Resumo: O artigo em tela aborda a teoria da inexigibilidade de contuda diversa aplicada ao crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, do CP). São apresentados entendimentos doutrinários sobre os institutos, bem como a jurisprudência que acolhe a teoria da inexgibilidade de conduta diversa nos crimes de apropriação indébita previdenciária, sejam como setado de necessidade seja como causa supralegal de exclusão de culpabilidade. Disso resulta que, atualmente, a tese majoritamente aceita é a de que a inexigibilidade de conduta é uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade que pode ser reconhecida pelo magistrado em qualquer fase processual, inclusive, liminarmente.
Sumário: 1. Introdução; 2. Interpretação da norma penal incriminadora; 3. A apropriação indébita previdenciária como crime omissivo próprio; 4. A Apropriação Indébita Previdenciária como crime omissivo próprio com comprovação do dolo genérico; 5. A Apropriação Indébita Previdenciária sob o aspecto das excludentes de culpabilidade; 6. Jurisprudência hodierna acolhedora da tese da inexigibilidade de contuda diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade; 7. Conclusão; 8. Bibliografia.
1. Introdução
Existem milhares de demandas penais distribuídas pelas Seções Judiciárias Federais brasileiras, onde sócios, administradores, ex-sócios, ex-administradores respondem pela prática do crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP).
Em muitos desses processos vemos réus que jamais possuíram a ingerência sobre os procedimentos de inadimplência da pessoa jurídica. Em verdade, em decorrência da crise econômica que aflige alguns setores da econômica, é comum que o administrador da pessoa jurídica se veja obrigado a não pagar os tributos tempestivamente. Aqui vale destacar que a legislação previdenciária não autoriza o parcelamento dos débitos originários de contribuições descontadas dos funcionários (artigo 37, § 1º da Lei n.º 812, de 24 de julho de 1991) – o que, no nosso sentir, acarreta uma inadimplência ainda maior.
Nos casos em que o não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados e não repassadas ao INSS, decorrer da insolvência do devedor, há possibilidade, já reconhecida pela doutrina e jurisprudência, de se afastar a condenação penal através da comprovação de que o devedor está em verdadeiro estado de necessidade.
A doutrina e a jurisprudência denominam tal fato como sendo uma inexigibilidade de conduta diversa, que impõe ao devedor a conduta omissiva de deixar de recolher os tributos devidos.
Para melhor esclarecer o entendimento que vem sendo adotado atualmente nos Tribunais se faz necessário analisar o tipo penal em lume, bem como da doutrina e jurisprudência mais atualizada.
Vale destacar que o presente artigo não pretende inovar, mas apenas, trazer a lume o entendimento mais atual sobre a matéria, bem como uma coletânea de decisões judiciais atuais favoráveis ao réu que responde pelo crime de apropriação indébita previdenciária.
2. A interpretação norma penal incriminadora
A professora Rosangela Slomp (SLOMP, Rosangela. Inconstitucionalidade do crime de apropriação indébita previdenciária – art. 168-A, §, inc. I do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 39-66) explica que existem quatro principais formas utilizadas pela doutrina e jurisprudência para a interpretação da norma que prevê o crime de não-recolhimento de contribuição previdenciária. No presente artigo serão analisadas apenas as três primeiras formas apresentadas pela autora, a saber: a) crime omissivo próprio; b) crime omissivo próprio com comprovação do dolo genérico e c) excludentes de culpabilidade e de antijuridicidade.
A autora explica que: “em razão do recente deslocamento do delito para o Código Penal, hoje inserido no capítulo da apropriação indébita (art. 168-A, § 1º, I), faz-se necessária a análise dessas interpretações de acordo com a época em que foram firmadas. Assim, a partir de 1990, pela edição das Leis n.ºs 8.137/90 e 8.212/91, de pronto, firmou-se a primeira posição no sentido de que ocorrera a ruptura da equiparação com a apropriação indébita, passando o delito a ter conotação de omissivo próprio, caracterizado pela simples conduta de “deixar de recolher”. A segunda posição foi sufragada no sentido de que se tratava de crime omissivo próprio, mas, para sua configuração, exigia-se a comprovação do dolo genérico. A terceira manifestou-se pelas excludentes de culpabilidade e de antijuridicidade, desde que devidamente comprovadas; e a quarta corrente, pela continuidade da equiparação com a apropriação indébita….”
3. A apropriação indébita previdenciária como crime omissivo próprio
Quanto a primeira corrente – crime formal, omissivo próprio – é defendida por pequena parte da doutrina, mas expressiva jurisprudência. Para os adeptos dessa corrente doutrinária as Leis n.ºs 8.137/90 e 8.212/91 criaram tipos novos, omissivos próprios, que não guardam qualquer relação com a figura da apropriação indébita e que se consumam com o simples “deixar de recolher”, independentemente das condições do agente.
A professora SLOMP menciona em sua obra, dois autores que defendem essa linha doutrinária. O primeiro é o Juiz Federal Antônio Corrêa, para quem o delito é formal e omissivo próprio, bastando, para sua consumação, a omissão no recolhimento, “independente do resultado finalista ou do elemento subjetivo do injusto.” (CORRÊA, Antônio. Dos crimes contra a ordem tributária. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, págs. 178-179). O segundo é o também Juiz Federal José Paulo Baltazar Júnior. Para este autor o dolo é genérico e, por isso, não exige o ânimo de apropriação. (BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. O crime de omissão no recolhimento de contribuições sociais arrecadadas. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000, págs. 124-125)
A jurisprudência que acolhe a tese do crime formal e omissivo próprio é farta, conforme segue:
“conduta descrita no tipo penal do artigo 95, letra ‘d’, da Lei n.º 8.212/91, é daquelas contidas no tipo dos crimes omissivos próprios, centrada no verbo nuclear ‘deixar de recolher’. Para a existência do crime que descreve uma conduta negativa, consistindo a transgressão da norma jurídica na simples omissão e não se exigindo qualquer resultado naturalístico, basta que o autor se omita quando deve agir. O dolo é o genérico e está configurado na vontade livre e consciente de descontar dos salários dos empregados os valores correspondentes à contribuição previdenciária e deixar de recolhe-las à Previdência Social, sendo desnecessário demonstrar a inversão da posse ou o animus rem sibi habendi, já que não são elementos subjetivos do tipo” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Habeas Corpus n.º 96.04.01987-2/RS. Relatora: Juíza Tânia Escobar. 20 de março de 1996. In: DJU 20.03.1996, p. 17.104)
“…o responsável por empresa que não recolhe as contribuições previdenciárias descontadas dos salários de seus empregados infringe o disposto no art. 95, alínea d, da Lei n.º 8.212/91, não lhe socorrendo a alegação de dificuldades financeiras ou de boa-fé, porque se trata de crime formal omissivo, que se consuma com a omissão ou retardamento no recolhimento da contribuição.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 96.04.15933-0/SC, Relator: Juiz Carlos Sobrinho. In: DJU 06.11.1996, p. 84.796)
“É inadmissível a alegação de dificuldades financeiras posteriores como justificativa para o não-recolhimento oportuno das contribuições previdenciárias, descontadas dos salários dos empregados das empresas. O dinheiro descontado do salário dos empregados, com relação à Previdência Social, não pertence ao empresário, também não podendo ele utilizar-se desse dinheiro para qualquer outra finalidade que não seja o pagamento das contribuições previdenciárias.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Criminal n.º 97.03.066449-0/SP. Relator: Desembargador Federal Casem Mazloum. Relator designado para o acórdão: Desembargador Federal Oliveira Lima. 26 de maio de 1998. In: DJU 28.06.1998, p. 158)
“…A existência de protestos cancelados, por dívidas advindas no mesmo período do não-recolhimento, espelha a opção de pagamentos feita pelo réu, deixando de lado as contribuições previdenciárias, denotando-se, portanto, que a parcela retida dos salários dos empregados e que deveria ter sido recolhida aos cofres do INSS foi desviada para outros fins, entre eles a quitação dos títulos sob protesto, descaracterizando, por outro lado, a alegação de dificuldades financeiras.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 97.01.43416-2/RS. Relator: Juiz Fábio Bitterncourt da Rosa. 08 de setembro de 1998. In: DJU 23.09.1998, p. 510)
“…Na ausência de provas amplamente demonstrativas de invencíveis dificuldades financeiras da empresa-contribuinte, supõe-se ter havido uma priorização de pagamentos de débitos, restando descaracterizada a excludente de inexigibilidade de conduta diversa. (…) A determinação de prova pericial, a fim de apurar as dificuldades financeiras da empresa, é simples faculdade do juiz, mas a demonstração das apontadas dificuldades é ônus da defesa, nos termos do art. 156 do CPP (…). É descabida a pleiteada extinção da punibilidade pelo pagamento do débito, se não há prova de quitação ou de parcelamento da dívida em momento anterior à instauração da ação penal. O contribuinte só se exime do recolhimento das contribuições de lei em prejuízo da receita pública em casos excepcionalíssimos, quando a prova documental é incontestável e amplamente demonstrativa da invencíveis dificuldades financeiras da empresa, o que não restou evidenciado.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 97.04.60065-8/RS. Relator: Juiz Gilson Dipp. 23 de junho de 1998. In: DJU 23.09.1998, pp. 508-509)
“…Omissão no recolhimento de contribuição previdenciária. Lei n.º 8.212/91, art. 95, d. Dívida civil. CF art. 5º, LXVII. Pacto de São José da Costa Rica. Crime continuado. CP, art. 71. Prova. Perícia. CPP, art. 158. O crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias é reprimido no Brasil desde 1937 (DL 65) e sua prática importa em prejuízos à Previdência Social com significativo reflexo nos que dela se utilizam, em especial as classes economicamente menos favorecidas. Criando o legislador um tipo penal específico, apenado com severidade (Lei n.º 8.212/91, art. 95, d), não há ofensa à CF ou ao Pacto de São José da Costa Rica, que tratam de situações diversas, ou seja, proíbem prisão por dívida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 1ª Turma. Apelação Criminal n.º 96.04.41825-4/SC. Relator: Juiz Vladimir Freitas. In: DJU 11.03.1998)
“…Incumbe ao réu a demonstração inequívoca da existência de dificuldades financeiras justificadoras da impossibilidade de recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados. A mera referência genérica a dificuldades de caixa pro parte da empresa não possibilita o afastamento do dolo do agente, tampouco dá ensejo à incidência de causa supralegal de exclusão da culpabilidade, escorada na teoria da inexigibilidade de conduta diversa. Materialidade e autoria comprovadas.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Criminal n.º 97.03.088160-2. Relator: Desembargador Federal Casem Mazloun. 09 de junho de 1998. In: DJU 21.07.1998, p. 190)
“Penal. Não-recolhimento de contribuições previdenciárias. Art. 95, letra d, da Lei n.º 8.212/91. Adimplemento dos débitos após o recebimento da denúncia. Ausência de prova de dificuldades financeiras. Fixação da pena. 1. O pagamento dos débitos para com a Previdência, como causa extintiva da punibilidade, deve ser firmado antes do recebimento da denúncia, o que inocorreu na espécie. 2. Indemonstradas as alegadas dificuldades financeiras, não há como admitir-se a exclusão de ilicitude do fato narrado na inicial acusatória. 3. Materialidade delitiva fartamente comprovada nos autos através dos documentos emitidos pela Administração. 4. Aplicada a pena no mínimo legal, descabe qualquer redução por força de circunstância atenuante. 5. Apelação improvida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 95.04.27408- 0/RS. Relatora: Juíza Maria de Fátima Freitas Labarrère. Porto Alegre. 27 de agosto de 1996)
Aqui é importante ressaltar que a jurisprudência, mesmo indicando que o crime de apropriação indébita previdenciária ocorrerá desde que não seja efetivado o recolhimento da contribuição previdenciária, admite que o contribuinte inadimplente apresente as razões que o levaram a inadimplir a obrigação tributária.
É importante frisar que a jurisprudência acima transcrita aceita que a demonstração inequívoca da existência de dificuldades financeiras acarrete a conseqüente possibilidade de afastamento do dolo do agente ou, até mesmo, enseja à incidência de causa supralegal de exclusão da culpabilidade, fulcrada na teoria da inexigibilidade de conduta diversa.
Neste diapasão, deve-se concluir que mesmo para aqueles que acolhem a tese de que a apropriação indébita previdenciária é crime formal e omissivo próprio, admitem a aplicação da teoria da inexigibilidade de contuda diversa, como verdadeira causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Nos próximos itens serão analisadas as demais correntes igualmente ensejadoras da aplicação da teoria da inexigibilidade de conduta diversa.
4. A Apropriação Indébita Previdenciária como crime omissivo próprio com comprovação do dolo genérico
Quanto a segunda corrente – crime omissivo próprio, mas que exige a comprovação do dolo genérico, sem o qual se torna atípico -, a professora SLOMP destaca que, nos últimos anos, tem sido utilizada, com um pouco mais de freqüência pela jurisprudência.
Os estudiosos adeptos dessa corrente doutrinária afirmam ser o crime de apropriação indébita previdenciária um crime omissivo próprio, que se consuma com a omissão de deixar de recolher, mas exige a comprovação do dolo genérico, sem o qual o crime não acontece. Afirmam que, desde o advento da Lei n.º 8.137/90, que as condutas que constituem crimes contra a Previdência Social só podem ser puníveis se forem praticados com a vontade livre e consciente de lesar o Fisco, ou seja, com a deliberação de produzir o resultado lesivo.
O Juiz Federal Celso Kipper traz ponderações relevantes sobre o tema:
“A primeira conseqüência da estrutura omissiva do tipo do delito de não-recolhimento das contribuições arrecadadas dos segurados, e da não-equiparação ao crime de apropriação indébita, é a de que não se exige para a consumação do primeiro o animus rem sibi habendi, ou seja, o propósito de inverter o título da posse passando a possuir a coisa como se fosse sua, com a deliberada intenção de não restituir, própria da acepção do vocábulo apropriar-se, elemento integrativo do tipo penal do segundo delito. Havendo o desconto dos empregados das quantias relativas à contribuição previdenciária, e a posterior omissão no seu recolhimento aos cofres da Seguridade Social, consuma-se o delito, sem que seja preciso investigar, no animus do agente a intenção de restituir ou não as quantias descontadas. O dolo necessário é o genérico, consistente na intenção de descontar do salário dos empregados as quantias referidas e de deixar de repassa-las à Seguridade Social.
A segunda conseqüência da estrutura omissiva do delito em questão diz respeito a sua própria tipicidade. (…)
A impossibilidade de atuar conforme determinado pela norma exclui, portanto, nos delitos omissivos, a própria omissão, e, em conseqüência, a tipicidade do delito, pois não há de se falar em fato típico se não há ação (rectius: omissão) típica, propriamente dita.” (KIPPER, Celso. Breves considerações sobre o não-recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. Revista dos Tribunais, n.º 694. São Paulo, ago./1993, pp. 283-284)
Já o professor Juary C. Silva esclarece que a mera omissão inqualificada por qualquer outro elemento subjetivo, não deve possuir relevância penal. Vejamos a lição do autor:
“…pode-se afirmar que no Direito Penal Tributário a omissão não é apenada em si mesma, como conduta naturalística, mas sim sempre sob coloração normativa, isto é, jungida a dados elaborados em outros ramos do Direito, ou a elementos normativos ou fáticos colhidos em outras normas, ou no próprio Direito Penal Tributário tudo como preconiza a teoria normativa da culpabilidade. Daí se dessume que no Direito Penal Tributário a simples omissão, isto é, o mero não-fazer, inqualificado por qualquer outro elemento, não ostenta relevância penal.
À vista do exposto conclui-se que a omissão recebeu na Lei n.º 8.137/90 tratamento inteiramente atécnico e anti-sistémico, destinado não a clarificar a questão – que é das mais difíceis na dogmática penal -, porém a enredar casuisticamente o contribuinte e a intimidá-lo, por meio da criação de fatispécies penais propositalmente vagas, em que a omissão simples, dissociada do elemento subjetivo, possa dar margem a processo criminal.” (SILVA, Juary C. Elementos de Direito Penal Tributário. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 120)
Edmar Oliveira Andrade Filho defende com excelência que para penalizar uma conduta se faz necessário observar se o agente agiu com dolo. Para o autor o agente que declara – através das obrigações tributárias acessórias – que existem débitos previdenciários, não pode ser penalizado pela inadimplência. Vale transcrever as palavras do autor:
“…os crimes contra a previdência social requerem existência de dolo, assim entendida a vontade deliberada de esconder, de subtrair da atenção do sujeito ativo os fatos jurídicos tributários. Por isso, aquele que não recolhe a contribuição descontada pode não estar sujeito à penalidade se mantém registros e assentamentos adequados e informa ou confessa o débito ao sujeito ativo, pela simples razão de que essa conduta é incompatível com o dolo que a figura penal requer. Logo, o propósito da lei é atingir aquele que, mediante fraude, frustra o cumprimento da obrigação tributária e não aquele que passa por agruras financeiras. Por isso, só haverá crime contra a previdência social se houver dolo comprovado e não meramente presumido.” (ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito Penal Tributário. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1997, págs. 64-66)
A professora Misabel Abreu Machado Derzi também destaca a necessidade de existir um dolo subjacente ao desconto da contribuição. Vejamos a lição da autora:
“Os crimes contra a ordem tributária (entre os quais se incluem a sonegação e a apropriação indébita) são dolosos. A sonegação, sempre pressupõe a fraude, ou seja, a vontade consciente de lesar o fisco (dolo), ao lado da prática de atos ou omissões que objetivam ludibriar, enganar ou ocultar o fato tributário à Fazenda Pública. A apropriação indébita sempre pressupõe o prévio desconto ou cobrança do tributo devido de terceiros, com a intenção consciente (dolo) de não recolhe-los aos cofres públicos. Nenhum deles é mera fuga ao pagamento, simples não-recolhimento total ou parcial de tributo devido.” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade do injusto no Direito Penal Tributário. Revista de Direito Tributário, n.º 63. São Paulo, 15-17 set./1993, p. 223)
Paulo José da Costa Jr. (COSTA JR, Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações Tributárias e Delitos Fiscais. São Paulo: Saraiva, 1998, págs. 132-136) destaca que o delito de apropriação indébita previdenciária é formal. Na mesma linha é o entendimento do professor Rui Stoco (STOCO, Rui. Sonegação fiscal e os crimes contra a ordem tributária. Revista dos Tribunais, n.º 675, São Paulo, jan./1992, p. 347) Os professores Roque Antônio Carrazza (CARRAZZA, Roque Antônio. A extinção da punibilidade no parcelamento de contribuições previdenciárias descontadas, por entidades beneficentes de assistência social, dos seus empregados, e não recolhidas no prazo legal. Questões conexas. Revista dos Tribunais, n.º 782, São Paulo, jul./1996, nota 11, p. 438) e Hugo de Brito Machado (MACHADO, Hugo de Brito. Direito Penal Tributário contemporâneo: estudos de especialistas. São Paulo: Atlas, 1996, págs. 50- 51) asseveram que o fato de o contribuinte escriturar, em sua contabilidade, os valores a serem pagos ao Instituto de Seguridade Social, comprova a ausência do elemento subjetivo do tipo penal, que é o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente do agente de se apropriar de coisa alheia móvel, de que tenha a posse ou a detenção.
A jurisprudência acolheu o entendimento de que as dificuldades financeiras acarretariam uma falta de dolo, com o conseqüente reconhecimento da atipicidade do delito. Para a jurisprudência, portanto, a crise financeira não é uma excludente de culpabilidade, mas, sim uma falta de dolo, conforme demonstram algumas decisões abaixo transcritas:
“Penal – Omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias. Prova razoável da dificuldade financeira de repassar os valores. Absolvição por exclusão de culpabilidade reformada para absolvição por falta de prova do dolo. (…) Ora, à luz de tais dados, ademais da proposta de pagamento por parcelamento já deferido, tenho que não se evidenciou qualquer propósito delituoso de ofender a ordem jurídico-penal tributária e os bens jurídicos referidos na denúncia. Apesar disso, não avanço ao ponto de reconhecer a ‘inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade’ pois que tanto não se demonstrou-o suficientemente como existem soluções econômico-financeiras apropriadas (a exemplo do que referiu A. Pargendler no aresto em foco), afastando assim a hipótese mencionada. O que há é simples falta de prova do dolo do agente.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 1ª Turma. Apelação Criminal n.º 95.04.345530/RS. Relator: Juiz Volkmer de Castilho. Porto Alegre, 04 de junho de 1996. In: DJU 19.06.1996, p. 42.156)
“Penal – Não-recolhimento de contribuições previdenciárias – Lei n.º 8.137/90, art. 2º, inc. II, Lei n.º 8.212/91, art. 95, ‘d’ – Crime de omissivo/apropriação indébita – dificuldade financeira – atipicidade: (…) 4. Na hipótese de a empresa pagar salário sem descontar tributo por dificuldades financeiras, não se há de invocar ausência da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, mas sim ausência de tipicidade porque o legislador somente admitiu a argüição de inexigibilidade de conduta de recolher o que foi descontado, não a inexigibilidade da conduta de descontar do salário.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 95.04.27412-9/RS. Relator: Juiz Dória Furquim. 7 de março de 1996. In: DJU 02.05.1996)
“…Havendo prova eloqüente de que enfrentava ingentes dificuldades financeiras que o levaram a perder as máquinas da micro-empresa e o ponto; morando em pequena casa de aluguel; levando-o a tirar os próprios filhos de escola particular para escola pública, entende-se demonstrada a impossibilidade de recolhimento das contribuições previdenciárias arrecadadas de seus empregados. Em tais condições, evidencia-se a inexistência de comportamento doloso, constituindo-se constrangimento ilegal a condenação do acusado. ‘Habeas Corpus’ de ofício que se defere para decretar-se a absolvição do réu.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Criminal n.º 1.495/CE. Relator: Juiz Castro Meira. 02 de maio de 1996. In: DJU 31.05.1996, p. 36.970)
“Penal – Não-recolhimento de contribuições previdenciárias – Lei n.º 8.212/91, art. 95, ‘D’ – dificuldades financeiras comprovadas/inexigibilidade de conduta diversa. Analisando-se as circunstâncias concretas que comprovam as dificuldades financeiras do devedor, impossibilitando-0 de agir de modo diferente, tem-se como atípica a conduta do agente, face à ausência de dolo.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n.º 95.04.06385-3/RS. Relator: Juiz Luiz Carlos de Castro Lugon. Porto Alegre, 25 de abril de 1996. In: DJU 03.06.1996)
“Penal. Processual. Apropriação indébita de contribuições previdenciárias. Alegação de violação à Lei n.º 8.212, art. 95, ‘d’. Inocorrência. Ausência de elemento subjetivo do tipo. Fato atípico. 1. Para a caracterização do delito previsto na Lei n.º 8.212/91, art. 95, ‘D’ é imprescindível a existência do elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade de apropriar-se indevidamente dos valores devidos à previdência. 2. Se os fatos narrados na denúncia não apontam a existência do elemento subjetivo, a conduta descrita é atípica.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. Recurso Especial n.º 113.964/PE. Relator: Ministro Edson Vidigal. Brasília, 20 de outubro de 1998. In: DJU 23.11.1998 p.188)
“Recurso Especial. Penal e Processual. Não recolhimento das Contribuições Previdenciárias. Parcelamento do débito antes da denúncia. Dolo. Ausência. Fato atípico. 1. Para a configuração do crime disposto no artigo 95, alínea “d”, da Lei nº 8.212/91, é imprescindível a existência do elemento subjetivo do tipo, qual seja a vontade de fraudar a previdência, apropriando-se dos valores recolhidos. 2. Recurso conhecido e improvido.” (BRASIL. Tribunal Superior de Justiça. 6ª Turma. Recurso Especial n.º 165.908/PB. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília, 19 de outubro de 2000. In: DJU 05.02.2001 p. 132)
“Penal. Processual. Apropriação Indébita de Contribuições Previdenciárias. ‘Habeas Corpus’ deferido para trancar a ação penal. Alegação de violação a Lei 8.212, art. 95, ‘D” e ao CPP, art. 41 e 43, III. Inocorrência. Ausência de elementos subjetivo do Tipo. Fato Atípico. 1. Para caracterização do delito previsto na Lei 8.212/91, art. 95, ‘D’ é imprescindível a existência do elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade de apropriar-se indevidamente dos valores devidos a previdência. 2. Se os fatos narrados na denúncia não apontam a existência do elemento subjetivo, a conduta descrita é atípica. 3. Recurso não conhecido.” (BRASIL. Tribunal Superior de Justiça. 5ª Turma. Recurso Especial n.º 79.183/PE. Relator Ministro Edson Vidigal. Brasília, 21 de outubro de 1997. In DJU 24.11.1997 p. 61261)
“Penal. Apropriação de Contribuições Previdenciárias. – Lei 8.137/90, art. 2º, II. Reiterada orientação pretoriana posta no sentido da atipicidade de tal apropriação, na ausência do chamado ‘animus rem sibi habendi’. (BRASIL. Tribunal Superior de Justiça. 5ª Turma. Recurso Especial n.º 137.203/PB. Relator: Ministro José Dantas. Brasília, 15 de setembro de 1998. In: DJU 13.10.1998 p. 151)
É necessário observar que os adeptos desse entendimento, asseveram que a inexigibilidade de conduta diversa que macula a intenção do agente descaracteriza o dolo. Entendem os autores acima mencionados que o agente premido pela situação financeiro precária não age livremente, logo não há intenção livre e consciente.
Neste sentido, como o dolo é elemento subjetivo do tipo, para esses autores, afirmam que a conduta de não recolher a contribuição previdenciária é atípica, inexistindo crime.
5. A Apropriação Indébita Previdenciária sob o aspecto das excludentes de culpabilidade
Quanto a terceira corrente – excludentes de culpabilidade e a inexigibilidade de conduta diversa – é importante destacar que os autores situam o delito de não-recolhimento de contribuição previdenciária no campo penal dos conceitos de estado de necessidade, como excludente da antijuridicidade e da inexigibilidade de conduta diversa, como excludente de culpabilidade.
Segundo a professora SLOMP (SLOMP, Rosangela. Inconstitucionalidade do crime de apropriação indébita previdenciária – art. 168-A, §, inc. I do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 54-55), foi novamente o Juiz Federal Celso Kipper o primeiro a escrever sobre o tema e a levantar a possibilidade de aplicação das teses excludentes para o delito de não-recolhimento de contribuição previdenciária, ensinando:
“Se o recolhimento das contribuições previdenciárias for possível, embora à custa do não-pagamento dos fornecedores e de despesas essenciais ao prosseguimento das atividades da empresa (água, luz, telefone, aluguel, etc.), o delito existirá, mas poderá configurar-se uma excludente de culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa, que isenta o agente de pena.” (KIPPER, Celso. Breves contribuições sobre o não-recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. Revista dos Tribunais n.º 694, São Paulo, ago.//1993, p. 284)
A professora Rosangela SLOMP apresenta o raciocínio do autor Andréas Eisele:
“Andréas Eisele também admite as situações excludentes na hipótese de não-recolhimento de valor de tributo, quando o agente justifica a conduta em face da situação conjuntural econômica.
Exemplifica o estado de necessidade quando o não-recolhimento da receita tributária se verifica por absoluta impossibilidade econômica, devido à precária situação da gestão empresarial, que possui passivo superior ao ativo ou falta de liquidez por longo período, evidenciando estágio preliminar de concordata ou falência, hipótese em que, se a situação não for decorrente de gestão fraudulenta, a omissão nos recolhimentos configura verdadeiro estado de necessidade. O agente, diz ele, neste caso, opta entre encerrar a atividade ou pagar o tributo; entre a lesão a um bem para a proteção de outro. Já a situação de inexigibilidade de outra conduta é tida pelo referido autor como a mais comum, acontecendo quando o agente dispõe de numerário para pagar os salários ou fornecedores, sem, entretanto, ter disponibilidade para suprir igualmente a obrigação tributária.
A distinção entre os dois institutos está na intensidade das dificuldades financeiras da empresa. Se a falta de liquidez for esporádica e o tributo inadimplido tiver a finalidade de suprir a folha de pagamento, estaremos frente a uma causa de exclusão de criminalidade (inexigibilidade de conduta diversa). Se, entretanto, a dificuldade financeira for constante e profunda o suficiente a ensejar a concordata ou falência da empresa, a questão é de exclusão da ilicitude (estado de necessidade).” (SLOMP, Rosangela. Inconstitucionalidade do crime de apropriação indébita previdenciária – art. 168-A, §, inc. I do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 55)
Neste sentido, é possivel entender que a conduta descrita no artigo 95, alínea “d” da Lei n.º 8.212/91, hoje consignada no artigo 168-A do Código Penal, alterado pela Lei n.º 9.983/2000, é considerado pela doutrina e jurisprudência, crime omissivo puro (ou próprio, pois decorre de simples omissão: “deixar de recolher”) e formal (o legislador não exige qualquer resultado considerar praticado o crime). Neste sentido, o delito estampado no caput do artigo 168-A do Código Penal, independente de um resultado naturalístico para sua consumação – logo, o simples não recolhimento já tipifica a conduta proibida pelo legislador, independente do resultado mais ou menos gravoso ocasionado aos cofres públicos.
Seguindo o raciocínio acima, é fácil perceber que não existe a forma culposa. No delito em questão, portanto, se faz necessário a presença do dolo (elemento subjetivo do tipo que consiste na vontade livre e consciente de não recolher a contribuição previdenciária arrecadada dos empregados).
Para confirmar que a possibilidade de argüição da tese de defesa fulcrada na inexigibilidade de conduta diversa do agente, é interessante trazer à colação a lição do professor Aníbal Bruno (Direito Penal – Parte Geral. Tomo 2º. Editora Nacional de Direito. Rio de Janeiro, 1956, p. 483), in verbis:
“(…) Não se pode considerar um ato juridicamente reprovável quando praticado em circunstâncias tais que tornam não exigível uma conduta conforme o Direito. Nem reprovável, nem, portanto, culpável, desde que a culpabilidade se define como reprovabilidade. O juízo de reprovação sobre o ato só é legítimo até onde se pode exigir do agente um comportamento de acordo com a norma, e aí se traça um limite ao julgamento de culpabilidade pelo fato antijurídico e típico. Conclusão que não constitui somente uma exigência lógica, de sistema, imposta pela definição da culpabilidade como reprovabilidade, mas responde ainda a essa espécie de apelo da consciência jurídica atual por um ajustamento mais humano da prática punitiva à realidade dos fatos da vida e a um sentimento e a um sentimento mais flexível da justiça.
Cabe admitir a não exigibilidade de conduta diversa como o caráter de causa geral de exclusão da culpabilidade em qualquer das suas formas, dolo ou culpa. Tal princípio está realmente implícito no Código e pode aplicar-se por analogia, a casos semelhantes aos expressamente previstos no sistema. Na realidade são casos de verdadeiras lacunas na lei, que a analogia vem cobrir pela aplicação de um princípio latente no sistema legal. É a analogia in bonam partem, que reconhecemos como tendo aplicação no Direito Penal.
A razão da não exigibilidade atua primeiramente no espírito do legislador, levando-o a enumerar expressamente na lei hipóteses dessa espécie sob a forma de causa de exclusão da culpabilidade e algumas vezes dando-lhes mesmo expressão mais enérgica de causa de exclusão do ilícito, como no estado de necessidade do nosso Código. Para alguns autores, essa influência pré-legislativa seria a única função do princípio da não exigibilidade, que não teria ação alguma dentro do domínio do Direito constituído. Mas, embora em sistema penais como o nosso esta ação pré-legislativa seja função capital do princípio, não deixa ele de poder agir fora dos casos que a lei específica, funcionando, segundo as circunstâncias, como causa geral de exculpação.
Geralmente, estes casos de não exigibilidade de conduta diversa se resolvem em situações de necessidade, embora não se revistam daquelas condições que excluem, segundo a lei, no estado de necessidade, a ilicitude do fato. A razão da não exigibilidade cobre precisamente aquêles casos que a ausência dessas condições particulares impede que se classifique como o estado de necessidade do Código.
A não exigibilidade de conduta diversa supõe que a ocorrência excede a natural capacidade humana de resistência à pressão dos fatos, pois se o Direito não impõe heroísmos, reclama uma vontade anticriminosa firme, até o limite em que razoavelmente pode ser exigida de um homem normal.
Com todas essas reservas, porém, a não exigibilidade vale por um principio geral de exclusão da culpabilidade, que vai além das hipóteses tipificadas no Código e pode funcionar também com este caráter nos casos dolosos em que de fato não seja humanamente exigível comportamento conforme ao Direito. Esta aplicação encontra sobretudo oportunidade nos crimes por omissão, em que a pressão da situação total do momento anula no agente a capacidade de agir em cumprimento ao dever que lhe incumbe, deixando-o inativo, a permitir que se consuma o resultado danoso.”
Para comprovar que no Direito estrangeiro há idêntica linha de raciocínio, é importante transcrever outro trecho da mesma obra do mestre Aníbal Bruno, conforme segue:
“(…) Dohna vê no pensamento da exigibilidade a característica central de toda a ação culpável, o pressuposto sob o qual a realização dolosa ou não dolosa do tipo pode fundamentar a reprovação da culpabilidade. Graf, Zu Dohna. Der Aufbau der Verbrechenslehre. cit. pág. 42. V.H. von Weber. Grundriss des deutschen Strafrechts. Bonn, 1948, págs. 121 e 126. Na construção de Welzel não se inclui a exigibilidade de conduta diversa na estrutura do conceito da culpabilidade. Este fica limitado à imputabilidade, que, aliás, se apresenta como pressuposto e à falta a um dever jurídico, tendo ou podendo ter o agente consciência da ilicitude do seu comportamento. Toma, porém, em consideração a não exigibilidade de outra conduta nos fatos culposos, nos dolosos omissivos e só excepcionalmente nos dolosos por comissão. Não a considera, porém, como causa de exclusão da culpabilidade, mas de exclusão do ilícito. Welzel, Das deutsche Strafrecht, Berlim. 1947, págs. 53, 84 e 90.
Na prática do princípio da não exigibilidade realizada o Direito Penal uma reação contra o formalismo, um movimento oposto a uma concepção demasiadamente rígida da função deste ramo do Direito e da própria justiça. Negar totalmente o pensamento da não exigibilidade conduz, como observa von Weber, a uma dureza injusta e desnecessária.
Como diz Goldshmidt, o reconhecimento de causas supralegais de exclusão da culpabilidade decorre do conceito fundamental de que há motivos que a ordem jurídica deve reconhecer como superiores para um homem médio, ao motivo do dever, causas que resultam da motivação anormal, tipicamente da motivação por necessidade. Goldschmidt, Normativer Schulbergriff, págs, 446 e 452.
Na Itália a não exigibilidade começa a ser admitida como causa geral de exculpação. Decididamente pelo princípio da não exigibilidade com largueza de aplicação, Scarano, La non exigibilità nel diritto penale, Nápoles, 1948, apresentando-o como a ratio das normas que excluem o crime por falta do elemento subjetivo e como entidade normativa de configuração autônoma, distinta das outras causas semelhantes não expressamente previstos pela lei (op. Cit; pág. 163). Posição semelhante é a de Bettiol, Diritto penale. Parte gen. 2ª ed. Palermo, 1950, págs. 334 e segs. Francamente partidário de larga aplicação do princípio, tanto no dolo quanto na culpa, Jiménez de Asúa, La ley y el delito. Caracas, 1945, págs. 512 e segs.”
Em outra obra (Comentários ao Código Penal. Vol I, ed. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1949, p. 202) o magistério de Aníbal Bruno é esclarecedor ao comentar a previsão legal da não exigibilidade de conduta diversa no Código Penal Brasileiro, senão vejamos:
“Certa corrente de autores alemães (Eg. Schmidt, Freudenteal, Mezger, Siegert), para suprir falha do Código Penal do seu país, entende que deve ser reconhecida como causa (supralegal) de exclusão da culpabilidade a ‘não exigibilidade de conduta diversa’ (Nichtzumtbarkeit) e assim argumenta: se o pressuposto da culpabilidade (falta moral) é a censurabilidade (Vorwerfbarkeit) da ação, segue-se que ela exprime a violação de um dever de conduta, do ponto de vista social, mas, conduta social, não pode ser senão aquela que, sendo exigível de um indivíduo, não é seguida por este. A censurabilidade deixa de existir quando o indivíduo falta a observância de uma conduta que se apresentava impraticável no caso concreto (ultra posse nemo tenetur) ou particularmente difícil, não exigível do homo medius, do comum dos homens. O nosso Código assimilou explicitamente o critério da ‘não exigibilidade’, mas ara reconhecer, segundo a maior ou menos premência das circunstâncias, ora uma discriminante, isto é, identificando-a com a própria essência do estado de necessidade (art. 20, caput), ora simples minorante (art. 20, § 2º)”
Vale citar o mestre Álvaro Mayrink da Costa (Casos em Matéria Criminal. 3ª ed. rev. ampl. e aum. Ed. Forense, 1995, p. 416) – que é didático ao lecionar:
“(…) a idéia da exigibilidade de um comportamento diverso do infrator tem suas raízes no direito positivo. Exige-se do destinatário direto das normas penais determinados comportamentos, ora impondo o cumprimento de um dever jurídico de atuar, ora fazendo-o abster-se de obrar, ou até amenizando a censura penal, nas hipóteses de inadimplemento de suas obrigações. A questão efetivamente tem sede na culpabilidade sob o ângulo subjetivo.
O direito é, acima de tudo, vida comunitária, e as exigências do ordenamento jurídico ficam limitadas à capacidade do homem de dominar os processos causais de sua psique. Há uma série de elementos incontroláveis, e o direito não pode reprovar tais atos sem proclamar o desvalor da conduta executada (antijuridicidade), mas concede uma escusa pessoal, renunciando à punição do que não pode censurar. Contudo, há variações da exigência pessoal de conduzir-se conforme o direito.
A vexata quaestio está na extensão que deve ser dada à não-exigibilidade de outra conduta como causa de reprovabilidade. O nosso Código indica, entre os casos de inexigibilidade de outra conduta, o estado de necessidade esculpante que se caracteriza pela preponderância diante da maior importância do bem a ser salvo situando-se a discussão temática na valoração dos bens e interesses em conflito.”
O mestre Damásio de Jesus (Direito Penal. Vol. I. Ed. Saraiva. São Paulo. 1992, p. 424) também ratifica a existência da tese da inexigibilidade da conduta diversa, in verbis:
“A aplicação da teoria da exigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade encontra apoio na integração da lei penal. Vimos que o Direito Penal positivo possui lacunas. Havendo omissão legislativa no conjunto das normas penais não incriminadoras, e não havendo o obstáculo do princípio de reserva legal, a falha pode ser suprida pelo processos determinados pelo art. 4º da LICC: a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Se o caso é de inexigibilidade de conduta diversa e não encontrando o juiz norma a respeito no direito positivo, pode lançar mão da analogia para absolver o agente. Não se trataria bem de uma hipótese supralegal de exclusão da culpabilidade, pois, em última análise, o juiz estaria aplicando a disposição reitora do caso semelhante ao fato concreto. Mas, não havendo norma descrita de fato semelhante, o juiz pode absolver o sujeito com base nos costumes e nos princípios gerais de direito em que se fundamenta a inexigibilidade. Então o juiz não estaria aplicando uma norma contida na legislação penal, mas sim uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Herzbruch ensina que as causas de exclusão da culpabilidade contidas nos Códigos não são mais que simples manifestações do princípio geral segundo o qual a não-exgibilidade de outra conduta exclui a culpabilidade, pelo que não vê inconveniente que o juiz absolva o agente que atuou sem que se lhe pudesse exigir outro comportamento, ainda que sua situação não se encontre prevista em lei. Não se trata da adoção de um critério anárquico, que viria trazer embaraço e incerteza à aplicação da lei penal, mas de um critério a ser adotado pelo juiz com ponderação, atendendo a situações excepcionalíssimas não previstas pelo legislador.”
Para Fernando Capez (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral. Volume 1. 11ª edição, revista e atualizada. 2007, pp. 327/333) a exigibilidade de conduta diversa trata-se de causa de exclusão da culpabilidade, fundada no princípio de que só podem ser punidas as condutas que poderiam ser evitadas. No caso, a inevitabilidade não tem a força de excluir a vontade, que subsiste como força propulsora da conduta, mas certamente a vicia, de modo a tornar incabível qualquer censura ao agente. O Autor finaliza o seu raciocínio afirmando que em face do principio nullum crimen sine culpa, não há como compelir o juiz a condenar em hipóteses nas quais, embora tenha o legislador esquecido de prever, verifica-se claramente a anormalidade de circunstâncias concomitantes, que levaram o agente a agir de forma diversa da que faria em uma situação normal.
Diante dos ensinamentos acima transcritos, não há como negar que a teoria da inexigibilidade de contuda diversa é aplicável ao crime de apropriação indébita previdenciária, seja como excludente da antijuridicidade ou como excludente de culpabilidade.
O importante é destacar que todo o devedor previdenciário que se ve nesta situação em decorrência de fato alheios a sua vontade, podem ser absolvidos, com fulcro na teoria da inexigibilidade de conduta diversa.
Para comprovar que o Poder Judiciário vem acolhendo a teoria em lume, serão transcritas alugmas decisões atuais, no próximo item.
6. Jurisprudência hodierna acolhedora da tese da inexigibilidade de contuda diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade
Neste ponto, é importante ressaltar a jurisprudência hodierna que se coaduna com os ensinamentos dos autores supracitados. Vejamos alguns exemplos:
“Criminal. Apropriação indébita. Contribuições previdenciárias. Lei n.º8.212/91, art. 95, ‘d’ e seu § 3º. Inadimplência. Crise financeira da empresa. Estado de necessidade. Exclusão do dolo (…) O contribuinte inadimplente e em mora por uma espécie de estado de necessidade especial (crise financeira da empresa), devidamente comprovada, tem excluído o dolo da conduta, ainda mais, quando presente o animus de solucionar a dívida, mediante o parcelamento do débito junto ao órgão arrecadador.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 4ª Turma. Apelação Criminal n.º 94.01.16249- 2/BA. Relator: Juiz Nelson Gomes da Silva. In: DJU 16.02.1995, p. 6.595)
“Criminal. Apropriação de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. Comprovada crise financeira da empresa. Estado de necessidade. Materialidade. Dúvida. 1. Se o empregador optou por pagar os salários dos obreiros, ao invés de recolher valores para a previdência social, não foi legítima sua conduta. 2. Estado de insolvência comprovado. Excludente de criminalidade reconhecida.” (BRASIL. Tribunal Regional da 4ª Região. 3ª Turma. Apelação Criminal n.º 92.04.03243-0/RS. Relator: Juiz Fábio D. da Rosa. 08 de outubro de 1992. In: DJU 08.10.1992)
“Diante da incontornável dificuldade financeira, havendo redirecionado para a folha de pagamento dos empregados da empresa a verba que deveria repassar para o INSS, laborou debaixo da excludente de culpabilidade que a doutrina chama de inexigibilidade de conduta diversa, pois, homenageia a primazia do crédito trabalhista, em desfavor do crédito tributário (CTN, art. 186). … não age culposamente – nem deve ser, portanto, penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela experiência, não lhe era exigível comportamento diverso. Pois, ‘comprovado que se via premiado pela conjuntura econômica (necessidade de pagar os empregados), de modo a não se lhe poder exigir, conduta diversa, merece confirmação a sentença absolutória.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Criminal n.º 95.05.23373- 6/RM. Relator: Juiz Castro Meira.. 07 de dezembro de 1995. In: DJU 26.01.1996, p. 2.794)
“Não recolhendo o réu aos cofres da Previdência na época própria, a contribuição descontada do empregado, configurado está o crime previsto no art. 95, letra ‘d’ da Lei n.º 8.212, de 1991. Estado de necessidade comprovado. Se alguns anos depois de constituída, a empresa encontra dificuldades financeiras – provocada pela crise econômica por que passa o País – para se manter, o que é demonstrado com a venda de seus bens patrimoniais e de seus sócios para fazer face aos seus débitos, preferindo pagar os salários dos empregados a deixar de recolher a contribuição previdenciária, há de se reconhecer o estado de necessidade, por ela não provocado. Exclusão da ilicitude” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Criminal n.º 1997.01.00.014184-9/MG. Relator: Juiz Tourinho Neto. 17 de novembro de 1998. In: DJU 06.03.1998, p. 208)
“Penal. Não Recolhimento de Contribuição Previdenciária. Lei n.º 8.212/91, art. 95, alínea ‘D’. Lei n.º 9.983/2000. Art. 168-A, § 1º, inc. I, do Código Penal. Autoria e Materialidade Comprovadas. Dificuldades financeiras. Alegação de inexgibilidade de conduta diversa. Acolhimento. 1. Constitui a infração descrita no art. 168-A do Código Penal, deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 2. O crime de apropriação indébita previdenciária, que é crime omissivo puro, não exige que da omissão resulte dano, bastando, para sua configuração, que o sujeito ativo deixe de repassar à Previdência Social a contribuição recolhida dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 3. Autoria e materialidade demonstradas. 4. Acolhimento da tese de inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, considerando que a conduta dos réus, apesar de típica, visto que se amolda à figura prevista no art. 168-A do Código Penal, e de não estar albergada por qualquer causa excludente de ilicitude, não é culpável, na medida em que não lhes era exigível portar-se de maneira diversa, em consonância com o ordenamento jurídico. 5. Apelação improvida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 4ª Turma. Apelação Criminal n.º 1999.37.00.004084-2/MA. Relator: Desembargador Federal Hilton Queiroz. 13 de fevereiro de 2007. In: DJU 16.03.2007, p. 30)
“Penal. Apelação Criminal. Apropriação Indébito Previdenciária. Art. 168-A do Código Penal (antigo art. 95, ‘D’, da Lei n.º 8.212/91). ‘Abolitio Criminis’. Dificuldades Financeiras. Comprovação. Inexigibilidade de Conduta Diversa Absolvição Mantida. Apelação Mantida. 1. A Lei 9.983/00, ao revogar o art. 95, alínea “d”, da Lei 8.212/91, não descriminalizou a conduta típica, que permaneceu tipificada no novel art. 168-A, do Código Penal. Precedente deste Tribunal. 2. Tratando-se de crime omissivo puro, não é necessária a caracterização do dolo específico para a consumação do delito. 3. Devidamente comprovadas as dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa no período descrito na denúncia. Estado de necessidade configurado. Absolvição mantida. 4. Apelação do Ministério Público Federal improvida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 4ª Turma. Apelação Criminal n.º 2002.38.00.021572-1/MG. Relator: Desembargador Federal Ítalo Fioravanti Sabo Mendes. Relator para acórdão: Desembargador Federal Carlos Olavo. 23 de junho de 2006. In: DJU 02.06.2006, p. 72)
“PENAL – NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESCONTADAS DOS EMPREGADOS – ART. 95, ALÍNEA “D”, DA LEI 8.212/91 – INOCORRÊNCIA DE ‘ABOLITIO CRIMINIS’ – MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS – DIFICULDADES FINANCEIRAS NÃO DEMONSTRADAS. 1.A Lei 8.866/94, ao criar a figura do depositário infiel de valores pertencentes à Fazenda Pública, por incidir apenas na esfera civil, sem repercussão na órbita penal, não promoveu abolitio criminis em relação ao delito tipificado no art. 95, alínea d, da Lei 8.212/91. 2.Dificuldades financeiras alegadas para o não recolhimento de contribuição previdenciária descontada dos empregados devem ser devidamente comprovadas, não bastando simples alegações. 3.O delito do art. 95, alínea d, da Lei 8.212/91 não mais se equipara à apropriação indébita constituindo crime autônomo, pelo que irrelevante a ausência do dolo específico, ou seja, o animus rem sibi habendi para sua ocorrência. 4.Comprovada a materialidade e a autoria do delito, correta a sentença que julgou procedente, pelo que deve ser mantida também no tocante à pena imposta ao Réu, em seu quantitativo mínimo. 5.Apelação a que se nega provimento.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Apelação Criminal n.º 1997.01.00.017144-1/BA, Relator: Juiz Federal Osmar Tognolo, 3ª Turma, julgado por unanimidade em 03/03/1999, publicado no DJ 30/04/99, p. 480).
“PENAL. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. FALTA DE RECOLHIMENTO. CRIME OMISSIVO. RESPONSABILIDADE. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. 1.Comprovada a falta de recolhimento, na época própria, da contribuição previdenciária descontada dos empregados, resta tipificado o crime previsto no art. 95, alínea “d” da Lei nº 8.212/91, que representa delito omissivo, sem similitude com o quadro típico da apropriação indébita, cuja configuração não resulta infirmada por meras alegações de dificuldades financeiras da pessoa jurídica. 2.No âmbito do ilícito penal, todas as sanções previstas têm igualmente natureza penal, não cabendo falar, nesses domínios, em prisão civil por dívida, cuja vedação legal (em regra) não obstaculiza a pena privativa de liberdade nos crimes de natureza econômicofinanceira. 3.Improvimento da apelação.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Apelação Criminal n.º 1997.01.00.044701-9/MG, Relator: Desembargador Federal Olindo Menezes, 3ª Turma, julgado por unanimidade em 04/04/2000, publicado no DJ 30/06/00, p. 115).
“PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. DIFICULDADES FINANCEIRAS DA EMPRESA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA COMPROVADA. 1. O delito de apropriação indébita previdenciária, tipificado no art. 168-A, do Código Penal, constitui-se como um crime omissivo próprio ou puro, que se consuma quando o agente deixa de repassar aos cofres previdenciários as contribuições descontadas dos salários dos seus empregados, e se aperfeiçoa independentemente de o agente se beneficiar ou não dos valores não repassados, dispensando-se o animus rem sibi habendi. 2. As dificuldades financeiras da empresa podem caracterizar duas hipóteses: a atipicidade da conduta, quando demonstrada a impossibilidade de efetuar o recolhimento das contribuições previdenciárias, por falta de numerário, ou, como se pretende no caso em tela, a exclusão da culpabilidade ante a inexigibilidade de conduta diversa, quando o recolhimento era possível, mas comprometeria a sobrevivência financeira da empresa. 3. O crime de apropriação indébita previdenciária se caracteriza quando o inadimplemento resulta de uma escolha do agente que, podendo agir, opta pela omissão, e sua culpabilidade deflui da exigibilidade de conduta diversa, o que se descaracteriza quando, como no caso dos autos, indícios de provas apontam para a existência da aludida dificuldade financeira, tais como: existência de inúmeros títulos protestados, requerimento de falência, vários meses de salários atrasados, máquinas e equipamentos em condições precárias, efetivação de contratos de abertura de créditos em valores significativos. 4. Apelação provida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. 2ª Turma Especializada. Apelação Criminal n.º 2001.50.02.000916-/ES. Relator do Acórdão Juiz Federal Marcelo Pereira da Silva. 28 de março de 2006. In: DJU 25.09.2006, p. 171.)
“PENAL E PROCESSUAL PENAL – APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA – ART. 168-A, §1º, I DO CP – CRIME OMISSIVO PRÓPRIO E DE MERA CONDUTA – DIFICULDADES FINANCEIRAS – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA CONFIGURADA. 1. O crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, caput e §1º do CP) é omissivo próprio e de mera conduta, bastando à sua caracterização o desconto ou a cobrança de valores, a título de contribuição previdenciária, e o não repasse dos mesmos aos cofres públicos. 2 Aplicação da causa supralegal excludente de culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa) ao caso concreto, em razão de seus contornos específicos. 3 Apelação criminal conhecida e não provida. Absolvição mantida.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. 1ª Turma Especializada. Apelação Criminal n.º 1996.50.01.002169-5/ES. Relator Juiz Federal Sérgio Feltrin Correa. 21 de março de 2007. In: DJU 12.06.2007, p. 159)
“PENAL – APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA – DIFICULDADE FINANCEIRA – NÃO – COMPROVAÇÃO – EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. I – A alegação de dificuldade financeira há de ser rigorosamente comprovada, para ser apta a justificar a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. II – Restando constatado que o Réu não logrou provar a alegada impossibilidade em adimplir as obrigações – recolhimento das contribuições previdenciárias, não tendo, nem mesmo a decretação da falência, denotado escassez financeira, resta configurada a apropriação indébita previdenciária.” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. 6ª Turma. Apelação Criminal n.º 199951010487146/RJ. Relator Juiz Federal Sérgio Schwaitzer. 15 de dezembro de 2004. In: DJU: 30/03/2005, pp. 181/182)
7. Conclusões
O crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, do CP), conforme os entendimentos supracitados é um delito omissivo próprio ou puro, que se consuma quando o agente deixa de repassar aos cofres previdenciários as contribuições descontadas dos salários dos seus empregados, e se aperfeiçoa independentemente de o agente se beneficiar ou não dos valores não repassados, dispensando-se o animus rem sibi habendi, tudo conforme a doutrina acima selecionada e a jurisprudência supracitada.
Ocorre que as dificuldades financeiras amargadas pelas empresas podem caracterizar, conforme a posição doutrinária que se adote, duas hipóteses: a atipicidade da conduta, quando demonstrada a impossibilidade de efetuar o recolhimento das contribuições previdenciárias, por falta de numerário, ou, a exclusão da culpabilidade ante a inexigibilidade de conduta diversa, quando o recolhimento era possível, mas comprometeria a sobrevivência financeira da empresa.
Neste sentido, o crime de apropriação indébita previdenciária se caracteriza quando o inadimplemento resulta de uma escolha do agente que, podendo agir, opta pela omissão, e sua culpabilidade deflui da exigibilidade de conduta diversa, o que se descaracteriza quando, conforme as lições dos autores supracitados, há provas que demonstram a existência da aludida dificuldade financeira, tais como: existência de certidões fazendárias com apontamentos, certidões judiciais positivos, títulos protestados, negativações nos bancos de informações dos comerciantes ou bancos (SPC, SERASA etc), requerimentos de falência, salários atrasados, ordens de busca e apreensão máquinas e equipamentos, penhora dos equipamentos necessários para o desenvolvimento das atividades, falta de manutenção das máquinas, contratos de abertura de créditos em valores elevados, créditos rotativos em aberto, desconto de duplicadas com grande deságio etc.
Diante da farta lição doutrinária, bem como da substancial jurisprudência reconhecendo a petinência da teoria da inexigibilidade de conduta diversa, não há como negar que o magistrado analisando o caso concreto em demandas criminais que versem sobre o crime de apropriação indébita previdenciária deve, até mesmo liminarmente, proferir sentença absolutória do réu, desde que sejam carreados aos autos os documentos que comprovem cabalmente a precária situação financeira amargada pelo réu.
Informações Sobre o Autor
Leonardo Ribeiro Pessoa
Advogado Especializado em Direito Tributário; Professor de Pós-Graduação em Direito Material e Processual Tributário; Mestre em Direito Empresarial e Tributário; Pós-Graduado em MBA de Gestão Empresarial em Tributação e Contabilidade; Pós-Graduado em Direito Tributário e Legislação de Impostos; Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil; Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior; Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário – ABDT; Filiado à Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT; Sócio-Pleno da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF; Associado Máster da Associação Paulista de Estudos Tributários – APET; Sócio-Professor do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – IBPT; Membro da International Fiscal Association – IFA