Sumário: 1- Apresentação. 2- O que a ser o assistente de acusação; 3- Correntes de entendimento acerca do assistente de acusação; 3.1- O assistente como “auxiliar da acusação”; 3.2- O assistente de acusação como interessado à satisfação do dano proveniente do delito; 3.2.1- Da legitimidade do assistente de acusação para requerer a prisão preventiva; 3.2.2- Da legitimidade do ente público para habilitar-se e atuar como assistente de acusação; 3.2.3- Do assistente de acusação como custos legis; 3.3- A não recepção constitucional à legitimidade recursal do assistente de acusação; 3.4- Da inconstitucionalidade do assistente de acusação; 3.4.1- Preliminar constitucional ao fundamento da inconstitucionalidade do assistente de acusação; 3.4.2- Da fundamentação, propriamente dita, à inconstitucionalidade do assistente de acusação.
1- Apresentação.
Crente de que mais vale a formulação criteriosa de uma boa indagação, do que a repetição pronta e acrítica do que se ouve e se diz a esmo, não me arvoro a sugerir respostas a questões que, talvez, mais acertadamente, devam passar antes, pela fase do questionamento dos dogmas postos.
Cada época tem a sua virtude.
Um dado entendimento, forjado numa época anterior, na atual, pode soar como um despropósito. Entretanto ao tempo em que foi concebida, representa um avanço, antes inimaginável.
Tudo está por ser reformulado. Tudo será reformulado. Até o que está por vir.
Esta a marca indelével da História.
O constante evoluir da Humanidade exige que o Direito lhe acompanhe.
Os institutos concebidos em tempos passados, e que hoje criticamos tãs institutos concebidos em tempos passados, e que hoje criticamos t
o questionamento dos dogmas postos.
o veementemente, representaram, em sua época, um progresso expressivo.
Exemplo exato do que se vem a dizer é a prova tarifada. O sistema da prova tarifada representou uma revolução copérnica na forma de tratamento dispensada ao réu. No sistema que lhe antecedia, a “verdade” era extraída, da tortura, das provas (ou provações) de resistência física à dor. Eram os juízos divinos provenientes do sistema das Ordálias.
Se a seu tempo a prova tarifada cumpriu, gloriosamente, o seu papel na evolução do Processo, hoje, entretanto, é vista sob o ângulo óbvio do engessamento e tolhimento à independência do julgador.
Vale dizer, algo que, num dado período da história cumpriu uma função revolucionária e humanística (poder-se-ia até arriscar – na sua época – democrática e garantista!), representa hoje um modelo retrógrado e autoritário.
Este fenômeno acomete a todos os institutos do Direito, aliás, a todos os ramos do conhecimento.
O que se põe é que toda proposição científica necessariamente encontra sentido no seu contexto histórico. Ainda mais no que respeita ao ramo das ciências humanísticas (Humanidades).
Como se pensar numa ciência voltada para o estudo acerca do regramento de condutas, que se faça alheia ao seu cenário histórico, o único apto a revelar os anseios daqueles que serão os destinatários daquelas regras?
No caso do Brasil é preciso contextualizar uma circunstância notável: a espinha dorsal do sistema normativo infraconstitucional penal brasileiro foi forjada numa fase histórica de autoritarismo, ditadura e não-democracia. Hoje, após 1988, com o advento de um novo ordenamento constitucional, surge uma Nova Era, fundada em valores diametralmente opostos aos que lhe antecederam.
O quê e como aproveitar o que foi produzido à égide de uma “era constitucional” tão distinta?
Sempre tendente a divagar abstratamente, sinto que devo, à esta altura, retornar aos trilhos e objetivar a questão:
Hoje, considerando a nova ordem constitucional, e os fins do Direito Penal e, principalmente, do Direito Processual Penal, o ofendido tem lugar neste ramo processual enquanto assistente de acusação?
Se tiver; que alcance sua atuação pode possuir?
Retomando o dizer inicial, não vislumbro respostas prontas a tais indagações.
Embora desconfiado de que a dificuldade em encontrar tais respostas tenha muito mais que ver com o despreparo do articulista, não posso, também, desprezar a circunstância da complexidade inerente ao tema proposto.
É nesta vertente, contudo, que segue o presente trabalho. Sem a pretensão de tratar o tema de forma exaustiva, cobrindo-lhe todos os aspectos, abordo apenas alguns pontos que tenho como mais relevantes para o (re)pensar em torno da questão do assistente de acusação.
2- O que vem a ser o assistente de acusação.
O tratamento legal dispensado ao assistente de acusação vem previsto entre os artigos 268 e 273 do Código de Processo Penal.
Ali não se diz, expressamente, no que se constitui o assistente, qual a razão motivadora do seu ingresso no processo. Embora descreva os casos em que pode intervir, no art. 271, e em outros esparsos, a doutrina, em maioria, entende que seu atuar pode ir além do que consta da letra pura da lei. Por isto buscam os autores responder a tais questões através d’uma leitura sistemática das normas descritoras de sua atuação.
Deste modo é logo de ver-se que a matéria é campo fértil para o labor doutrinário e jurisprudencial.
Em resumo tosco do que se virá a dizer mais amiúde, quatro posições vergastam o tema: uma primeira que vê, no assistente, um auxiliar do Ministério Público, legitimado tão só pela qualidade de ofendido; outra, majoritária, tem que o assistente vai ao processo para preservar seu direito à reparação do dano causado pelo delito; uma terceira posição, sem discordar desta última no que toca à finalidade de sua atuação, a limita aos casos expressamente previstos em lei, além de recusar-lhe qualquer poder de iniciativa à via recursal e, por fim, uma última que tem pela inconstitucionalidade (não recepção) do assistente de acusação com o avento da Constituição Federal de 1988.
Seja como for, às correntes que admitem a sua recepção pelo ordenamento constitucional de 1988, sua atuação dá-se ad aduvandum tantum. No dizer de LAURIA TUCCI “assistente simples”, e TOURINHO FILHO “interveniência adesiva facultativa”1e2.
LAURIA TUCCI àquela ocasião, arrola a titulação que se costuma atribuir ao assistente: “’parte contingente’, ‘parte adjunta’, ‘mero auxiliar’, ou, propriamente assitente”.
SERGIO DEMORO HAMILTON, entende que por não pedir, o assistente não pode ser tido como parte. Seja como parte adjunta ou como secundária, o qualificativo “parte”não lhe cabe. Apenas ator ad coadjuvandum3.
Disto emerge evidente a riqueza do debate em torno da legititimidade (ou ilegitimidade) do assistente, do fundamento que lhe permite ingressar nos autos, suas possibilidade de atuação.
Como já mencionado sobre tais questões gravitam, pelo menos, quatro correntes de entendimento.
É acerca delas que se pretende debruçar.
3- Correntes de entendimento acerca do assistente de acusação.
Neste tópico, a fim de facilitar a identificação das correntes trazidas, utilizarei como título para os subtópicos àquelas expressões que marcam com clareza o principal conteúdo delas e que lhes diferenciam, e, dentro destes haverá ainda subdivisões temáticas de acordo com o momento lógico em que venham a surgir.
3.1- O assistente como “auxiliar da acusação”.
A primeira das correntes de entendimento o vê como mero auxiliar da acusação. É este o sentido do que concebem JOSÉ FREDERICO MARQUES, MAGALHÃES NORONHA e ESPÍNOLA FILHO.
Para o primeiro: “se o ofendido não propôs a ação penal privada subsidiária, nem assim fica ele afastado da acusação, visto que lhe é reconhecido o direito de intervir como assistente em todos os termos da ação penal (artigo 268)”4. Com o meu grifo.
E grifei porque dali já se vê um indício da amplitude de sua atuação nos termos em que concebe esta doutrina.
Diz o autor, a despeito disto: “Intervindo no processo, como assistente, ou promovendo a ação penal privada (principal ou subsidiária), passa ele a ter os direitos processuais subjetivos de parte no processo”. E mais: “Tendo em vista os direitos de ordem processual que são concedidos, em tão larga escala, ao ofendido, cumpre esclarecer que tem legitimação para com essa qualidade funcionar na relação processual como titular de direitos, ônus e deveres processuais”5.
No dizer de MAGALHÃES NORONHA, trata-se de “auxílio à acusação, de reforço ao dominus litis”6.
Principalmente da fala de FREDERICO MARQUES salta o que releva a esta concepção: a amplitude de poderes do assistente.
Segundo estes termos, tais autores dão ênfase à expressão “em todos os termos da ação pública, poderá intervir como assistente”, em detrimento ao elenco do art. 271 do Código. Vale dizer o rol do art. 271 do CPC, para estes autores, é, apenas, exemplificativo, já que pode o assistente “intervir em todos os termos da ação penal”.
É dizer, podem promover atos, independentemente, de estarem, estes atos, vocacionados, exclusivamente, ao interesse patrimonial decorrente do dano provocado pelo delito.
Seu interesse, no processo, coincide com o do Ministério Público, tanto que é tido como “um reforço ao dominus litis”, no sentir de NORONHA.
Em recente julgado (REsp 649665/Ba) o Min. GILSON DIPP do STJ, ressuscitou os fundamentos desta corrente que se encontrava em franco declínio.
Veja-se:
Contudo, em que pese esta importante decisão, o entendimento ali esposado vai na contramão do que concebe a doutrina, em sua larga maioria.
Aliás sobre este ponto, não podemos desprezar a forma leviana com que se produz a jurisprudência neste país.
O julgado anteriormente citado fez-se publicar no DJ de 06.03.2006, á pg. 429.
No DJ do mesmo dia, na página seguinte, o mesmo Ministro verte decisão (Resp.604379/SP) fundamentado em sentido diametralmente oposto ao anterior.
Confira-se a ementa:
Deste modo não há como considerar o primeiro julgado citado como uma mudança de entendimento por parte do STJ.
A jurisprudência e a doutrina, conforme a breve trecho se verá, aponta para o declínio e inaplicabilidade do entendimento preconizado por esta corrente doutrinária.
3.2- O assistente de acusação como interessado à satisfação do dano provocado pelo delito.
Esta a corrente largamente adotada.
Aliás, cabe o parêntese, chega-se ao ponto de ter entendimentos variantes que, contudo, por não contrariar os termos essenciais do conteúdo principal defendido pela corrente em questão, serão abordados como sub-temas por não chegarem a constituir sub-tópico autônomo.
O principal foco desta corrente é que o assistente de acusação tem sua atuação justificada no interesse patrimonial que decorre (quando decorre) da prática delitiva.
Esta questão é de importância tamanha, a ponto de, em função disto, se decidir acerca da sua admissibilidade ou não no processo, bem como a que atos está legitimado, o assistente, a praticar.
Com a excelência que lhe é própria o Professor FERNANDO CAPEZ anuncia:
“Ao habilitar-se como assistente, o ofendido não o faz com o fim de auxiliar a acusação, mas de defender um seu interesse na reparação do dano causado pelo ilícito (ex delicto). Para tanto, a vítima assiste ao Ministério Público no processo penal, mas apenas enquanto meio útil de lograr a satisfação do seu interesse civil, haja vista que, segundo o Código Penal, art. 91, I, constitui efeito genérico da condenação penal tornar certa a obrigação de indenizar o dano, fazendo coisa julgada no juízo cível (CC/1916, art. 1525-CC/2002, art. 935; CPP, art. 63)”7.
Ainda, à mesma página:
“Conquanto seja certo que nenhuma dessas decisões possui o condão de obstar a propositura da ação civil ex delicto, é inegável que, por meio do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, seu interesse será atendido de forma mais eficiente, dada a influência da jurisdição penal sobre a civil”.
Aí está magistralmente sintetizado o entendimento esposado pela corrente em análise.
Entendem os doutos defensores desta posição, que a autorização expressa emergente dos dispositivos acerca da atuação do assistente, ao legitimá-lo aos recursos em casos como os de impronúncia, extinção da punibilidade e sentença final do júri ou do juízo singular, está a revelar o seu interesse em opor-se ao desatendimento ao interesse civil na reparação do dano.
Pela via da interpretação sistemática estaria denunciada a razão propiciatória à participação do assistente na ação penal pública: defender o seu direito à satisfação do dano causado pelo fato delituoso, na medida em que constitui efeito genérico da sentença penal condenatória tornar certa a obrigação de indenizar.
Acompanhando esta conclusão e, embasado mais eruditamente, RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA:
“Para nós, acertada é esta última posição, pois só entendemos legítima a atuação do ofendido como assistente quando configurado estiver o seu interesse em posterior indenização pelo dano sofrido, é dizer, sempre que da infração penal advier prejuízo de qualquer ordem para o ofendido, este estaria legitimado a habilitar-se na qualidade de assistente, para pleitear depois a ação civil ex delicto”8.
A primeira conseqüência que deste entendimento advém, diz com o exame do requisito para que se lhe admita, ou não, ingressar ao processo.
O artigo 272 diz que o Ministério Público será ouvido previamente sobre a admissão do assistente.
Ensina o Professor TOURINHO FILHO que, dentre outras hipóteses, o órgão ministerial deve opor-se à admissão do assistente quando “da prática da infração não emergiu nenhum prejuízo à vítima”9.
Destarte, caso do fato punível não advenha qualquer prejuízo ressarcível ao ofendido, não cabe intervir como assistente à acusação.
Vale anotar que do despacho que não admitir o ingresso do assistente não cabe recurso, sendo o caso de impetração de segurança.
Além desta conseqüência, reverbera outra, não menos importante.
É a de identificar-se (a partir deste prisma do interesse legitimador a atuação do assistente) quais atos pode praticar no curso do processo.
No que concerne ao que dispõe o art. 271, não há maiores controvérsias. Tudo que dali consta, tanto a corrente tratada no tópico anterior, como a do tópico atual, são concordes em afirmar que pode ser praticado pelo assistente.
Noticia TOURINHO FILHO, que a doutrina de ESPÍNOLA FILHO admite que o assistente arrrole testemunhas. Contudo, o próprio TOURINHO acompanhado da maioria da doutrina, conclui pela impossibilidade deste ato à vista de que o assistente só é admitido no processo após o momento reservado ao arrolamento de testemunhas que é o do oferecimento da denúncia. Entretanto, entende o autor, que caso venha o assistente a fazê-lo nada impede que o juiz as ouça como se suas fossem. Ademais, poderia, na fase do art. 499, requerer a oitiva das referidas10.
Nos termos do disposto no art. 271, o assistente pode propor meios de prova, reperguntar a testemunhas, aditar libelo e articulados, participar dos debates e arrazoar recursos. Pode, ainda, ele mesmo recorrer nos casos dos arts. 584, parágrafo 1º, e, 598 do CPP.
Todavia, relembre-se que o pressuposto desta corrente de entendimento repousa no interesse do assistente em preservar seu direito ao ressarcimento do dano. Ora, se é assim, concluem seus defensores, “sempre que houver uma decisão que acarrete prejuízo no campo da satisfação do dano”, “pode o assistente recorrer na hipótese do art. 581, VI e XV, e até mesmo XVIII, e não só nos casos em que seu direito vem reconhecido expressamente”11. Com meu grifo.
É dizer, para esta doutrina, o assistente poderá recorrer, independentemente de previsão expressa, sempre que a decisão a guerrear tiver aptidão de impedir o curso do processo rumo à formação do título executivo judicial penal excutível no cível.
Não lha assistiria, entretanto, o direito ao recurso para o só aumento de pena. Como a condenação, seja em que patamar de pena aplicada for, já viabiliza a sua pretensão de execução no cível do título condenatório penal, não lhe assistiria interesse recursal para o só aumento da pena aplicada.
Deste modo se lhe admite a oposição de embargos declaratórios, carta testemunhável, correição parcial, apelação, extraordinário e especial.
No que toca ao Especial, entendem os autores que à medida em que a Súmula 210 do STF, permitiu ao assistente o Extraordinário, permitiu, também, o Especial pela identidade de razões, e, pelo fato de que à data da edição da Súmula, ainda não havia sido instituído o recurso especial.
Vale a ressalva, encarecida pela voz do Professor EUGENO PACELLI DE OLIVEIRA, no sentido de que o direito de recorrer do assistente só se concretiza caso o Ministério Público permaneça inerte:
“São dois, portanto, os requisitos para a intervenção recursal do assistente: a) a inércia do Ministério Público; b) a natureza da decisão a ser impugnada”11.
A esta altura cabe abrir sub-tópico apartado a fim de tratar de um dado tema que merece, a meu sentir, uma abordagem um tanto criteriosa, a saber; a legitimidade do assistente de acusação para requerer a prisão preventiva.
3.2.1-Da legitimidade do assistente de acusação para requerer a prisão preventiva.
No final do ano de 2005, elaborei texto onde defendia a legitimidade do assistente de acusação para requerer a prisão preventiva.
O artigo foi publicado pelos seguintes sites jurídicos: Jus Vigilantibus em 27.11.2005, Boletim Jurídico em 07.12.2005, Âmbito Jurídico em 30.12.2005, Direito Net em 07.02.2006 e OAB/BA em 07.02.2006, além de publicação impressa na Revista Bonijuris, nº 510, ano XVIII, maio de 2006, à pg. 17.
Este texto foi elaborado em virtude de uma reflexão proposta em torno de algo já pacificado pela doutrina: não caberia ao assistente requerer a preventiva porque, segundo diziam, nenhuma relação poder-se-ia vislumbrar entre a custódia preventiva necessária e o interesse do assistente em preservar seu direito à reparação do dano.
Pois bem uma tal reflexão orientou-me em sentido diametralmente oposto ao que estava sedimentado pela doutrina.
Pelo contrário, quis-me parecer que não só havia esta relação, como por vezes seria necessário – essencial, até – ao assistente interessado tão só na reparação do dano, que a custódia preventiva fosse aplicada, sob pena de aquele interesse legitimador à entrada do assistente no processo pusesse-se fadado ao malogro.
Àquela ocasião valí-me da voz, sempre autorizada, do brilhante Professor FERNANDO CAPEZ como referencial de contraponto sintético da posição doutrinária acerca da qual me vi contingenciado a refletir.
Recorro mais uma vez, portanto, à síntese do Professor:
“O assistente de acusação não pode requerê-la, pois seu interesse se resume à formação do título executivo judicial, com vistas à futura reparação do dano cível”12.
Esta parece ser a posição adotada pala doutrina largamente majoritária, quiçá unânime, acerca da impossibilidade de o assistente vir a requerer a preventiva.
Busco refletir, contudo, se não haveria aí algum contra-senso.
Se esta doutrina vê como fundamento à admissão do assistente de acusação a presença do seu interesse em preservar o seu direito à satisfação do dano emergente do delito, e, se tal satisfação, realizável no cível, dá-se exatamente como conseqüência óbvia da condenação criminal, como negar-lhe medida protetiva capaz de permitir a livre formação do convencimento judicial apta a produzir uma sentença penal condenatória?
É de ver-se que sem uma instrução criminal hígida, do ponto de vista de encontrar-se livre de fraudes e ameaças, é condição sine qua para a formação do convencimento judicial para o seu pronunciamento final.
E, deste pronunciamento final, o juiz pode concluir – ou não – pela hipótese da condenação.
De uma forma ou de outra, há de debruçar-se sobre um acervo probatório idôneo.
Tem, portanto, o assistente – como tem o Ministério Público – o direito de que a instrução criminal faça-se de forma lisa e apta à formação de um tal convencimento.
É de se indagar: se, por exemplo, estejam as testemunhas e/ou os peritos sendo ameaçados ou peitados, isto não poderá comprometer a formação do seu título executivo judicial que consiste na condenação criminal?
Pelas razões postas, faz-se claro que só vislumbro tal legitimidade, no caso de “conveniência da instrução criminal”, na conformidade do que dispõe o art. 312 do CPP.
Sob o mesmo fundamento, e nisto merece reparo o artigo mencionado no início do tópico (não livre de outros reparos), para aditar-se pelo cabimento de medida contra o indeferimento ao requerimento de prisão formulado pelo assistente de acusação com fundamento na conveniência da instrução criminal, que é exatamente o recurso em sentido estrito previsto no inciso V, do art. 581 do CPP.
Assim o que se defende no presente sub-tópico aponta, em realidade, para duas conclusões:
1º- Tem, o assistente de acusação, legitimidade para requerer a prisão preventiva na hipótese de conveniência da instrução criminal;
2º- Tem, também, legitimidade recursal para interpor recurso em sentido estrito, em caso de indeferimento ao seu requerimento de prisão preventiva na hipótese de conveniência da instrução criminal, com fundamento no inciso V, do art. 581 do CPP.
Isto posto, passe-se ao próximo tópico, que abordará a questão da legitimidade do ente público para habilitar-se a assistente de acusação.
3.2.2-Da legitimidade do ente público para habilitar-se e atuar como assistente de acusação.
De logo cabe chamar a atenção para a colocação topográfica do sub-tema no presente trabalho.
Fí-lo inserir dentro do tópico que trata “Do Assistente de acusação como interessado na satisfação do dano provocado pelo delito”.
Evidente que como toda a qualquer pessoa, a pessoa jurídica de direito público, ou mesmo os chamados entes estatais em sentido lato, têm interesses patrimoniais.
E os danos que lhe são injustamente provocados dão ensejo à reparação como ocorre como toda e qualquer pessoa.
É dizer, do ilícito emerge seu direito subjetivo à reparação.
Até aqui, nenhuma particularidade digna de nota.
O que parte da doutrina afirma e que chama a atenção é no sentido de que, por já encontrar-se o Estado presente na ação penal pública em virtude da presença do Ministério Público, não caberia aos entes públicos atuar na qualidade de assistente, pois que isto redundaria numa superafetação.
A doutrina que defende esta conclusão é de suma expressão, já que capitaneada pelo pela voz sempre merecedora de audição, que é a do Professor TOURINHO FILHO.
Em que pese este entendimento, a própria legislação indica para a solução em sentido contrário. Assim o Decreto-Lei 201, no parágrafo 1º do art. 2º, permite aos órgão federais, estaduais e municipais que intervenham como assistentes, conclusão similar é apontada pela Lei 7492/86 que cuida dos crimes contra o sistema financeiro e indica a possibilidade de a Comissão de Valores Mobiliários também intervir como assistente, além do Código do Consumidor (Lei 8078/90) também legitimar, a quaisquer órgãos da Administração e, até mesmo, órgãos de classe, a intervir como assistentes em casos de o processo versar sobre as matérias previstas nestas normas.
Por esta razão, o cabimento de abordagem em apartado do presente tema.
Á questão retórica formulada pelo próprio autor (“Pode o assistente de acusação intervir como assistente?”), este responde:
“A nós nos parece que não. Se o órgão do Ministério Público atua em nome do Poder Público, seria uma superafetação desenssaborida a ingerência da Administração Pública na ação penal pública”13.
Parte não menos importante e, talvez majoritária, da doutrina, insurge-se contra esta conclusão.
À questão proposta por TOURINHO FILHO, responde, a seu modo, PACELLI:
“Assim não nos parece.
O Ministério Público quando atua no processo penal, seja como titular da ação civil pública, seja como cusous legis na ação privada, exerce atividade no interesse de toda a comunidade atingida (potencialmente) pela infração penal, além do interesse individualizado da vítima”.
Acrescenta que: ali encontra-se, “representando o Ministério Público os interesses de toda a coletividade organizada”, ainda que: “a condenação penal poderá gerar conseqüências em outros ramos do direito que não o penal, cuja satisfação poderá ter por juridicamente interessado qualquer pessoa, natural ou jurídica, de direito público ou privado”14.
Exemplificando, ainda este autor, como conseqüência da condenação penal em outro ramo do direito, a repercussão que pode ter a condenação, em, por exemplo, crime de peculato para um Município no que concerne tanto à questão da restituição dos bens, com também no campo de aplicação de pena administrativa de demissão do servidor.
Por esta razão conclui: “Interesse, por fim, totalmente distinto, quanto à finalidades, daquele de que se ocupa o Ministério Público na ação penal”15.
Com toda a propriedade, e, no meu modesto entender, no âmago da questão, que é a circunstância de custos legis do órgão ministerial, RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA:
“(…) os interesses do Ministério Público não são necessariamente coincidentes com os de outros entes públicos, até porque aquele, apesar de ser parte, também tem a obrigação de funcionar no processo como custos legis, obrigação que não se vincularia à Administração Pública quando ofendida diretamente por um determinado delito”16. Grifei.
É desconhecer o perfil do Ministério Público à luz da Constituição de 1988, desprezar a circunstância de que este atua, sempre – inclusive e principalmente no Processo Penal – na qualidade de Curador da ordem jurídica (CF, art. 127, caput), vale dizer custos legis.
Isto jamais se compatibilizaria com a atuação daquele que se faz presente aos autos autorizado apenas por um interesse na condenação (título executivo judicial, capaz de viabilizar a sua pretensão jurídica à reparação civil do dano emergente do delito).
Como será visto em momento posterior, PACELLI entende que o assistente de acusação tem no seu atuar, também, a função de custos legis, ao lado do Ministério Público. Por isto mesmo não poderia orientar sua linha de fundamentação no mesmo sentido em que o fez o Professor RÔMULO, que enfocou, muito apropriadamente a meu sentir, suas razões no que torna imparcial a condição de parte que ocupa o Ministério Público. Entretanto, apesar disto, concordam os supracitados autores na conclusão da admissibilidade do ente público como assistente de acusação sem que isto redunde em qualquer forma de superafetação.
Em realidade esse entendimento do Professor TOURINHO, talvez fizesse-se acertado em época pretérita, quando o Ministério Público era o representante da Fazenda Pública em juízo.
Hoje, por toda a descrição do perfil constitucional do Ministério Público, confirme traçado pelo atual Texto Maior, não é possível atribuir-lhe tal função.
No dizer de VICENTE GRECCO FILHO: “O Ministério Público não representa a Administração”17. Da mesma forma ROGERIO LAURIA TUCCI: “O Ministério Público é parte como órgão (e não representante) do Estado”18. Com meus grifos.
Aliás, a Constituição Federal de 1988 é expressa, explícita, neste sentido. O art. 129, no seu inciso IX, veda, de forma literal “representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
Desta forma, qualquer entendimento no sentido de confundir as atribuições do Ministério Público com as das Procuradorias Judiciais da Fazenda Pública, não encontra amparo constitucional. .
Pelo contrário, topa de frente com vedação constitucional expressa.
Assim sendo, é possível concluir que tal “superafetação” de que fala TOURINHO é impossível de se caracterizar haja vista a vedação constitucional do art. 129, IX, in fine da Carta Magna.
Deste modo parece acertado apontar pelo que, em havendo dano emergente do delito e ressarcível à Fazenda Pública, cabe, sim, a intervenção do Ente Público, representado por suas Procuradorias, como assistente de acusação no Processo Penal.
3.2.3-Do assistente de acusação como custos legis.
Sinto que devo antecipar-me à surpresa do leitor e pedir vênia para explicar porque este sub-tema vem tratado dentro do item 3.2 (“O assistente da acusação como interessado na satisfação do dano provocado pelo delito”) e, não como parte integrante do item 3.1 (“O assistente como auxiliar da acusação”).
Ocorre que, se é verdade no que toca a um certo ponto de coincidência de propósitos na atuação do assistente e do Ministério Público para a primeira corrente, no que tange à segunda corrente, as coincidências são mais freqüentes e mais importantes.
Mais amiúde: a posição agora enfocada, coincide com a primeira corrente apenas no que toca com o interesse do assistente em atuar no processo penal em busca da condenação, independentemente de haver interesse patrimonial em jogo ou não.
Além do mais, conforme se verá mais detidamente e adiante, esta posição não nega que os interesses de ordem extra-penais relevam para fundamentar a atuação do assistente no processo.
E, digo que coincide mais com a segunda corrente, porque no que tange ao alcance de sua atuação, a quais atos está legitimado a praticar, por exemplo, está mais próxima do que concebe a segunda corrente, porque embora permita a prática de menos atos do que autoriza a segunda, se comparada com a primeira a diferença é maior ainda, já que para esta última, o espectro de atuação do assistente é muito mais amplo do que para a segunda.
Pois bem, a posição doutrinária a que me refiro, em suma síntese diz o seguinte:
“Parece-nos inteiramente divorciado da nossa ordenação o entendimento segundo o qual o único interesse da vítima na ação penal pública é a obtenção de título executivo para satisfação de direito civil reparatório. Se assim fosse, porque reconhecer a ele o direito à ação penal quando a via do Juízo Cível estaria também à sua disposição no momento da provocação da jurisdição penal, com a instauração da ação privada subsidiária da pública?”19.
É o dizer do Professor PACELLI, que enfatiza, acerca do interesse do assistente: “Interesse jurídico, sim, na própria aplicação da sanção penal”. (Na mesma fonte).
Nesta mesma toada, VICENTE GRECCO FILHO:
“Há quem sustente que o interesse do assistente é exclusivamente o da reparação civil que advirá da sentença penal condenatória. Isso, todavia, não nos parece correto, porque, se assim fosse, o assistente não poderia intervir se tivesse, por exemplo, já proposto a ação civil de conhecimento, sem aguardar a sentença condenatória, ou se, previamente, renunciasse à vantagem econômica que poderia resultar da indenização. Esses fatos não impedem o ingresso, que tem, portanto, também, um fundamento de interesse público, qual seja o de colaboração com a Justiça pública”.
PACELLI afirma a sua conclusão no sentido da atuação custos legis por parte do assistente ao interpretar a letra do inciso LIX, do art. 5º da Constituição Federal enfatizando que ali se diz “particular” e não “ofendido”, fato este que far-se-ia apto a apontar conclusão no sentido de que “mesmo em relação à questão penal, os atos do poder público devem se submeter a controle pelos administrados”20.
Encarece ainda que, apesar de o assistente ter interesse na correta aplicação da lei penal, não deixa, contudo, de reconhecer que outros efeitos extra-penais podem ser do interesse do assistente, como por exemplo o interesse de determinado Município em valer da condenação criminal, não só para viabilizar a restituição dos bens, mas também a aplicação da pena administrativa de demissão ao servidor21.
De ver que ambos os autores, em desacordo com as afirmações preconizadas pelas duas correntes de que trata este artigo, nos itens 3.1 e 3.2, entendem que o assistente só está legitimado a praticar os atos expressamente a ele autorizados pela lei processual penal 22 e 23.
Quanto a este aspecto confira-se a fala de PACELLI:
“Não se poderia falar em aplicação da regra da analogia, pois tal resultaria em prejuízo do acusado, revelando-se, assim, in malam partem, o que não é admitido em nosso ordenamento penal e processual penal”.
3.3-A não recepção constitucional à legitimidade recursal do assistente de acusação.
O entendimento ora trazido à baila é fruto do estudo, sempre repleto de brilho, do Professor SERGIO DEMORO HAMILTON.
Por conta da redação do art. 129, I da Constituição que afirma competir, privativamente, ao Ministério Público a promoção da ação penal pública, o Professor chega à conclusão de que não mais subsiste legitimidade recursal ao assistente de acusação.
Vale dizer, pode o assistente de acusação arrazoar e contra-arrazoar os recursos, mas a iniciativa de interpô-los só pode ser do órgão ministerial, o único legitimado constitucionalmente para promoção da ação penal pública.
Para este autor está contido no significado da expressão “promover”, o ato de recorrer. Recorrer enquanto ato de reiteração da instância no sentido de JOÃO MENDES, citado pelo próprio DEMORO24.
Vale-se, ainda, este autor, da definição de ELIÉZER ROSA acerca do que venha a ser recurso: “um prolongamento do direito de ação, um prosseguimento do processo de declaração…”25.
Deste modo, por entender o recurso como um ato de promoção da ação penal, não concebe, o Professor DEMORO, que o assistente mantenha legitimidade para fazê-lo à luz da nova Constituição Federal.
Diz o Mestre: “entendo que se o Ministério Público não manifestar recurso, o assistente não mais poderá fazê-lo, pois ambos importam em promover a ação penal pública com eventuais resultados para o imputado”25.
Contra eventual argumento, contrário a sua tese, de que o duplo grau de jurisdição estaria ainda a legitimar o assistente a recorrer, antecipa-se o autor:
“Na hipótese do recurso do assistente, como ocorre com a ação penal originária, foi a própria Constituição Federal que excepcionou a dualidade de jurisdição, diante dos termos peremptórios constantes do art. 129, inciso I.
‘Aliás, no campo puramente processual, nosso Código prevê casos em que ao próprio órgão prolator da decisão recorrida incumbirá o reexame da matéria. É o que se dá, por exemplo, com os embargos declaratórios e com o protesto por novo júri, como observa Tourinho.
‘Portanto, não se pode afirmar, qual um dogma de fé, que o princípio do duplo grau de jurisdição não admite exceção em nosso direito, como salientado no acórdão em comento”26.
Vale ainda acrescentar uma outra ressalva anotada pelo mesmo, no sentido de que, no que concerne à privatividade de promoção da ação penal, “a única exceção admitida ao preceito estatuído no art. 129, I da CF é ditada pela própria Constituição, no art. 5º, LIX, ao admitir a chamada ação privada subsidiária da pública (…). É curial que a Constituição pode excepcionar a si própria”27.
Ademais é digna de referência ainda, a posição do Professor, no sentido de que só pode o assistente praticar aqueles atos que estejam expressamente a ele autorizados. Observe-se que esta conclusão coincide com o entendimento de PACELLI, vertida no sub-item anterior.
Diz DEMORO:
“Na verdade, ele atua no processo ad coadjuvandum, com poderes restritos, e somente pode intervir nos casos em que a lei expressamente autorizar. As hipóteses de sua intervenção vêm delineadas no art. 271 do CPP, agora com as limitações advindas da Constituição Federal de 1988. É bom assinalar, neste ponto, que, segundo penso, a atividade permitida ao assistente pelo art. 271 do CPP deve ser vinculada aos exatos termos da lei, não se admitindo interpretação extensiva ao referido dispositivo legal. Trata-se de norma excepcional, de jus singulare, não permitindo alargamento. Some-se a isto as restrições decorrentes da Carta Política de 1988, vedando os recursos, como já registrado”28.
3.4- Da inconstitucionalidade do Assistente de Acusação.
O presente tópico merece – por assim dizer – um prelúdio.
Prelúdio que lhe sirva de anteparo lógico.
3.4.1-Preliminar constitucional ao fundamento da inconstitucionalidade do assistente de acusação.
Como bem afirma LUÍS ROBERTO BARROSO, “Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico”29. Ocorre que não só a interpretação é produto de um dado contexto histórico, mas, mais do que isso, a própria produção do direito, notadamente no que concerne à principal de suas fontes, que, no caso brasileiro, é a lei, vê-se influenciada, senão determinada, pelo contexto histórico-político da época em que é produzida.
Afinal o que é a lei senão a manifestação, por excelência, d’uma vontade política?
Atente-se para o fato de que, em sede histórico-penal brasileira, quando falamos lei, temos de considerá-la em sentido mais amplo, a abarcar, além da lei em sentido estrito, normas emanadas de órgão monocrático integrante do Poder Executivo, como os Decretos-Lei, que, por mais absurdo que possa parecer, são as fontes primaciais do Sistema Penal brasileiro.
E aqui não parece razoável recorrer-se a técnicas de salvatagem constitucional para afirmar que tais “leis” foram recepcionadas e são, portanto, válidas.
Formalmente isto é verdade, são válidas.
Mas será que é possível fingir esquecimento para considerar-mos ficticiamente que as principais “leis” do Sistema Penal brasileiro, que não são leis, mas Decretos-Lei, passaram pelo crivo de um Poder colegiado e não monocrático, legítima e constitucionalmente, vocacionado a produzir normas jurídicas?
Hoje, a expressão máxima do autoritarismo em matéria de produção normativa encontra correspondência nas famigeradas medidas-provisórias. E, tais, embora constitucionalmente previstas, não podem ser editadas para dispor acerca de direito penal e processual penal conforme os precisos termos do art. 62, parágrafo 1º, I, b, da Constituição Federal vigente.
Num estudo comparativo entre medidas-provisórias e decretos-lei, o Professor UADÍ LAMMEGO BULOS, aponta como aspectos diferenciais entre os institutos, o fato de que os decretos-lei, diferentemente das medidas-provisórias, independiam de aprovação do Congresso Nacional para que se convertessem em lei, não podiam ser emendados, e, mesmo que rejeitados mantinham os efeitos produzidos durante o seu período de vigência. Ainda mais, e pior, podiam ser editados para dispor sobre matéria penal e processual penal30.
Ou seja, o Decreto-Lei nada mais era que um ato monocrático de atropelo ao Congresso Nacional.
Ora, se a medida-provisória, que é um ato que tem sua edição condicionada a critérios muito mais estreitos que o decreto-lei, não pode, por expressa vedação constitucional, versar sobre direito penal e processual penal, como podemos até hoje ter a espinha dorsal do nosso Sistema Normativo Penal fulcrado em espécies normativas forjadas sob os padrões do decreto-lei?
Ainda que se conceba a validade formal da recepção de tais normas, o que se vê, com preocupação, é que as normas editadas sob os padrões dos decretos-lei, vêm sendo interpretadas como valores fundamentais do ordenamento jurídico-penal brasileiro em detrimento dos valores consagrados na Constituição que lhe é posterior.
Parece ocorrer uma inversão na ordem natural das coisas, onde o sistema hierárquico-normativo sofre uma subversão, para que se interprete a Constituição Federal à luz daquela legislação pretérita que em muito discrepa dos valores, hoje, constitucionalizados.
A se considerar a pirâmide hierárquico-normativa de KELSEN, ícone do positivismo jurídico na vertente normativista, onde se tem a Constituição como norma suprema e fonte de validade de todo ordenamento infraconstitucional, parece acertado concluir que as normas infraconstitucionais é que devem se conformar à Constituição Federal, jamais o inverso.
Aliás, esta é a idéia que preside o sistema do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.
Ainda que, através da técnica da recepção, se supere a desconformidade acerca do processo formador da norma produzida à luz de um sistema constitucional anterior, o significado do seu conteúdo não poderá fugir dos parâmetros estabelecidos pela Constituição Atual.
Neste sentido, esclarecedora a lição de LUÍS ROBERTO BARROSO: “Diferentemente se passa quando a incompatibilidade se dá entre a Constituição vigente e norma a ela anterior. Aí, sendo a incompatibilidade de natureza material, não poderá a norma subsistir”31. Grifei.
Assim sendo, se por um lado, a questão da inconstitucionalidade formal é superada pela técnica da recepção, neste caso, o mesmo não se pode dizer da eventual inconstitucionalidade material.
No que toca ao significado do conteúdo da norma anterior, sobre este há de incidir uma releitura de seus termos a fim de adaptá-la ao conteúdo supremo consagrado na Constituição atual. Jamais o inverso.
O que estiver em desconformidade, não merece recepção.
Barroso chama atenção para o fato de que a legislação ordinária pertencente ao regime constitucional anterior, embora recepcionada, “merece leitura e interpretação diversas, quando o novo ordenamento esteja pautado por princípios e fins distintos do anterior”32.
Acrescenta, com ênfase: “Justamente por não se tratar de mero recebimento das normas anteriores, mas de verdadeira recriação de seu sentido é feliz o emprego da palavra ‘novação’, em lugar de ‘recepção’, como faz Jorge Miranda”.
Logo em seguida informa o autor que na síntese de Jorge Miranda:
“a) os princípios gerais de todos os ramos do Direito passam a ser os que constem da Constituição ou os que dela se infiram directa ou indirectamente, enquanto revelações dos valores fundamentais da ordem jurídica acolhidos pela Constituição;
b) As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se conformes com as suas norma s e os seus princípios”33. Com meu grifo.
É decisiva, pois, a influência da Nova Ordem Constitucional sobre a legislação infraconstitucional que lhe antecede.
3.4.2-Da fundamentação, propriamente dita, à inconstitucionalidade do assistente de acusação.
A participação do ofendido no processo penal tem merecido, nos últimos tempos, uma reflexão especial por parte da doutrina.
O Professor AFRÂNIO SILVA JARDIM, de há muito já sentenciava:
“Ousamos asseverar que a manutenção da ação penal de exclusiva iniciativa privada é fruto de uma visão privatística do Direito e do Processo Penal. Somos que o instituto da representação já atenderia aos ponderáveis interesses que se procura tutelar através da ação privada”.
Se é assim, que dizer da assistência à acusação?
Pra quê assistente de acusação?
Se assiste-lhe via própria para a sua satisfação individual (que é o juízo cível), quê lhe cabe fazer no Processo Penal?
Como lhe é próprio, acertadamente verte LÊNIO LUIZ STRECK:
“A manutenção dos artigos 268 e seguintes do Código de Processo Penal, caminha na esteira da admissão, pelo sistema jurídico, de uma acusação sistemática, descompromissada com os interesses da sociedade”35. Com meu grifo.
Talvez inspirado por reflexões deste viés, MARCELLUS POLASTRI LIMA, em momento de rara felicidade da doutrina processual penal brasileira, aponta para a não recepção do instituto da assistência à acusação pelo novo ordenamento constitucional inaugurado em 1988.
Ao analisar o inciso I, do art. 129 da CF conclui o autor:
“O dispositivo constitucional não se refere a privatividade somente para o início da ação penal, e sim, taxativamente, para a promoção da ação penal pública.
‘Ora, a toda evidência que, a contrário do Código de Processo Penal que só garantia ao parquet a promoção inicial (referia-se à denúncia), a Constituição não restringe, abrangendo, assim, toda e qualquer forma de promoção na ação penal pública.”36.
Nomes de peso acompanham uma tal conclusão: SALO DE CARVALHO37, AURY LOPES JR.38 e o já citado LÊNIO LUIZ STRCK39.
AURY LOPES JR.:
“Também entendemos que a participação da vítima no processo penal não deve ser potencializada para evitar uma molesta contaminação pela sua ‘carga vingativa’. Seria um retrocesso à autotutela e à autocomposição, questões já superadas pelos processualistas”40.
Acerca do interesse do assistente à reparação dos danos diz AURY:
“Desvirtua por completo todo o sistema jurídico-processual penal, pois pretende a satisfação de uma pretensão completamente alheia a sua função, estrutura e finalidade”41.
LÊNIO STRECK:
“A própria discussão, que se desenvolve há alguns anos no Brasil, sobre a natureza do assistente de acusação, não tem mais sentido. Dito de outro modo: a polêmica a respeito de ser a figura do assistente um auxiliar da acusação (Frederico Marques) ou deste ter a função de procurar defender seu interesse na indenização do dano ‘ex delicto’ (Tourinho Filho) teve lugar no âmbito de ordens constitucionais totalmente diferentes da atual. Destarte no momento em que uma nova ordem constitucional rompe com os resquícios da privatização do processo penal, cometendo ao Ministério Público o monopólio da ação penal pública, toda a legislação anterior, com ela incompatível, automaticamente está derrogada. Do mesmo modo, a discussão doutrinária, forjada no bojo do sistema anterior, fica sem efeito”42. Grifei.
O Professor MARCELLUS POLASTRI LIMA, positiva o entendimento em função da interpretação dada à expressão “promover”.
“Segundo Aurélio Buarque de Holanda, promover é dar impulso, fazer avançar, e, em sentido jurídico, Rildo T. Souto Maior a define como ‘todo ato de parte tendente a impulsionar o processo… Em suma, todo requerimento, todo o pedido tendente à obtenção de medida que se faz mister ao processo, em defesa dos direitos discutidos, mostra-se uma promoção’”43.
Realmente não parece acertado limitar o alcance da expressão “promover” a exclusivamente iniciar, começar, tão somente; ajuizar, propor.
HUGO NIGRO MAZZILLI, ao tratar da ação civil pública, onde também vige o Princípio da Obrigatoriedade, analisa também a distinção entre as expressões “propositura” e “promoção”:
“O Princípio da Obrigatoriedade ilumina não só a propositura como a promoção da ação civil pública pelo Ministério Público, em cada uma de suas etapas”44. Com meu grifo.
Destarte parece forçado bitolar o alcance do significado da palavra “promoção” a, simplesmente, propositura, mero ajuizamento.
Por tais razões, não parece surgir qualquer outra conclusão logicamente admissível que aponte para sentido diverso que não o da não recepção, pela Constituição de 88, ao instituto da assistência à acusação.
Com o arremate, LÊNIO LUIZ STRECK:
“Além disso, a manutenção da figura do assistente de acusação reforça a antiga tese – que deve ser combatida – do ‘direito penal do autor’, em detrimento do ‘direito penal do fato’”45. Grifei.
Informações Sobre o Autor
Rogerio Theofilo Fernandez
Graduado pela UCSal em 1998, pós-graduado lato sensu pela Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia em 2000, aprovado no concurso para Procurador do Estado da Bahia em 2003, e, especializando em Direito Penal e Processual pela UNIFACS.