O monitoramento eletrônico e as relações trabalhistas

A atividade empresarial moderna está inserida em um contexto de extrema competitividade, com demandas crescentes por soluções rápidas e eficazes. O advento e a conseqüente consolidação das tecnologias de informação propiciaram o instrumental necessário para responder adequadamente a estas exigências apontadas. Somado a este fator, observa-se o decréscimo no custo de tais ferramentas, bem como a sua simplificação, permitindo desta forma uma abrangência dilatada de usuários, devido sua maior acessibilidade.


Neste diapasão, o implemento da tecnologia adentrou-se não somente nas linhas de produção, sendo utilizada em todos os setores da empresa. Esta incorporação deu-se de forma irreversível ao ponto de se constatar a dependência de atividades estritamente secundárias da empresa aos meios de informática e à tecnologia da informação em geral.


O correio eletrônico, especificamente, exerce papel imprescindível neste cenário delineado. A comunicação veloz e eficaz que ele propicia, permitindo inclusive a incorporação de diversos documentos digitalizados, enseja benefícios imediatos e um prisma de possibilidades que não podem ser desprezados. Salienta-se ainda o baixo-custo e o alcance que tal meio de comunicação se reveste, acarretando a adesão em massa em todo o ambiente empresarial.


A tecnologia como um todo é apta a fornecer inúmeras comodidades, mas não se pode ignorar que seu uso inadequado pode gerar danos de amplitudes consideráveis. No que tange às tecnologias da informação, desvios de finalidade podem ser facilmente constatados no âmbito das relações de trabalho, sejam no pólo do empregador como no do empregado.


Sob a ótica do trabalhador, o meio de comunicação eletrônico pode ensejar a transmissão de dados sigilosos a competidores, bem como pode ser um mecanismo para a prática de diversos ilícitos, na seara cível e criminal. Em resguardo a esta constatação, o empregador utiliza variados instrumentos para viabilizar o monitoramento das atividades dos seus prepostos.


O chamado monitoramento eletrônico corresponde justamente à consecução dos meios disponíveis de vigilância com emprego de recursos tecnológicos. Este procedimento é plenamente viável quanto às mensagens eletronicamente transmitidas. Basicamente pode-se distinguir o monitoramento eletrônico em duas modalidades de controle. A vigilância pelo controle formal concretiza-se em programas que analisam aspectos externos da mensagem, tais como o destinatário, o título da mensagem e o registro das páginas visitadas. Via de regra, buscam-se palavras-chave que possam indicar nocividade à empresa, ou mesmo indícios de empecilhos à atividade laboral. Podem ser citados como exemplos os filtros, cookies, scripts.


Salienta-se que este meio de controle não incide no conteúdo das mensagens transmitidas, restando estas incólumes. O mesmo não pode ser dito quanto ao controle material, pois neste caso averigua-se o próprio conteúdo da mensagem.


O monitoramento eletrônico ampara-se em diversos fundamentos legais. Primeiramente menciona-se o poder de direção atribuído ao empregador (art. 2º da CLT), visando o controle e direcionamento da atividade desenvolvida pela empresa. Esta diretriz advém do próprio direito de propriedade, vinculando a determinação do uso e da fruição ao seu titular.


A influência da propriedade não se restringe àquela supra mencionada. Para a determinação de sua real abrangência, insta distinguir as duas modalidades de correio eletrônico disponibilizadas em um ambiente de empresa.


O chamado e-mail corporativo consiste no correio eletrônico fornecido pela empresa ao seu preposto. Há uma identificação direta com a empresa devido à adoção de nomenclatura do empregador, o chamado domínio na internet (por exemplo: [email protected]).


Já o denominado e-mail privado é aquele provido por ente alheio ao empregador. Não obstante, o acesso a tal meio de comunicação se concretiza apenas com a utilização da estrutura, do maquinário de propriedade da empresa.


Destarte, o e-mail corporativo pode ser facilmente caracterizado como ferramenta de trabalho, nos termos do art. 458, §2º da CLT, e como tal tem sua função adstrita ao exercício da atividade laboral.


A função da senha e sua respectiva finalidade adquirem relevância neste contexto. A tentativa de descaracterização do e-mail corporativo como ferramenta de trabalho é impulsionada pelo argumento de que a senha fornecida ao empregador teria como propósito a garantia de sua privacidade frente ao seu empregador, bem como a terceiros. Não se pode olvidar o fato de que as senhas, nesta modalidade de correio eletrônico, são criadas e posteriormente fornecidas diretamente pelo empregador aos seus prepostos. O intuito nitidamente perceptível é o resguardo de informações pertinentes à empresa que são transmitidas por tal meio de comunicação, ocorrendo, por conseguinte, a proteção da atividade empresarial desenvolvida em face de terceiros e até mesmo do próprio empregado.


O conhecimento quanto à senha, destarte, decorre logicamente da própria estrutura do e-mail corporativo. Enfatiza-se que posicionamento contrário poderia até mesmo gerar obstáculos consideráveis à realização da atividade empresarial. Basta salientar o transtorno que o impedimento do empregado poderia causar. Seu afastamento, por qualquer motivo, poderia ensejar no mínimo a interrupção do curso normal do trabalho e a ausência de acesso a dados imprescindíveis.


São também fundamentos para a determinação da licitude do monitoramento eletrônico as inúmeras hipóteses legais de responsabilização do empregador pela conduta de seus prepostos. Nesta seara menciona-se o art. 932, III do Código Civil que atribui a responsabilidade objetiva do empregador por fato de terceiro. O tipo penal previsto no art. 241, §1º, III do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à transmissão de material envolvendo pedofilia por meio eletrônico. O crime de violação de direitos autorais disposto no art. 12 da lei 9609/98 também pode ser mencionado.


A atribuição de crime a conduta do empregado que viola segredo profissional (art. 154 do Código Penal) assim como o delito de concorrência desleal (art. 195 da lei 9279/96) da mesma forma incluem-se no rol de legítimos fundamentos para o monitoramento eletrônico.


No entanto, o monitoramento eletrônico pode esbarrar em garantias fundamentais do cidadão, acarretando conflitos que passam a ser observados no Judiciário brasileiro.


Os argumentos formulados contrariamente ao monitoramento residem basicamente na proteção dada pela Constituição ao sigilo das comunicações (art. 5º, XII). Esta proteção constitucional é decorrência lógica de outra garantia fundamental: a privacidade (art. 5º, X).


A fixação da possível antinomia deve ser realizada com cautela. Os supostos óbices constitucionais ao monitoramento eletrônico cingem-se à vedação ao controle material das mensagens. A vigilância desenvolvida por meios de controle meramente formais não atinge a inviolabilidade tutelada pela Magna Carta e, portanto nesta modalidade não há que se falar em conflito de valores constitucionais.


Quanto ao controle material, diversas variáveis devem ser levadas em consideração. Inicia-se perquirindo a natureza jurídica do correio eletrônico. A controvérsia quanto a este ponto é presente na doutrina. Sua caracterização como correspondência torna-se pressuposto essencial para a corrente que pugna pela inviolabilidade de seu conteúdo.


Relevante a consideração de Kildare Gonçalves Carvalho (2004: 390) que assevera:


“Quanto à inviolabilidade de correspondência, embora não haja, quanto a ela, previsão expressa no texto constitucional permitindo seja interceptada, deve-se entender possa ser quebrada naqueles casos em que venha a ser utilizada como instrumento de práticas ilícitas”.


A perspectiva do citado constitucionalista encontra fulcro no princípio da proporcionalidade. Uma norma constitucional não deve prevalecer de forma abstrata e apriorística em relação à outra. Constatada a antinomia, esta se resolve através do princípio da proporcionalidade.


Contudo, a caracterização do correio eletrônico como correspondência não abrange o cerne da questão, podendo até mesmo ser considerada inócua. Mesmo que se repute o correio eletrônico como correspondência, os limites de sua proteção estão determinados na lei 9296/96, que regulamentou o aludido dispositivo constitucional.


O artigo 10 da mencionada lei ordinária estatui: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A exegese da norma aponta a permissividade do monitoramento desde que haja autorização judicial ou se esteja munido por uma finalidade legalmente tutelada. Neste ponto urge o reforço dos inúmeros fundamentos legais apresentados para o monitoramento eletrônico, atribuindo legitimidade ao seu implemento, desde que adstrito aos objetivos apresentados.


O Tribunal Superior do Trabalho manifestou-se quanto ao tema no RR 613, publicado em 10/06/2005. Esta importante decisão reconhece a legalidade do monitoramento do e-mail corporativo. Pertinente a vinculação do monitoramento ao controle realizado “de forma moderada, generalizada e impessoal”. O desvio destes objetivos configura abuso de direito (art. 187 do Código Civil), viabilizando inclusive a reparação civil.


A garantia da inviolabilidade das comunicações nos termos supra descritos funda-se na proteção ao direito à privacidade, como já assentado. Portanto, sua correta definição torna-se imprescindível para a solução do conflito posto. Costumeiramente, aborda-se o tema da privacidade pela delimitação de sua abrangência, deslocando-se do ponto essencial da questão.


Mesmo a doutrina que procede à perspectiva do direito adstrita a sua amplitude reconhece a relativização de seu conteúdo, moldado segundo algumas especificidades. Alexandre de Morais (2000: 74) estabelece os parâmetros para tal restrição:


“Essa necessidade de interpretação mais restrita, porém, não afasta a proteção constitucional contra ofensas desarrazoadas, desproporcionais e, principalmente, sem qualquer nexo causal com a atividade profissional realizada”.


Da mesma forma, pondera José Afonso da Silva (1996: 204) ao distinguir os aspectos da vida da pessoa: “A vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública”.


O conteúdo abrangido pela privacidade é de relevante determinação, entretanto, a limitação a este aspecto foge do núcleo do problema. A privacidade consiste em essência não ao seu conteúdo em si. Refere-se ao poder atribuído ao seu titular de autodeterminar a exteriorização do conteúdo que abrange o próprio conceito de privacidade. O conceito colacionado por José Afonso da Silva (1996: 202) é de precisão irreparável, caracterizando a privacidade como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.


Nestes termos, não se cogita de violação à privacidade pelo simples fato de ocorrer o conhecimento de terceiro quanto a elemento intrínseco à esfera íntima do indivíduo. A ofensa à privacidade exige o cerceamento na faculdade do titular em determinar os destinatários de tais informações[1].


Esta noção aplicada à problemática do monitoramento eletrônico produz efeitos imediatos em sua resolução. Fixa-se a premissa que o e-mail corporativo, como ferramenta de trabalho que é, restringe-se à transmissão de mensagens pertinentes à atividade laboral desenvolvida. Admitido este pressuposto, tem-se que o monitoramento eletrônico é legítimo, pois seu objeto de incidência não alcança conteúdo da esfera privativa do empregado.


Assim, o ambiente proporcionado pelo e-mail corporativo é desprovido de qualquer expectativa de privacidade. O envio de mensagens com conteúdo íntimo não caracteriza violação da privacidade devido a cognição do empregado quanto a natureza do meio de comunicação utilizado. Não ocorreu neste caso subtração ao poder de autodeterminação do preposto como já ressaltado, restando incólume a sua privacidade.


Não obstante a predisposição do e-mail corporativo como ferramenta de trabalho e as já expostas conseqüências advindas de tal imputação, a conduta das partes é elemento idôneo à modificação destas características. O contrato de trabalho demanda que a atuação de seus figurantes seja pautada pela boa-fé. O dever de informação insere-se plenamente neste instituto.


A vedação expressa ao uso particular do e-mail corporativo e a previsão do monitoramento eletrônico de tal meio de comunicação, disposta no contrato de trabalho ou em termo aditivo (art. 444 da CLT), não somente qualifica a conduta do empregador como fiel, mas também torna inequívoco comportamento esperado do empregado.


É notório que o direito do trabalho (material e processual) possui como um de seus princípios regentes o da proteção. A inércia do empregador acrescido de demais variáveis relevantes pode caracterizar sua anuência tácita quanto ao uso particular do correio eletrônico, sendo esta perspectiva reforçada pelo princípio acima apresentado.


A repercussão do aludido aceite tácito modifica a própria natureza do correio eletrônico. Admitida sua utilização para fins alheios à atividade laboral, tem-se criada a legítima expectativa do empregado quanto ao respeito de informações pertinentes à sua esfera íntima, suscitando a necessidade de um ambiente de privacidade. Como não há modo de se aferir aprioristicamente a natureza do conteúdo da mensagem, senão pela sua averiguação, o monitoramento eletrônico (material como já enfatizado) neste contexto deve ser reputado ilícito.


Em síntese, o usuário de e-mail privado detém expectativa de privacidade quanto a este meio de comunicação, ensejando assim a proteção do conteúdo das mensagens transmitidas. Já o e-mail corporativo, a princípio, poderia ser objeto de controle material desde que não caracterizada a aceitação tácita pelo empregador para fins distintos da atividade laboral.


Torna-se assim aconselhável que o empregador proíba o uso do correio eletrônico corporativo para fins diversos. Caso a política da empresa deseje permitir o uso privado, o caminho mais sensato seria a exigência de que as mensagens privadas sejam transmitidas por e-mail privado. Este posicionamento é facilmente realizado tendo em vista os inúmeros provedores que oferecem tal serviço gratuitamente na internet.


De todo modo, optando o empregador a permitir seus prepostos a utilizarem o e-mail corporativo para fins privados, o monitoramento eletrônico somente torna-se sustentável caso se estabeleça um horário rígido para a veiculação de tais mensagens. Neste lapso temporal facultado ao empregado, por consectário lógico, o monitoramento eletrônico é veemente proibido.


Quanto a qualificação das provas obtidas com o monitoramento, a licitude daquelas é determinada pela validade deste. Ou seja, o resultado de um monitoramento validamente realizado (nas hipóteses já devidamente arroladas) pode ser perfeitamente utilizado para a instrução probatória em eventual lide.


A despeito de se viabilizar as provas obtidas pelo monitoramento nas hipóteses acima delineadas, o uso de e-mail corporativo para fins privados não acarreta por si só a possibilidade de rescisão do contrato por justa causa. A jurisprudência tem exigido a demonstração de prejuízo ao desenvolvimento normal do trabalho ou idoneidade dos atos para causarem danos à empresa[2].


As questões envolvendo o monitoramento eletrônico ainda podem ser consideradas incipientes. Somado a este fato, tem-se o envolvimento de um complexo de valores de grande apreço no bojo constitucional, o que acaba por acirrar a controvérsia. Inúmeras decisões judiciárias conflitantes foram prolatadas, cenário este felizmente tende a ser sanado com a já mencionada decisão do Tribunal Superior do Trabalho quanto ao tema. Espera-se a observância deste precedente para que se estabeleça maior segurança jurídica nas relações de trabalho.


 


Referencias bibliográficas

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A correspondência eletrônica do empregado e o poder diretivo do empregador. In: Revista de direito constitucional e internacional. v.40. São Paulo: 2002.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2005.

BELMONTE, Alexandre Agra. O controle da correspondência eletrônica nas relações de trabalho. In: Revista LTr, v. 68, n.9. São Paulo: LTr, 2004.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional 10 ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito a privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: Cadernos de direito constitucional e ciência política. n. 19. São Paulo: 2002.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2000.

PECK, Patrícia. O mau uso da tecnologia e a falta de observância da arquitetura legal geram riscos desnecessários para as empresas. Disponível em: http://www.serpro.gov.br/noticiasSERPRO/200521406. Acesso: 25/08/2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

SOUZA, Mauro César Martins de. E-mail (… net) na relação de emprego: poder diretivo do empregador (segurança) & privacidade do empregado. Kplus. Disponível em: http://kplus.cosmo.com.br.materia.asp?co= 46&rv=Direito. Acesso em: 29/11/2006.

 

Notas:

[1] A título de exemplo menciona-se a seguinte situação: um indivíduo que procede a um diálogo com seu amigo, abordando aspectos de sua intimidade, em um elevador lotado de passageiros não tem sua privacidade violada. Apesar destas informações alcançarem terceiros, este fato ocorreu sem mácula à sua faculdade de autodeterminação.

[2] “Justa causa. Email não caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede ao um único email enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa” (TRT-SP n. 2000034734, rel. Fernando Antônio Sampaio da Silva).


Informações Sobre o Autor

Alexandre Atheniense

Advogado especialista em Direito e Tecnologia da Informação. Sócio de Aristoteles Atheniense Advogados. Coordenador do Curso de Pós Graduação de Direito de Informática da Escola de Advocacia da OAB/S e, Editor do Blog DNT – O Direito e as Novas Tecnologias


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