Segurança pública e a minha bicicleta


Já dizia Hans Kelsen, sobre esta inversão de valores, que é certo que a vida humana é mais importante do que um relógio, e também do que uma bicicleta. Portanto, entre perder sua vida ou seu relógio, melhor perder o relógio, ou quem sabe a bicicleta. Contudo, entre seu relógio e a vida de quem te assalta, seria melhor poder escolher o seu relógio, que é fruto de seu trabalho. E, afinal, você não escolheu ou anuiu com ser assaltado, roubado, atacado ou violentado. Quem lhe pagará o prejuízo, se você não escolher ficar com o bem, contra a liberdade do assaltante. Ele fica livre, você sem relógio, e, pior, o assaltante acha que pode fazer tudo outra vez.


Se você se defende, e agride o assaltante, veja só, ele tem direito a indenizações, como um trabalhador comum. Assaltar é profissão regulamentada no Brasil.


Não estamos aqui defendendo a pena de morte ou mesmo espancar uns e outros, mas o infrator ficar solto porque o patrimônio é pouco, também não é aceitável. O patrimônio é pouco, mas é seu, não era dele.


Tratam, aqueles que tratam, dos macro problemas da segurança pública. E, devem mesmo ser tratados, de preferência sendo solucionados. Deve-se realmente discutir e solucionar as condições prisionais, rapidez processual, garantias constitucionais, ressocialização, e, porque não dizer, mais educação, mais saúde, mais emprego, mais cuidado no trato do dinheiro público, mais exemplos de honestidade, trabalho e honradez de nossos governantes e dos demais homens públicos (os mensalões e malas estão ai, e não deixam de ser pura violência), políticas de capacitação profissional, condições de trabalho, distribuição de renda, nada de políticas esmoleiras, em suma um pouco de vergonha na cara, destes que administram o que é nosso como se fosse deles, menos desta farra do boi, que vemos acabar com o país.


Mas, também se deve notar que todo o problema se inicia pequeno, tem ares de modernidade essa falação sobre conjunturas, politização, segurança, infra e extra consectária, no entanto, se é de pouco que se inicia, comecemos combatendo os pequenos problemas que afligem o cidadão. Aquele indivíduo que rouba um relógio ou bicicleta (a  minha, por exemplo), é preso em flagrante, e solto, desde que prometa, como se palavra tivesse quem desrespeita as normas postas, atender a outros chamados para responder ao processo contra ele instaurado.


E, somente é visto novamente quando preso por outro delito, quando tudo se repete, promete retornar quando chamado for, ficando livre para delinqüir novamente. Quantos outros pequenos crimes, que vão crescendo de proporção a cada novo incidente, comete este individuo, até ser, por acaso, preso novamente?


Assim, lhe vem a certeza, por óbvia, que nada lhe acontece, pois basta prometer aos tolos representantes da sociedade, que a partir daquele determinado momento, diferente do que sua conduta demonstra desde o início, irá respeitar as normas e cumprir sua palavra, não mais delinqüindo e retornando para ser processado e punido,  que estes, como se de olhos vendados para os fatos da vida e do mundo, acreditem e novamente o liberem.


Porque o processo tem a função de identificar o culpado e sua culpa, para puni-lo pelo desrespeito às normas que conduzem a sociedade em que vive. Ora, se não respeitou estas normas não se pode pretender que seja tratado igual a quem as respeita.


Temos neste ponto a cruel inversão prefalada, aqueles que são respeitadores da lei, se vêem prejudicados em função desta mesma lei beneficiar e proteger, como iguais, aqueles que por sua vez só fazem infringi‑la. Não se pretende tortura ou exceção, arbitrariedades ou desmandos.


Mas verificada a ocorrência do pequeno delito, de fácil verificação, por vezes flagrantemente cometidos,  que trouxe graves prejuízos para o cidadão honesto, que ficou sem seu relógio, sem sua bicicleta, sem dignidade, e, às vezes, sem a vida, que o infrator seja punido com rigor, sem benesses, pois escolheu ferir a lei.


Nada de penas absurdas. Ótimo que existam penas alternativas, que não ferem a dignidade de ninguém. Mas, que sejam claras, objetivas, que sejam cumpridas, para não mais delinqüir, para compreender o peso de seus atos.


O cidadão comum quer ter confiança no estado do qual participa, quer ver mais honestidade de seus representantes, quer ver a punição, ver resultados, que sejam pequenos mas reais, para sentir segurança em seus representantes, para sentir válido seu respeito às normas, para não se ver levado a acreditar que deixar de cumprir as normas é mais interessante e merecedor de benefícios do que o contrário, do que ser honesto e respeitador. Quantos outros cidadãos, terão prejuízos patrimoniais, às vezes, como já dito, perdendo até a vida, porque este indivíduo criminoso, não viu qualquer conseqüência para seus atos iniciais.


Indivíduos que não respeitam as normas são os mais beneficiados pelas mesmas. O bandido mata, rouba, estupra. Mas, se um policial na defesa de sua vida atinge um deles, ou mesmo se um cidadão comum ao ver invadida sua casa, causa algum dano físico no assaltante, temos, nós, a sociedade, de indenizá-lo.


E quem é que me indeniza pela bicicleta perdida?


Não vá o cidadão comum comprar outro relógio ou outra bicicleta para ver se terá outro objeto.


Presos não são feras, criminosos não são feras, não se pretende aqui que sejam excluídos seus direitos à vida digna e tratamento humano. Mas o cidadão honesto também tem direito ao respeito e às mesmas prerrogativas. Também merece ver respeitada sua dignidade.


Tratamento humanizado não é deixar que os infratores de todas as normas, por que motivo seja,  ditem as regras de sua própria punição. Se colocam fogo nos colchões, como vemos diuturnamente nos noticiários, é porque colchões tinham e têm direito de tê-los. Mas, que fiquem sem colchões. Que paguem por novos. Quebram telhas de suas celas, fiquem ao relento, até que paguem pelas telhas.


Paguem com trabalho. Trabalhar não é vergonha, não é ofensivo. Não é desrespeitoso com a dignidade de ninguém.


Roubaram uma simples bicicleta, sejam punidos e paguem pela mesma. Não se pode pretender que o preso não receba comida, colchões, roupas, condições de aprender uma profissão, mas também não se pode pretender que a sociedade acochada por estes elementos criminosos se veja obrigada a arcar com as conseqüências dos atos por eles praticados. Não é possível que sejamos assaltados, roubados e ainda tenhamos que pagar pela nossa própria bicicleta.


Não é possível a manutenção da presente situação em que o criminoso pode invadir sua residência ou abordá-lo na rua, de forma ostensiva e, sem que seja possível defesa, permanecer livre para continuar delinqüindo enquanto o cidadão comum, cercado pelo medo, deve sempre proteger-se sem esperar guarida.


Meus pais ensinaram que a todos os nossos atos correspondem conseqüências. É o que nós, os comuns, queremos ver. Se o indivíduo comete crimes, deve ser legalmente, e exemplarmente punido, se destrói patrimônio público, se queima colchões, que fique sem colchão, que pague. A sociedade é que não pode se render a eles. Que conversem, que peçam melhores condições, que tenham seus processos revistos, que os administradores os atendam e trabalhem direito, essa a função dos representantes do povo que administram o patrimônio público.


Que tenham sua dignidade respeitada, desde que respeitem e aprendam a agir como nós, que respeitamos a lei e o patrimônio alheio. Mas, que arquem com as conseqüências de todos os seus atos. Porque os direitos humanos são para todos. Também para as vítimas.


Para aqueles que, em suas salas refrigeradas, pagas pela sociedade, uma bicicleta ou um relógio não são nada comparados à liberdade, porque certamente têm eles segurança particular, cercas eletrificadas e alarmes em suas casas, às quais chegam em seus carros blindados, é fácil decidir que o criminoso merece tantas oportunidades. No entanto, para nós, pessoas comuns, que arcamos com o seus gastos, que nos vemos obrigado a respeitar estas mesmas leis, e a quedarmo-nos inertes ante a violência e os violentos. A bicicleta e o relógio, em nossos casebres, pequenos e toscos, são nosso patrimônio, conquistado com esforço, suor e trabalho honesto. Na vã esperança que a honestidade seria recompensada.


Assim, a liberdade do bandido, que não respeita estas leis e normas, que nos causa pânico e prejuízos, que fere nossa dignidade e honra, nos deixando impotentes, amedrontados e a mercê de suas vontades, não pode e não é nem de longe mais importante do que estes simples e baratos bens.


A segurança pública, realmente, deve ser pensada em todos os níveis. Deve ser medida, sopesada, analisada, decidida, visando a proteção da sociedade e também a melhoria de vida e de condições para todos, inclusive os excluídos, que por vezes, sem pretender, em função desta sua condição, já que a sociedade não lhes dá oportunidade, enveredam pelo caminho do crime. A segurança pública não é só evitar o crime, é dar condições de vida com dignidade a todos.


Contudo, mesmo entendendo estas situações que levam ao crime, sem que se pretenda crucificar todos os indivíduos que, às vezes acabam por enveredar por este caminho. Mesmo compreendendo todas as mazelas do mundo, que merecem ser resolvidas para que se encontre um modo melhor de viver para todos. Irmão amando irmão. Mas, as pessoas de bem, que com todos os revezes e dificuldades da vida, a todo e qualquer custo, permanecem lutando e tentando, respeitando e cumprindo as normas, a par das grandes questões e dos grandes debates acadêmicos, querem ver pequenos, mas consistentes atos e resultados.


Punição real, rápida e eficiente, de todos os transgressores, mesmo pequenos, sem este atual sistema paternalista, que sob o falacioso argumento da civilidade, tem beneficiado desmesuradamente quem desrespeita o sistema em prejuízo dos bons, o que só faz tornar a sociedade incrédula, vítima e refém dos criminosos, e, certamente, menos civilizada, pois é o forte vencendo o fraco, como na selva.


Certo que não é a solução que aqui se apresenta para os problemas graves e complexos da segurança pública, mas, é a solução para o problema de cada cidadão. O indivíduo mediano, o cidadão comum, os pobres a quem invariavelmente não se direciona a lei, não se interessam muito pelas grandes questões da vida, da política, da religião, da cidadania ou da administração. Querem apenas viver, ter segurança na sua vida de forma simples, poder adquirir seus bens e com eles ficar, ter seus filhos alegres, saudáveis, vivos e íntegros, dormir às vezes com suas janelas abertas.


Querem apenas que os indivíduos que cometem crimes não sejam beneficiados pelos direitos que são inerentes ao homem honesto e trabalhador, tanto como é. Que não seja dada a oportunidade do criminoso delinqüir novamente, que aqueles que ferem sua dignidade e sua paz, sejam punidos.


Punidos sem crueldade, mas com severidade, para que compreendam que os direitos são concedidos a quem respeita as normas, as obrigações e os direitos alheios.


O homem comum, eu, você, quer acreditar que aquele que lhe rouba a bicicleta, independente do valor econômico da mesma, seja preso, pague o prejuízo causado, e, não fique logo livre para fazer o mesmo novamente.


Não se extinga a discussão acadêmica, por necessária. Que se busque e se encontrem as soluções para os grandes problemas. Mas, que seja dado ao cidadão, que paga toda a despesa, o que ele quer, seu relógio no pulso, sua tranqüilidade de viver, confiança nos seus protetores, punição aos criminosos.


Que perder a bicicleta, sirva de parâmetro para que ações sejam tomadas, para que o mesmo não se repita, para que saibamos que outros já não correrão o mesmo risco. Que perder a bicicleta não seja em vão. Enfim, que ao fim tenhamos punidos os culpados e devolvida a minha bicicleta, que é o que interessa.



Informações Sobre o Autor

Gildo Dalto Junior

Membro do CIPET – Centro Integrado e Participativo de Estudos Tributários, advogado em Cachoeiro de Itapemirim ES, Pós-graduado em direito tributário material e processual pelo IBET/CONSULTIME, Membro da banca examinadora de monografia jurídica em matéria tributária da FDCI – Faculdade de Cachoeiro de Itapemirim/ES


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