
Neste Tribunal, as questões são submetidas a um colegiado composto por um número ímpar de três juizes, e têm suas decisões reformadas se alcançada for a maioria simples, sendo rejeitadas caso contrário.
Finalmente, temos a Câmara dos Lordes, que funciona como jurisdição superior em todo o Reino Unido.
As questões submetidas aos dois tribunais de primeira instância na Inglaterra, sobem, seguindo o princípio do segundo grau de jurisdição, para o Tribunal de Apelações, e extraordinariamente, podem chegar até a Câmara dos Lordes, que neste caso, funcionará como tribunal de apelações em grau excepcional.
Pode soar estranho uma função judiciária sendo desempenhada, em grau superior e extraordinário, por um órgão do Legislativo. No entanto, deve-se ter em mente o grau de respeitabilidade e independência do Poder Judiciário naquele país, que não permite qualquer intromissão do Legislativo nas funções do Judiciário, a começar do fato do Direito Inglês não ter base legal, e principalmente em razão de que não se pode considerar o papel legislativo como sendo função da Câmara dos Lordes, já que tal atividade é desempenhada pela Câmara dos Comuns, sendo esta o verdadeiro Poder Legislativo Inglês, eleito pelo povo, e aquela, em termos de atividade legislativa, instituição meramente simbólica.
Compõem esta corte extraordinária de apelações, o Lorde Chanceler que preside a Câmara, e outros onze lordes, alçados à posição com essa função específica, sendo completada por outros que já tenham ocupado algum cargo ou função judiciária.
O julgamento das questões ocorre de forma semelhante ao que é feito no Tribunal de Apelações. As questões são examinadas por não mais que cinco, e não menos que três lordes, e são automaticamente rejeitadas se o recurso não formar maioria contra a decisão anteriormente proferida.
Finalmente, temos a Comissão Judiciária do Conselho Privado, composta por juízes da Câmara dos Lordes, que delibera acerca dos recursos interpostos contra tribunais superiores de outras nações da Commonwealth.
Como já foi dito anteriormente ao longo do presente trabalho, o sistema Inglês é essencialmente jurisprudencial. O Direito se forma com base nas decisões proferidas pelos tribunais, desempenhando a lei, um papel secundário e irrisório na formação do Direito. Contudo, a sistematização das regras processuais não deixa de ser importante, lá, talvez mais que aqui.
Há uma gradação lógica e hierárquica da obrigatoriedade dos precedentes no Supremo Tribunal de Judicatura. A Câmara dos Lordes constitui a jurisdição suprema na Inglaterra, pois além de tratar dos recursos extraordinários interpostos contra as decisões do Tribunal de Apelações, abarca todo o Reino Unido com a Comissão Judiciária do Conselho Privado. As decisões proferidas nesta instância extraordinária, portanto, constituem precedente para todas as instâncias inferiores.
No âmbito do Tribunal de Apelações, as decisões proferidas constituem precedentes para todas as jurisdições inferiores, inclusive para ela própria, no que concerne à matéria civil.
As decisões judiciais advindas do Alto Tribunal de Justiça, valem para todas as jurisdições inferiores, sendo seguidas, sem o caráter obrigatório, no entanto, pelas seções do próprio Tribunal.
A elaboração de precedentes, criados a partir das decisões judiciais, constitui monopólio do Supremo Tribunal de Judicatura e da Câmara dos Lordes, não sendo função extensiva às jurisdições inferiores.
3.2. Baixa Justiça
A organização judiciária inglesa torna-se peculiar quando adentramos os portais da Baixa Justiça.
Esta peculiaridade não se mostra somente em função de uma descentralização no que tange ao acesso à Justiça e à prestação jurisdicional, mas também em razão da participação ativa da sociedade no processo judiciário, aplicando-se, com presteza, o Princípio da Justiça Local que se manifesta na ação dos Tribunais de Magistrados (Magistrate’s Court ).
A Baixa Justiça não produz o precedente, que constitui o alicerce precípuo do Common Law; as sentenças proferidas neste nível jurisdicional têm efeito unicamente sobre o caso julgado.
Há, todavia, opiniões que negam um caráter judiciário à este nível de jurisdição. Aproveitamos o ensejo para humildemente discordarmos de tal pensamento.
Obviamente não se pode conferir às jurisdições inferiores o grau de importância que tem o Alto Tribunal de Justiça. Contudo, a eficácia e presteza alcançadas pelos tribunais ingleses, que produzem o que poderíamos chamar de Direito Oficial, porque dito pelo Estado, deve-se, essencialmente, à atuação da Baixa Justiça inglesa, onde fenece a maior parte das lides.
Sabemos ser a principal característica do Poder Judiciário a aplicação da jurisdição na composição de lides, que são conflitos de interesses levados à juízo. Se considerarmos todos estes elementos como pré-requisitos para a formação de um conceito, perceberemos que é exatamente isto que faz a Baixa Justiça, talvez de forma mais importante que a Alta, pois se não produz o Direito, abre passagem para a atuação limpa, célere e respeitosa dos tribunais superiores ingleses.
Perante as instituições seculares que compõem a Baixa Justiça, algumas como os Tribunais de Condado (County Courts), e os Juízes de Paz (Justices of Peace) , são apresentados os conflitos de interesse. Seguindo-se a uma análise, temos uma decisão que compõe, no mais das vezes, o conflito; o Direito é dito e a lide solucionada.
Justifica-se portanto, atribuir à Baixa Justiça o caráter judiciário, ainda que careça da competência para produzir o Direito, monopólio exclusivo dos tribunais superiores e razão pela qual criou-se e desenvolveu-se o Common Law.
A Baixa Justiça envolve matérias cíveis e criminais. Neste nível de jurisdição vale observar certos elementos que a constituem.
Em primeiro lugar temos os Tribunais de Condado (County Courts), criados como parte da reforma judiciária ocorrida no século XIX, conhecidos comumente como “justiça dos pobres”. Sua importância, todavia, dispensa este conceito pejorativo. É válido atentar para o fato de que não têm qualquer relação com os antigos County Courts do período anglo-saxônico.
Os Tribunais de Condado são ativados por juízes itinerantes conhecidos como juízes de circuito, os quais, à semelhança dos magistrados do Alto Tribunal de Justiça, também são selecionados entre os advogados de prestígio.
Sua competência abrange matérias cíveis, e na verdade, é nessa instância em que é dirimida a maior parte dos litígios. Envolve obrigações e Direito de Família. Os Tribunais de Condado têm competência até mesmo para decretar o divórcio, caso a parte citada não apresente defesa. René David alerta para o fato de que o Alto Tribunal de Justiça não delibera, a princípio, sobre interesses inferiores a duas mil libras, encaminhando a maioria dos casos para as jurisdições inferiores, notadamente os Tribunais de Condado.
O julgamento, nos Tribunais de Condado, podem ser feitos por um juiz, propriamente dito, por um registrar, ou podem ainda as questões serem enviadas à arbitragem, determinada pelo juiz, ou escolhida pelas partes.
O elemento que manifesta com maior ênfase a eficácia da Baixa Justiça é a figura do magistrado (magistrate), que compõe os diversos Tribunais de Magistrados (Magistrate’s Courts), espalhados por todo o país.
A figura do magistrado tem origem remota. No reinado de Richard I, em meio a uma onda de crimes, um grupo de cavaleiros reais foi enviado à diversas partes do país, com o título de Mantenedores da Paz, em nome da Coroa. A figura do Juiz de Paz sedimenta-se definitivamente no século XII, e permanece, com alguns retoques e adequações sociais, quase inalterada até os dias atuais.
Os Juízes de Paz eram apontados pela Coroa para cada condado, em grupos conhecidos como Comissões de Paz, e em certa medida, administravam os condados a nível local, em nome do Rei.
O desenvolvimento da sociedade industrial, com suas variadas características, entre elas, o êxodo rural e o aumento de criminalidade, levaram os Juízes de Paz a abandonarem gradativamente suas funções administrativas, e a dedicar-se exclusivamente às suas atividades jurídicas.
Hoje, continuam sendo apontados pelo Lorde Chanceler, em nome da Coroa, são membros comuns da sociedade, não são remunerados e não são juristas, embora sejam assistidos por um jurista no Tribunal, que atua como um auxiliar, mas que não tem qualquer influência nas decisões ou nas sentenças. Distribuem a justiça no nível jurisdicional mais inferior.
Nos grandes centros metropolitanos, a figura do Juiz de Paz foi substituída pela do Magistrado Remunerado (Stipendiary Magistrate), o qual também é indicado pelo Lorde Chanceler, contudo, ao contrário dos Juízes de Paz, o Magistrado Remunerado é um jurista, e deve, para ocupar o cargo, ter advogado por pelo menos dez anos. Mesmo assim, seus poderes são praticamente os mesmos dos Juízes de Paz.
Em matéria criminal, as infrações menores podem ser julgadas pelos juízes de paz. O julgamento é feito por dois juízes assistidos por um jurista que atua como secretário. Já os Magistrados Remunerados atuam, no mais das vezes, de forma monocrática.
Sendo o caso de gravidade considerável, os juízes de paz podem, ao fim de um processo preliminar de conhecimento dos elementos que determinam gravidade e culpabilidade, enviar o caso ao Tribunal da Coroa para julgamento além de sua competência.
O réu pode, no entanto, solicitar o julgamento pelo juiz de paz, mas nesse caso, perde o privilégio de ter um Júri.
Compondo a Baixa Justiça, em matéria administrativa e no âmbito de determinadas leis, encontram-se organismos chamados quase-judiciários, denotando claramente o caráter de composição alternativa de conflitos de interesses, com competência suficiente e capacidade jurisdicional para solucioná-los. Tais organismos se diversificam em Comissões, Colegiados e Tribunais os mais diversos, todos controlados pelo Alto Tribunal de Justiça.
Os recursos interpostos contra os Tribunais de Condado, sobem diretamente para o Tribunal de Apelação, e os demais, interpostos contra os Tribunais de Magistrados, sobem para julgamento feito pelo Tribunal da Coroa, já que os Tribunais de Condado têm competência civil e os Tribunais de Magistrados, com exceção de algumas matérias de cunho civil, como Direito de Família e algumas questões envolvendo obrigações, tem competência criminal.
3.3. O Júri
O Júri é uma instituição de origem inglesa, tendo seu conceito se alastrado pelo restante do continente europeu após 1789, bem como pelas colônias britânicas, notadamente os EUA, e pelo resto do ocidente.
Busca-se sua origem em Roma ou na Grécia antiga, mas não há dúvida que o berço do Júri foi a Inglaterra medieval. Seu aparecimento pode ter sido reforçado pelo Concílio de Latrão, como alegam alguns doutrinadores, entretanto, liga-se mais à concentração do Direito na Inglaterra e à inclinação racional que os institutos jurídicos passam a ter após a conquista normanda, em oposição natural às concepções jurídicas arcaicas do Direito anglo-saxônico. Não resta dúvida no entanto, que o Júri, principalmente na forma preservada que é praticada até hoje tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, guarda uma forte conotação religiosa nas suas origens, sendo tal conotação perceptível pelo próprio juramento. Todavia, este detalhe não dá margem a especulação de que o número original de jurados remonta ao número de apóstolos e muito menos a de que o Júri passa a ser uma forma modificada de Juízo de Deus, como afirma E. Magalhães Noronha ao citar V. de P. V. Azevedo, mesmo porque a dinâmica desenvolvida neste tribunal reforça a retórica, a discussão dialética da verdade e o racionalismo, além de que, nos EUA, tal conotação se explica pelo fato de que a religião foi fator de unidade entre os primeiros habitantes da região no século XVI.
O Júri é por si só uma negação do Trial by Ordeal, praticado até então. Através dele retira-se do ideário jurídico a confrontação entre as partes e o julgamento, feito pelo Juízo de Deus. Passam-se tais tarefas para dois grupos que atuam em planos distintos, um Júri de Acusação, composto por 23 pessoas escolhidas entre membros da comunidade, chamado de Grande Júri ( Grand Jury ), e outro que funciona como Júri de julgamento, composto por 12 membros da comunidade, cuja tarefa é julgar o caso que lhes é apresentado, conhecido pelo nome de Pequeno Júri ( Petty Jury ).
O Grande Júri não se ocupava com as provas, sua função era de encaminhar acusação, se houvesse, para deliberação posterior, que ficava à cargo do Pequeno Júri, este sim encarregado de analisar o caso com base nas provas apresentadas, para então determinar o veredicto, ou seja, pronunciar a verdade, tendo, portanto, soberania total ao aplicar as sentenças.
Houve mudanças inevitáveis desde seu aparecimento até os nossos dias, notadamente desde o século passado, dentre as quais pode-se destacar a supressão do Grande Júri, e a especialização do Pequeno Júri unicamente em matéria criminal.
Como já foi mencionado anteriormente, nos nossos dias, o acusado de um determinado crime cuja gravidade não determine de pronto seu julgamento pelo Tribunal da Coroa pode escolher ser julgado pelo Tribunal de Magistrados, sendo este julgamento feito por um colegiado composto por três magistrados, prescindindo da presença do Júri, o que lhe poderia favorecer; em contrapartida, a pena, no caso de veredicto que o considere culpado, seria bem mais severa no julgamento pelo Júri.
4. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA INGLESA E A REALIDADE BRASILEIRA
Não haveria razão para elaborar este trabalho se não trouxéssemos o assunto estudado para um plano comparativo com a nossa realidade, já que é ponto pacífico a capacidade que tem o Direito Comparado de favorecer a compreensão mais profunda do nosso próprio sistema através de uma análise mais correta — porque feita de uma perspectiva externa — a proteção e preservação de institutos constantes de nossa escola jurídica e a adoção de institutos externos para o aperfeiçoamento de nosso sistema jurídico.
O estudo da organização judiciária inglesa revela-nos uma sociedade que harmonizou de forma proficiente a relação entre o Poder Judiciário e a comunidade, de um modo paradoxal. A princípio operando uma descentralização das funções jurisdicionais para níveis inferiores, aplicando dessa forma o princípio da justiça local, e resolvendo, com isso, a maior parte das questões antes que estas alcancem os tribunais superiores; em segundo lugar, e paralelo ao primeiro processo, não se pode negar a concentração das funções judiciárias, a priori com a compactação de todas as antigas jurisdições num único corpo que é o Supremo Tribunal de Judicatura, compactação e centralização que tem sido a orientação histórica do Common Law, centralização que se opera com o soerguimento de um legítimo e respeitável Poder Judiciário, livre de qualquer influência de outro Poder, partindo do fundamento essencial do sistema inglês, que é a jurisprudência e não a lei.
O Direito portanto, como bem destaca René David, tem sido elaborado, desde mais de cinco séculos , pelos juízes, e o Poder Judiciário tem se mostrado capaz de atuar paralelamente aos outros Poderes, e não como um simples aplicador de normas, não dizendo o Direito, mas gaguejando a vontade da lei, na maioria das vezes, elaborada de forma espúria e casuística pelo legislador.
Que lições podemos considerar diante de tal quadro, paralelo ao nosso sistema jurídico?
O Poder Judiciário brasileiro passa por uma das maiores crises de sua história. O acesso à justiça é precário, a prestação jurisdicional é vagarosa e improfícua, imersa numa maré interminável de recursos, os tribunais superiores surpreendem-nos por uma atuação putridamente política e formalista, o impasse entre os Poderes se dá com a mínima menção de atuação do Judiciário.
Certamente, se buscarmos as verdadeiras explicações para a situação atual, perceberemos que a solução não virá com simples modificações estruturais. A razão para a inviabilidade do Judiciário brasileiro liga-se à histórica dinâmica do poder senhorial e semi-feudal na nossa sociedade. O Poder Judiciário, na verdade, sempre esteve inserido na organização política oligárquica brasileira, sendo antes um instrumento dessas oligarquias, distanciando-se, portanto, de suas reais funções, o que explica o flagrante desconforto dos demais poderes ante sua atuação independente.
Diante do quadro que se nos apresenta, contudo, torna-se forçosa a busca por soluções imediatas. O estudo comparativo pode, de certa forma, fornecer-nos tais soluções.
Acreditamos todavia, que muitos dos elementos componentes da organização judiciária inglesa não teriam capacidade funcional no nosso país, outros no entanto, de uma forma ou de outra, já são aplicados.
Não resta dúvida que, no intento de desobstruir a Justiça, uma série de organizações jurisdicionais inferiores e porque não dizer alternativas têm sido criadas. Poderíamos mesmo afirmar que tais mecanismos jurisdicionais constituem o equivalente brasileiro à Baixa Justiça inglesa. Exemplo disso são as Curadorias, que são mecanismos de ação imediata, os Juizados de Pequenas Causas, que se destinam a dirimir pequenos litígios sem importância relevante para serem levados à juízo superior, a arbitragem, que acena como meio eficaz para solução de lides, e a súmula vinculante, em tramitação no Congresso Nacional, que nos remete ao precedente inglês impondo-se à todas as instâncias inferiores.
Por outro lado, há elementos do Direito inglês que certamente não funcionariam no nosso país. Um deles é a concentração do Judiciário, tarefa impossível num país de dimensões continentais. Basta dizer que a Inglaterra é menor que o Estado da Bahia, sendo naquele país, viável, a concentração das atividades judiciárias num único corpo que é o Supremo Tribunal da Judicatura. No Brasil, a descentralização é quase uma necessidade.
Outro aspecto que, nos parece, não surtiria efeito almejado no Brasil seria a justiça distribuída por leigos. Quando nos referimos ao termo “leigos” estamos obviamente, falando de pessoas alfabetizadas, conscientes de suas obrigações e direitos como representantes da sociedade civil, cientes da importância do processo representativo, e da necessidade de distribuição equitativa da justiça. Os leigos, que, na Inglaterra, são denominados magistrates, trabalham sem qualquer remuneração, conhecem bem a comunidade em que vivem e inspiram confiança nos habitantes de tal comunidade, razão pela qual a maioria das lides é solucionada nesta instância. A população brasileira, de modo algum reúne as características essenciais para a adoção de tal modelo. No nosso país há elementos suficientemente impeditivos que se revelam em pequenas unidades representativas e que, fatalmente inviabilizariam a instalação do equivalente brasileiro ao Magistrate’s Court, sendo-nos possível citar o nepotismo, a burocratização excessiva dos serviços, a falta de consciência política, a falta de informação, e a parcialidade , principalmente em função do poder estabelecido.
A limitação de recursos, porém, seria uma benvinda modificação à nossa organização judiciária. Na Inglaterra, pouquíssimos recursos são admitidos para julgamento na instância superior que é a Câmara dos Lordes. A maior parte dos litígios não passa da Baixa Justiça, e caso o faça, raramente sobe além do Tribunal de Apelações. Além disso, há questões cujo mérito, após apreciação preliminar por parte do Supremo Tribunal da Judicatura, é imediatamente remetido à Baixa Justiça.
O Poder Judiciário inglês atua baseado sobretudo numa autoridade vinculada às decisões de cada corte em relação à instância imediatamente inferior, e por intermédio de uma rígida limitação dos recursos. Tais características conferem capacidade funcional aos seus tribunais.
No Brasil a maré de processos é considerada irracional, a cada ano acumulam-se o número de casos a serem julgados nos tribunais superiores brasileiros;
O efeito assemelha-se ao de uma bola de neve. Parece não haver como brecar a maior parte dos casos em primeira ou segunda instância ou mesmo num organismo não-judiciário.
Uma solução que se cogita, como já foi mencionado antes, é a da súmula vinculante. Não há como fugir ao paralelo que se estabelece com o precedente inglês. Na verdade, é princípio básico que aquilo que já tenha sido decidido antes seja aplicado a um caso idêntico. Não se deve atribuir à súmula vinculante um caráter de imutabilidade, isso seria subestimar a capacidade cambiante da sociedade e do próprio Poder Judiciário como reflexo dela.
Aqui há outro aspecto da crise do Judiciário, esquecido porque implícito, que é a enorme distância que o separa da sociedade brasileira, desde a primeira instância, onde muitos juízes impõem uma distância visível das partes e dos advogados e promotores.
As características senhoriais antes mencionadas tornam-se perceptíveis mesmo na forma de uma simples petição inicial, onde a parte enfatiza a distância e a superioridade do juiz numa linguagem claramente bajulatória, referindo-se pleonasticamente a um homem, ainda que investido de poderes conferidos pelo Estado, como excelentíssimo senhor doutor juiz de direito.
Não se deve porém, partir para o extremo de igualar o juiz às partes e esquecer o respeito e a reverência necessária em qualquer ato judicial, pelo contrário. É sabido que em qualquer acontecimento judicial, seja uma audiência ou um julgamento, há um rito que é presidido pelo juiz; mas reconsiderar a atitude deste perante a população é tarefa primordial que cabe ao Judiciário e às faculdades de Direito do país.
Na Inglaterra tal aproximação é quase que inevitável, já que todo juiz inicia a carreira como advogado, sendo alçado à magistratura em razão de sua competência e eficiência na advocacia.
Automaticamente, o juiz inglês não padece de inexperiência, mesmo em razão da própria dinâmica do Direito Inglês, outro fato assolador na magistratura brasileira. Além disso, figuras como o Juiz de Circuito, o Stipendiary Magistrate e os próprios magistrados leigos, aproximam a experiência judicante da população.
Num plano imediatamente superior, porém não distante desta linha de pensamento, há o posicionamento histórico-social dos tribunais superiores brasileiros.
Para esclarecer esta análise, é de bom alvitre um breve relato do papel da Suprema Corte na sociedade norte-americana.
A construção do Direito nos EUA tem sido ao longo de mais de dois séculos, baseada rigidamente nos preceitos constitucionais que abrangem a organização política do Estado e a relação entre este e o cidadão.
A Suprema Corte americana aparece em todos os momentos cruciais da história dos EUA como Estado independente, desde a peleja entre John Marshall e Thomas Jefferson, passando pela abolição da escravatura, a laicização gradativa da sociedade, a emblemática defesa dos direitos civis na conturbada década de sessenta, e, recentemente a defesa da liberdade de expressão na Internet. Em outras palavras, chamada a atuar em momentos históricos decisivos, a Suprema Corte sempre surpreendeu pelo posicionamento racional, vanguardista e independente, além da defesa incondicional dos preceitos constitucionais, cuidando para não transpor os limites da atividade jurisdicional para a legiferante ou administrativa.
No Brasil, o papel da cúpula judiciária, fragmentada em siglas inexpressivas, ainda é uma incógnita. Não opina nem inova, não se mostra indignada ou contrária diante da chafúrdia que se faz na Constituição. Não atua em favor da sociedade brasileira, mesmo considerando que o Brasil é campo fértil para tal atuação, sendo-nos suficiente citar fato recente, quando da votação de projeto da Reforma da Previdência, que previa limitações à aposentadoria de magistrados e promotores, a magistratura brasileira virou as costas para a população, deixando-a ao sabor dos ventos e partindo para a vergonhosa barganha política, tendo merecidamente frustrados seus intentos.
A cúpula do Judiciário brasileiro parece pairar acima dos problemas sociais, quando lhe cabe a defesa da democracia, que adotando definição do filósofo Platão, pode ser conceituada como igualdade de condições. Ora, a idéia de democracia contemporânea baseia-se na concepção de um Estado que expressa uma coletividade, limitado, porém, pelo respeito ao indivíduo, conceituado como Estado de Direito. Dessa forma, não pode haver atividade mais importante e significativa em tal Estado, do que a de dizer o Direito, que é justamente a função do Poder Judiciário.
A recuperação deste posicionamento histórico-social, a exemplo do que ocorreu na Inglaterra, é perfeitamente viável através da utilização da jurisprudência, que daria ao Judiciário brasileiro a independência que lhe é necessária, já que o uso desta fonte do Direito não deixa de ser uma atividade legiferante, num sentido particular. Sabemos que a jurisprudência é utilizada no nosso sistema como fonte secundária, mas não há lei que obrigue tal situação a permanecer imutável. Na Inglaterra a lei desempenha papel importante, mas a construção do Direito cabe aos juízes, por intermédio da jurisprudência.
Finalmente, uma reforma do Judiciário parece-nos “conditio sine qua non” para a eficácia deste, e sua realização ou não é simples questão de vontade política, sendo-nos estranho o adiamento contínuo de tal reforma que daria ao Judiciário plena capacidade funcional, sem nos esquecer que a reformulação da organização judiciária inglesa foi feita através da atividade do Parlamento, quando já era visível que o antigo sistema não comportava as necessidades da sociedade industrial, com os Judicature Acts, utilizando — ao contrário do que expusemos como solução para a redefinição do caráter de nosso sistema — a lei como instrumento de aperfeiçoamento do Poder Judiciário, que é o sustentáculo da democracia no Estado contemporâneo.
Bibliografia:
Livros:
. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro.Editora Jurídica Brasileira, 1a edição, 1993, São Paulo.
. DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Martins Fontes, 3a edição, 1996, São Paulo.
. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Fundação Calouste Gulbenkian, 2a edição, 1995, Lisboa.
. MELLO, Maria Chaves de. Dicionário Jurídico. Editora Pergaminho, 6a edição, 1994, Lisboa.
. NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. Editora Saraiva, 17a edição, 1986, São Paulo.
. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Editora Saraiva, 21a edição, 1994, São Paulo.
Artigos:
. FARMER, Mike. The Long Arm of the Law. [ online ] Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.ftech.net/~regia/law.htm. Arquivo capturado em 25 de novembro de 1997.
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Informações Sobre o Autor
Hugo César Araújo de Gusmão
Bacharel em Direito