Perícias em DNA: a coisa certa pode ser feita de forma errada? Um estudo de caso hipotético

Resumo: A introdução das técnicas para identificação humana por análise de DNA nos tribunais de países como os Estados Unidos da América foi cercada de desconfiança por uma significativa parcela da comunidade científica e dos operadores do direito. Esta objeção se deveu, em parte, a inexistência de regras definidas e padronizadas para os laboratórios envolvidos nestes exames. Embora tal período de crítica tenha contribuído para o estabelecimento de rígidos critérios para os serviços prestados, falhas ainda podem ocorrer. Neste artigo, é apresentado um caso criminal hipotético em que se aplicou a genética forense como ferramenta investigativa. O objetivo é demonstrar algumas possibilidades de erro já descritas na literatura especializada.

1. Introdução

Na área criminal, um dos propósitos da identificação humana por DNA (genotipagem) é testar uma hipótese de que determinada pessoa é a fonte doadora de uma evidência biológica. Dentre os possíveis resultados desta investigação constam a exclusão – as amostras biológicas possuem origens diferentes; o laudo com resultados inconclusos – não é possível determinar, com base nos resultados dos testes, se as amostras provêm ou não do mesmo doador; a inclusão (ou não exclusão) – as genotipagens são similares e originaram-se da mesma fonte. Esta última conclusão de similaridade genética meramente descreve o fato de que não foram detectadas diferenças entre duas amostras através dos testes realizados (INMAN e RUDIM, 1997).

As genotipagens de regiões STR através da técnica da PCR (reação em cadeia da polimerase) podem apresentar similaridades em três circunstâncias:

1. As amostras possuem a mesma fonte: a evidência biológica (mancha de sangue, saliva, esperma etc) se origina da mesma pessoa que cedeu a amostra utilizada como referência;

2. A similaridade é coincidência: o doador da amostra referência e o verdadeiro doador do material biológico possuem alelos coincidentes em relação aos marcadores examinados;

3. A similaridade é acidental: isto decorre de erros durante os processos de coleta e/ou análise das amostras.

Em casos de abuso sexual e em cenas de múltiplos assassinatos, por exemplo, é comum a análise de amostras contendo mistura de DNA de duas ou mais pessoas. Há situações em que os profissionais responsáveis não levam em consideração tais aspectos, fazendo pairar dúvidas a cerca de seus resultados (PARADELA et al., 2006). Em relação às investigações criminais, cada rastro biológico encontrado na cena de um crime ou no corpo da vítima pode representar um vestígio ou uma prova fundamental para elucidar questões. Portanto, deve haver um cuidado absoluto no levantamento dos vestígios de material orgânico, quando todo e qualquer material passa a ter relevância. Sabe-se que a exposição do DNA a fatores como luz solar, microorganismos e componentes químicos pode provocar a degradação da molécula. Logo, quanto melhor for a coleta e a preservação do material coletado, melhor será a análise do material genético extraído (PARADELA e FIGUEIREDO, 2007).

Os erros mais comuns nas genotipagens envolvem troca ou contaminação de amostras e análise incorreta dos dados. Tal fato pode ser constatado a partir de algumas manchetes publicadas nos últimos cinco anos, tais como: “DNA errors lead to murder case review” (The Times on line, fevereiro de 2007); “Forensic lab errors in hundreds of crime cases” (The Guardian,fevereiro de 2007); “POLICE FORENSICS: DNA mix-up prompts audit at lab” (Las Vegas Review-Journal, abril de 2002); “Audit calls for changes in police DNA lab” (Las Vegas Review-Journal , maio de 2002); “Laboratório do PR é condenado por erro em exame de DNA” (Folha de Londrina, julho de 2006); “More than 200 cases reopened after DNA error” (The Independent, maio de 2007).

Entretanto, se os exames forem corretamente executados, as amostras estiverem em condições para análise (a degradação do DNA pode interferir nos resultados) e os cálculos forem apropriadamente executados, a confiabilidade dos testes de DNA é absoluta. A seguir é apresentado um caso hipotético de investigação de abuso sexual que exemplifica algumas das falhas descritas na literatura em análises desta natureza.

2. O caso hipotético

2.1 – O caso: violência sexual contra mulher com vestígios de sêmen detectados no raspado vaginal coletado da vítima.

2.2 – O laudo: o documento em que a análise do material genético é apresentada informa a comparação de marcadores genéticos STR (regiões curtas repetidas in tanden) presentes nas seguintes amostras: EVIDÊNCIA BIOLOGICA – esfregaço vaginal coletado da vítima (V); AMOSTRAS REFERÊNCIA – amostras biológicas (sangue) cedidas pela vítima e pelo principal suspeito (S1).

De acordo com o laudo, os alelos encontrados foram visualizados com auxílio de fluorescência e a razão de verossimilhança foi determinada, não excluindo (S1) como doador das células espermáticas encontradas na evidência biológica. Os resultados são parcialmente apresentados na Tabela 1.

 

Tabela 1 – Tipagens e avaliação dos resultados.

2001 

2.3 – Análise do laudo técnico hipotético

O uso de reações MULTIPLEX empregando corantes fluorescentes associado à detecção automatizada para determinação de alelos STR pela técnica da PCR fornece não só informação qualitativa dos alelos presentes na amostra (tipagem), mas também informação quantitativa referente às intensidades relativas das bandas. Como conseqüência, isto possibilita aferir a quantidade de DNA amplificado (CLAYTON et al, 1998). Com freqüência, é possível separar as contribuições principal e secundária em misturas simples (BAN, 2000; CLAYTON et al, 1998; EVETT et al, 1998) e determinar a presença de “STUTTER BANDS”, bandas extras geradas pelo deslizamento da enzima TAQ POLIMERASE e que apresentam uma unidade de repetição a menos que a verdadeira (GILL et al, 1997). Vale ressaltar que tal artefato de técnica é comum nas reações MULTIPLEX utilizadas neste caso.

No laudo técnico em questão não é mencionada a avaliação dos picos de intensidade (“PEAK AREAS”) das bandas referentes aos alelos identificados. Tal análise é importante para eliminar eventuais interpretações equivocadas dos resultados (BAN, 2000; CHANNELL, 2000; GUTIN et al, 1999; EVETT et al, 1998; GILL et al, 1998) e determinar as freqüências estatísticas considerando-se somente os loci para os quais não há múltiplas possibilidades interpretativas.

Todo o processo envolvido na análise de DNA é importante e a interpretação adequada dos resultados é essencial (MELENDEZ, 2001). As análises estatísticas são utilizadas para interpretar os resultados das genotipagens (SALDANHA, 2001). Quando o teste falha em excluir um acusado como possível contribuinte para uma evidência, deve-se calcular a representatividade estatística do emparelhamento (MELGAÇO, 1998). Este cálculo depende da freqüência dos alelos encontrados em determinado grupo populacional (MONSON e BUDOWLE, 1998; ROEDER, 1994; WEIR, 1996).

A análise de misturas pode ser complexa uma vez que várias combinações de genótipos podem ser consideradas, de acordo com cada situação (CURRAN et al, 1999). Existem diferentes estratégias para tratamento estatístico de misturas (MAIA et al, 2001; SZAKACS, 2001). Embora o tipo de cálculo para determinação da razão de verossimilhança utilizada neste caso seja reconhecida por alguns autores como uma maneira apropriada para interpretar evidências (AIKEN, 1995; EVETT e WEIR, 1998), outros tratamentos estatísticos poderiam ser utilizados para validar os resultados em situações que envolvem misturas de materiais biológicos (SZAKACS, 2001; CURRAN et al, 1999; WEIR et al, 1996). Tais metodologias levam em consideração diferentes hipóteses para construção do perfil alélico em misturas como a encontrada no esfregaço vaginal da vítima.

Considerações finais

Em análises forenses de DNA, os resultados podem incluir ou excluir suspeitos como doadores de amostras encontradas em cenas de crime ou no corpo da vítima. O mesmo acontece quando o propósito do estudo é investigar a existência de vínculo genético, pode-se incluir ou excluir a possibilidade de ocorrência do parentesco analisado. As exclusões não requerem análise estatística desde que sejam absolutas, ou seja, haja diferenças entre as amostras que não justificadas por outra razão. As inclusões, por sua vez, devem ser analisadas estatisticamente, pois é preciso saber a freqüência em que o emparelhamento pode ocorrer.

3. Considerações gerais

Para a aceitação de um trabalho pericial, dois componentes devem ser considerados: a acurácia (validade) e a consistência (reprodutibilidade) das análises. Em análises de DNA, o perito deve informar honestamente as limitações dos testes, quando estas existirem. Qualquer falha entre a coleta de amostras e a divulgação dos resultados pode levar a conclusões equivocadas em exames de DNA.

São recomendações básicas de quesitos para a elaboração do laudo pericial de análise de DNA: identificação do número do inquérito policial ou processo judicial; identificação das partes envolvidas e amostras; informação da etnia (raça) dos envolvidos, quando possível e relevante; citação da metodologia empregada na coleta e armazenamento de materiais e, se necessário, esclarecimento dos cuidados empreendidos para manutenção da cadeia de custódia destes materiais. Em adição, o laudo deve conter informações bibliográficas a cerca das metodologias utilizadas para a extração, quantificação e amplificação do DNA; forma de identificação dos alelos obtidos nos testes e fundamentos empregados para os cálculos estatísticos (CHANNELL, 2000). As freqüências estatísticas utilizadas como base para os cálculos também devem ser mencionadas (US CONGRESS, 1990).

4. Conclusões

O fato de duas amostras terem o mesmo perfil para um grupo de marcadores genéticos em especial não significa, obrigatoriamente, que elas possuam a mesma origem. Quando a tipagem genética de duas amostras é igual, torna-se necessário expressar numericamente a significância deste evento. O número de marcadores empregados, a presença de subestruturas na população e a mistura de amostras podem interferir nos resultados. A expressão estatística dos resultados deve basear-se na presença ou não de misturas de material biológico, como é freqüentemente observado em casos de abuso sexual.

Uma questão fundamental no uso do DNA como evidência é a validação científica dos métodos de análise. Em outras palavras, é preciso ter garantias científicas de que os testes podem inequivocamente identificar inclusões e exclusões para cada marcador genético utilizado. Inicialmente, a credibilidade dos testes deve partir da natureza das amostras biológicas utilizadas. Com freqüência, as amostras são encontradas em superfícies não-estéreis, podendo sofrer danos após contato com a luz solar, microorganismos e solventes. Existem procedimentos que podem minimizar a ação destes fatores de degradação do DNA. Entretanto, muitos cuidados devem ser tomados para evitar equívocos na interpretação. A amplificação pela PCR (reação em cadeia da polimerase) que é largamente empregada nas tipagens genéticas, pode produzir falhas e artefatos quando a qualidade do material biológico está comprometida. Amostras parcialmente degradadas podem proporcionar, por exemplo, a amplificação preferencial de alelos e o surgimento das bandas fantasmas (“stutter bands”). No primeiro caso, tem-se a amplificação de um alelo em detrimento do outro. Isto pode gerar a falsa impressão de se tratar de um indivíduo homozigoto ao invés de heterozigoto para o locus em estudo. Já as bandas fantasmas decorrem de falhas no processo que geram bandas com uma unidade de repetição a menos que a do alelo original. Deste modo, pode-se interpretar equivocadamente o resultado como um falso heterozigoto ou identificar um alelo erroneamente.

Na atualidade, existem tecnologias, como os leitores por fluorescência capazes de dirimir dúvidas e evitar erros desta natureza. Contudo, estes equipamentos são caros e poucos técnicos no Brasil estão capacitados a operá-los. Outro fator importante é a reprodutibilidade dos testes. Em Ciência, é preciso que os resultados sejam passíveis de reprodução para que sejam aceitos como verdade científica. No campo forense, não é incomum a necessidade de repetição das tipagens. Isto pode encarecer o processo, mas não deve ser descartado, principalmente quando o que está sob suspeita é o teste em si.

Para as análises de DNA, diversos quesitos podem ser postulados para a interpretação dos dados, incluindo-se neste ponto a escolha e o uso apropriado das técnicas; as supracitadas freqüências populacionais empregadas para os cálculos e o tipo de análise estatística empregada; os controles de qualidade adotados; a documentação dos procedimentos; a qualidade dos equipamentos e reagentes utilizados e a capacitação técnica dos profissionais envolvidos.

Todas as etapas empreendidas para a tipagem do DNA, desde a coleta até a interpretação do significado estatístico dos dados obtidos, serão consubstanciadas em uma peça pericial escrita que servirá aos interesses de seus leitores. Em instância final, o laudo poderá ainda servir como elemento de convicção para juizes, promotores e advogados nas ações penais.

Cabe a advogados, juizes e a comunidade científica estar atentos ao fato de que os testes absolutamente não são infalíveis, como ocorre com qualquer outra atividade humana. Deve-se implementar no Brasil, conforme já ocorre em outros países, rigorosos padrões de qualidade para garantir a credibilidade de tão importante ferramenta.

 

Referências bibliográficas
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Notas esclarecedoras:
Marcadores STR (“short tandem repeats”) – seqüências que apresentam repetições com unidade básica de 2-7 pares de base e o polimorfismo, assim como nos loci VNTR, também está baseado no número de repetições. Devido ao pequeno tamanho, geralmente menor que 350 pares de base, alelos STR podem ser analisados após amplificação pela técnica PCR.
Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) – A PCR é um método in vitro que sintetiza seqüências específicas de DNA. Esta reação utiliza um DNA que é usado como “molde” (template em inglês) e primers, que são oligonucleotídeos (pequenas seqüências que complementam o DNA), que hibridam com o molde de DNA para que a molécula seja copiada. A copia do molde é catalisada pela enzima Taq polimerase. Uma série de ciclos repetitivos faz com que o molde seja separado em suas hemi-hélices, os primers hibridem com o molde, a polimerase catalise a ligação de nucleotídeos para formar uma nova cópia da região de interesse do DNA. Como cada cópia produzida em um ciclo pode servir de molde no próximo ciclo, a cópia do DNA ocorre de forma exponencial. Em aproximadamente 20 ciclos, a concentração de DNA aumenta aproximadamente um milhão de vezes.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Eduardo Ribeiro Paradela

 

Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Mestre em Biologia (UERJ)
Especialista em Educação
Professor Universitário
Vice-presidente do Colégio FOrense de Gestores e Educadores Biologistas – CFGEB
Treinado em Entomologia Forense pelo COFGEB
Consultor em Genética Forense da Academia Jurídica
Perito Judicial membro da Associação dos Peritos Judiciais do Estado do Rio de Janeiro
Ex-pesquisador associado do Instituto de Biologia da Florida International University (Florida/EUA)
Ex-cientista visitante do setor de DNA do Laboratório Criminal de Palm Beach Couny Sheriff’s Office (Florida/EUA)
Treinado nos EUA em: análises de regiões STR (STR MegaPlex Training) por Virginia Division of Forensic Science e Palm Beach Count Sheriff’s Office
Investigação de cenas de crima (Crime Scene Update) pelo Palm Beach Community College
Análises estatísticas de genotipagens (The analysis of DNA profiles using statistical frequencies to determine the occurrence of profiles in the general population) pelo setor de DNA da Palm Beach Count Sheriff’s Office

 

André Luís dos Santos Figueiredo

 

Bacharel em Biomedicina pela Univercidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Especialista em Genética Humana pela Conselho Regional de Biomedicina
Mestre em Morfologia (Genética Molecular) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Professor Universitário
Secretário Geral do Colégio Forense de Gestores e Educadores Biologistas – COFGEB
Treinado em Entomologia Forense pelo COFGEB
Membro da Comissão Científica de Genética Médica e Molecular da Associação Gaúcha de Biomedicina
Consultor em Genética FOrense da Academia Jurídica, filiado à Associação dos Peritos Judiciais do Estado do Rio de Janeiro

 

Mary Christina Pitta Pinheiro de Souza Melgaço

 

Coordenação Geral de Investigação por Análise do DNA in vivo e post mortem da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro

 


 

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