STJ – CR 1.457/FRANÇA[1] – A POLÊMICA DA QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO NO BRASIL PELA VIA DA ROGATÓRIA[2]
Ementa: (…) 1. O Procurador da República do Tribunal de Grande Instância de Paris/França instaurou o procedimento de “informação judiciária” por suspeita de lavagem de dinheiro cometida em bando organizado, envolvendo os cidadãos brasileiros P.S.M. e S.L.M., diante da ausência de justificações relativas às operações financeiras efetuadas nos bancos franceses (…). Da investigação realizada constatou-se que P.S.M. figura como indiciado em diversos inquéritos policiais abertos por autoridades brasileiras, com a implicação de outros membros de sua família. Considerando a falta de justificação para a movimentação financeira efetuada por sua mulher, S.L.M., e que as transferências de fundos havidas são suscetíveis de compreender-se num circuito de lavagem de dinheiro entre o Brasil e a França (…), o Vice-Presidente do Tribunal de Grande Instância de Paris solicitou, via Ministério da Justiça, o seguinte: a) permissão para consulta de documentos apreendidos, interrogatórios ou quaisquer outros elementos de prova, contidos nos inquéritos instaurados contra P.S.M.; b) autorização, após o exame dessa documentação, para a extração de cópias para as autoridades francesas; c) permissão para a transmissão de cópias dos documentos concernentes à conta bancária (…) aberta em nome de S.L.M. (…); d) investigação (…) quanto à existência de conta bancária aberta em nome de P.S.M. ou de qualquer outro membro de sua família e, em caso afirmativo, transmitir todos os documentos a ela atinentes, assim como o extrato de operações de crédito (…); e) inquirição, na qualidade de testemunhas, dos representantes (…) [de certa associação] a respeito das condições em que teria adquirido diversos bens imóveis pertencentes a membros da família; f) autorização para transmitir às autoridades francesas cópias dos documentos oficiais que evidenciem a realização dessa venda imobiliária, assim como de todos os documentos bancários que comprovem o pagamento do preço da avença; g) inquirição, na qualidade de testemunhas, de F.M. e sua esposa J.M. com a finalidade de determinar a origem dos fundos creditados na conta (…) e o motivo dessa transferência (…) [para a] conta de S.L.M.; h) realização dos interrogatórios de P.S.M. e S.L.M.; i) realização de outras diligências que possam revelar-se úteis para a investigação. Requereu, por fim, autorização para que possa acompanhar a execução da carta rogatória juntamente com funcionários de polícia do Office Central pour la Répression de la Grande Délinquence Financière (O.C.R.G.D.F).
2. Em razão do despacho exarado pela então Presidência desta Corte (…), os interessados deixaram de ser intimados (art. 8º, parágrafo único, da Resolução nº 9/STJ). O Ministério Público Federal (…) opinou pela concessão do pedido. Nos termos da decisão (…), foi concedido o exequatur para o cumprimento da carta rogatória, decisão esta posteriormente reconsiderada em sede de agravo regimental (…), a fim de que os interessados fossem intimados para impugnar a carta rogatória. Efetivada a intimação, foram apresentadas as impugnações (…). Inicialmente, não prosperam as alegações referentes à ausência do trâmite por via diplomática da presente carta rogatória, bem como pela falta de tradução juramentada dos documentos que a informam. A presente carta rogatória tramitou por meio da autoridade central brasileira, no caso, o Ministério da Justiça, o que confere aos documentos a indispensável autenticidade. Melhor sorte não têm os interessados no que toca à alegada insegurança jurídica advinda do pedido de quebra de sigilo bancário. Observe-se que, in casu, não há óbice legal que impeça o deferimento da referida medida extrema, em face não só da natureza dos delitos investigados, bem como em razão dos atos bilaterais internacionais firmados pelo Brasil, a seguir mencionados, que lhe embasam. (…) Observe-se, ainda, que o pedido de cooperação ora analisado cumpre as exigências insertas no art. 13 do referido Acordo, não se estendendo às denominadas medidas de terceiro grau (que impliquem prisão). (…) Não há falar, nesses termos, em ofensa à soberania nacional ou à ordem pública, até mesmo porque, na ordem jurídica interna, a quebra do sigilo pode ser decretada quando necessária para a apuração de ilícito penal, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial (art. 1º, § 4º, da Lei Complementar nº 105, de 10.1.2001). Por outro lado, o pedido rogatório em tela encontrase devidamente motivado, contendo suficiente exposição dos atos ilícitos que se busca investigar, bem como a conduta das pessoas envolvidas. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que, “para autorizar-se a quebra do sigilo bancário, medida excepcional, é necessário que estejam presentes indícios suficientes da prática de um delito” (CR nº 11.268/AS, relator o Ministro Maurício Corrêa). (…) É o que ocorre nestes autos, pois a postulação descreve fatos havidos não só no exterior como no Brasil, a evidenciar quantum satis a existência de indícios suficientes quanto ao cometimento de infrações penais. (…) É de se ressaltar, por oportuno, que não há que se sustentar a imprescindibilidade da prévia homologação da sentença estrangeira que decretou a quebra do sigilo. Basta que haja indícios suficientes acerca da prática do delito e que a ordem requerida possua amparo em acordos ou tratados internacionais. Aliás, não faz sentido, nos dias atuais, que o ato de cooperação internacional restasse protelado por meses ou anos, a fim de que se cumprisse tal exigência de caráter formal. Os meios modernos de comunicação e transporte impõem providências enérgicas e rápidas para coibir o crime organizado transnacional. Por fim, quanto à alegada ocorrência de litispendência e bis in idem, o Ministério Público Federal corretamente afastou-a pontuando que “os fatos sob investigação pela Justiça francesa referem-se às movimentações ilícitas de ativos em bancos franceses e, embora o objeto da comissão seja pesquisar a origem e a prévia movimentação desses recursos no Brasil, não há dúvida de que se cuida de fatos subseqüentes ocorridos na França, em contrariedade às leis daquele país e, portanto àquela jurisdição” (…). Atente-se, ademais, que nesse juízo prévio de delibação, deveriam as impugnações restringirem-se a versar sobre a autenticidade dos documentos, a inteligência da decisão e a observância dos requisitos impostos pela Resolução nº 9 desta Corte. 4. Posto isso, satisfeitos os pressupostos necessários, concedo o exequatur. Autorizo que as autoridades estrangeiras acompanhem a realização das diligências rogadas, desde que nelas não interfiram (…).
Comentário
A questão da quebra do sigilo de operações bancárias realizadas no Brasil, requerida por autoridade estrangeira pela via da rogatória, tem suscitado enorme controvérsia. Duas objeções têm sido adotadas na jurisprudência, em conjunto ou isoladamente, todas levando ao indeferimento do pedido: (1) por ser considerada carta rogatória executória, é insuscetível de ser cumprida sem que haja previsão em tratado; (2) a diligência solicitada fere a ordem pública brasileira, já que o sigilo bancário é incluído nas garantias constitucionais.
Quanto ao primeiro argumento, tanto na doutrina quanto na jurisprudência brasileiras, tem-se entendido que nenhuma medida de caráter executório deve ser autorizada no País se pedida por via de carta rogatória. Esta poderia ter como objeto apenas uma diligência a ser realizada no Brasil (citação, intimação, oitiva de testemunhas e obtenção de provas em geral). Decisão tradicionalmente citada esclarece essa posição: “Sentença negatória de exequatur. Carta Rogatória expedida pela Justiça da República Argentina para se proceder no Brasil ao seqüestro de bens móveis e imóveis.Medida cautelar prevista no art. 1.295 do Código Civil argentino com o nome jurídico de embargo e no artigo 822 do Código de Processo Civil brasileiro, com o nome jurídico de seqüestro. Tratando-se de providência judicial que depende, no Brasil, de sentença que a decrete, imperiosa é a conclusão de que tal medida não pode ser executada em nosso País antes de ser homologada, na jurisdição brasileira, a sentença estrangeira que a tenha concedido. Exequatur denegado”[3]. Ainda mais especificamente, no corpo da decisão: “A carta rogatória constitui expediente pelo qual se cumprem ou executam os atos judiciais de procedimento que não dependem de sentença, tais como citações, intimações, avaliações et similia”.
Segue esta tendência a Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias (1975), ratificada pelo Brasil, que estabelece (art. 2º) o objeto das cartas rogatórias de que trata, e exclui expressamente de seu escopo (art. 3º) as diligências com caráter executivo, in verbis: “Art. 3º. Esta Convenção não se aplicará a nenhuma carta rogatória relativa a atos processuais outros que não os mencionados no artigo anterior; em especial, não se aplicará àqueles que impliquem execução coativa”.
Excetuam-se desta regra as cartas rogatórias expedidas no âmbito do Mercosul, com base nos Protocolos de Las Leñas e de Ouro Preto. O Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa (Las Leñas, 1992) estabelece (art. 19): “O pedido de reconhecimento e execução das sentenças e de laudos arbitrais por parte das autoridades jurisdicionais será tramitado por via de cartas rogatórias e por intermédio da Autoridade Central”. O Protocolo de Medidas Cautelares (Ouro Preto, 1994) prevê (art. 18): “A solicitação de medidas cautelares será formulada através de ‘exhortos’ ou cartas rogatórias, termos equivalentes para os fins do presente Protocolo”.
Mesmo posteriormente à entrada em vigor dos Protocolos do Mercosul, permaneceu esta a posição do STF, negando exequatur a cartas rogatórias que requeressem atos de execução, se originárias de países que não ratificaram os referidos Protocolos: “Carta Rogatória. Citação. Admissibilidade. Busca e apreensão de menor. Ato de caráter executório. Impossibilidade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera insuscetíveis de cumprimento, no Brasil, as cartas rogatórias passivas revestidas de caráter executório, ressalvadas aquelas expedidas com fundamento em atos ou em convenções internacionais de cooperação interjurisdicional”[4].
Portanto, em resumo, há entendimento sedimentado na jurisprudência anterior de negar exequatur a cartas rogatórias executórias. Note-se, porém, que não há uniformidade no que se refere à extensão desse conceito. Cabe mencionar, todavia, que a Resolução nº 9/2005 do STJ abriu caminho para a concessão de exequatur às cartas rogatórias executórias, no seu art. 7º[5], independentemente de tratado.
Quanto ao argumento da ordem pública, a questão da quebra de sigilo é polêmica também no direito interno. Discute a doutrina sobre a fonte constitucional desta proteção, já que, em nenhuma Constituição brasileira, a garantia do sigilo bancário foi mencionada de maneira explícita. Alguns autores defendem que o sigilo bancário tem fundamento na intimidade preconizada no inciso X do art. 5º da CF (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”) outros afirmam que guarda relação com o sigilo de dados constante no inciso XII (“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”).
Ademais, discute-se a extensão desta garantia. A doutrina minoritária defende que, como os direitos e garantias fundamentais têm caráter absoluto, nenhum desses direitos deve ser tolhido, ainda que em conflito com outro direito ou garantia. Ou seja, para esses, o sigilo bancário não pode e não deve ser violado, em nenhuma hipótese.Todavia, esse não tem sido o entendimento adotado no STF, que tem admitido a quebra do sigilo por determinação judicial (e das CPIs), desde que com base em fundado motivo.
No plano do processo civil internacional, a discussão não é menos polêmica, já que o STF já reiteradamente negou exequatur a tais solicitações. Confira-se:
“Carta rogatória – Atos executórios – Quebra de sigilo bancário – Ausência de homologação de sentença – Inviabilidade de cumprimento. 1. Com esta carta rogatória, originária do Tribunal de Grande Instância de Paris, na República Francesa, objetiva-se obter informações sobre contas bancárias (…) 2. Conforme já consignado, esta rogatória dirige-se à obtenção de informações bancárias, alcançando, assim, garantia constitucional – o sigilo de dados. Na espécie, não se tem sentença estrangeira homologada, fato a inviabilizar o cumprimento da carta. Ante o parecer da Procuradoria Geral da República, é de registrar que a óptica ali externada conduz ao fornecimento dos dados relativos às pessoas jurídicas mencionadas no processo. Vale frisar que o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal, subscrito pelos Governos do Brasil e da França – Decreto nº 3.324, de 30 de dezembro de 1999 –, não tem o condão de colocar em segundo plano a necessidade de homologação de sentença estrangeira que, de alguma forma, implique a quebra de tal sigilo, ainda que se trate de simples constatação da existência de conta bancária. É que o artigo 2º do referido Decreto alude à execução que contrarie a soberania, a segurança e a ordem pública ou mesmo interesses essenciais do país requerido. Logo, ante a envergadura da matéria, a envolver garantia constitucional – cujo afastamento pressupõe ordem judiciária –, indispensável é que se conte com a citada homologação. 3. Diante de tal quadro, indefiro a execução pretendida (…)”[6]
E, ainda:
“(…) 4. As cartas rogatórias encaminhadas à Justiça brasileira somente devem ter por objeto a prática de simples ato de informação ou de comunicação processual, excluindo, portanto, as que tenham qualquer conotação de índole executória. 5. A diligência solicitada, quebra de sigilo bancário, não poderá ser executada sem que antes se proceda à homologação, pela Justiça brasileira, da sentença estrangeira que a determinou. 6. É pacífica a jurisprudência da Corte no sentido de que a quebra de sigilo bancário, por revestir-se de caráter executório, não comporta deferimento. De igual forma, foi decidido na CR 7581, Sepúlveda Pertence, DJU de 1º/8/1997, CR 9024, Carlos Velloso, DJU de 14/12/1999 e CR 8622 (Agr), Marco Aurélio, DJU de 1º/2/2002. (…)”[7].
Com o devido respeito ao STF, discorda-se do entendimento adotado sobre a matéria. Primeiramente, há que se mencionar que o pedido não tem caráter executório, como alegado pelo STF nas decisões supracitadas. Tal solicitação se reveste da natureza de coleta de provas, o que, em regra, deve merecer o exequatur, inclusive como determinado em convenção ratificada pelo País (Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias). Em segundo lugar, considerando-se que a garantia do sigilo tem sido compreendida como passível de ser quebrada pelo Judiciário, tampouco há qualquer óbice à concessão do exequatur no Brasil, já que a questão será devidamente apreciada pelo Judiciário brasileiro – especificamente pelo STJ. Note-se, todavia, que, como o STJ não pode reexaminar o cabimento do pedido no âmbito da rogatória, pode-se exigir somente que a decisão estrangeira seja fundamentada, sem que o seu conteúdo possa ser apreciado pelo STJ.
A decisão objeto do presente comentário alterou todo esse cenário anterior, supradescrito, concedendo o exequatur a uma rogatória que, dentre outras coisas, requeria a quebra do sigilo bancário de brasileiros. Em primeiro lugar, baseou-se o julgado no acordo de cooperação Brasil-França (que foi examinado na primeira das decisões citadas, chegando-se, todavia, a solução diversa), já que o tratado obriga as partes a prestarem a mais ampla cooperação possível. Ademais, e esse é o ponto nodal da decisão, reconheceu-se a importância da cooperação entre os países no combate ao crime organizado transnacional.
Por fim, note-se que essa decisão inovadora sofreu alguns percalços, já que o Ministro Relator a proferiu inicialmente sem ouvir a parte contra quem a medida estava sendo solicitada, com base no art. 8º, parágrafo único, da Resolução nº 9/2005 do STJ: “A medida solicitada por carta rogatória poderá ser realizada sem ouvir a parte interessada quando sua intimação prévia puder resultar na ineficácia da cooperação internacional”. O Ministro Marco Aurélio, do STF, ao apreciar habeas corpus impetrado contra decisão do STJ em caso equivalente, deferiu liminar com base na ausência de contraditório no caso[8]. Por isso, em 14 ago. 2006, o Ministro Barros Monteiro reconsiderou a decisão anterior de concessão do exequatur no caso comentado, e determinou a intimação dos interessados para impugnar a carta rogatória. Após a impugnação das partes, manifestou-se novamente o Min. Barros Monteiro, em 25 out. 2006, no mesmo sentido da decisão anterior, ou seja, concedendo o exequatur.
Espera-se que essa seja a primeira de muitas outras decisões nesse sentido, já que a cooperação é uma via de mão dupla. O Brasil tem requerido (e obtido) a quebra do sigilo bancário a países estrangeiros, como no caso do ex-prefeito Paulo Maluf (Ilhas Jersey e Suíça), do propinoduto (Suíça) e em muitos outros casos em que há investigação sobre remessa de dinheiro para o exterior. Porém, até essa decisão, reiteradamente se negavam os pedidos de igual teor feitos por países estrangeiros, o que gerava sérios incidentes diplomáticos. Inicia-se, portanto, uma nova fase na cooperação entre Estados, principalmente no combate ao crime de lavagem de dinheiro.
Informações Sobre o Autor
Carmen Tiburcio
Professora Adjunta de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Internacional da Faculdade de Direito da UERJ. Mestre e Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Virginia, EUA.