Resumo: Há tempos o problema do uso indevido e do tráfico ilícito de drogas se tornou motivo de alarde social, visto todas as conseqüências funestas advindas da toxicomania; daí a preocupação do legislador em criar medidas que venham a coibir esta ameaça. A Lei n. 11.343 de 2006 (Lei de Tóxicos) é apenas mais um capítulo desta guerra entre o Direito e a Toxicomania. Embora a matéria tutelada seja a mesma das leis anteriores, a nova Lei Antidrogas traz muitas peculiaridades – algumas delas foram selecionadas para serem tratadas neste trabalho. Será, portanto, objeto de comentários desde alguns pontos mais relevantes de seu novo sistema de prevenção e repressão do uso e tráfico de tóxicos até alguns artigos que compõem seu procedimento penal. São apresentadas também algumas considerações de ordem sociológica e filosófica, com o objetivo mesmo de enriquecer a explanação acerca da matéria e de fornecer informações de outra natureza, pois, ainda que a ciência do direito seja autônoma, não precisa necessariamente dispensar tais considerações. Assim, fizemos também, ao longo deste trabalho, algumas comparações com as Leis pretéritas e, ao final, procuramos compreender e apresentar soluções para algumas antinomias normativas da nova Lei, sob a luz de algumas regras da Hermenêutica Jurídica.
Palavras-chaves: nova lei de tóxicos; política de prevenção e repressão; tráfico de drogas; uso de drogas; antinomia entre normas processuais.
Abstract: There are times the problem of the undue use and the drugs illicit traffic become a reason of social panic, seen all the fatal consequences resulted from toxicmania; therefore the legislator preoccupation to create norms that will curb this threat. The Law n. 11.343/06 (Toxic Law) is only one more chapter of this war between the Right and drugs. Although the reported matter is the same of that previous laws, the new Anti-drugs Law brings too much differences – some of them were selected to be treated in this work. For that reason, will be object of commentaries since some points more relevant of yours new prevention and repression system until some norms which compose your criminal procedure. Some philosophical and sociological considerations are introduced too, with the objective to enrich the explanation about the matter and to give other nature’s information, because, though the Law science is autonomous, not necessarily need to dispense that considerations. Although, we made too, in this work, some comparisons with that old laws and, finally, we try to understand and to present solutions for some normative antinomy of the new Law, under the orientation of some legal hermeneutics rules.
Key-words: new toxic law; prevention and repression politics; drug’s traffic; drug’s use; antinomy between procedure laws.
Sumário: Introdução. 1. O sistema de prevenção/repressão da Lei 11.343/06. 2. O novo thelos de prevenção/repressão da Lei 11.343/06. 3. Aspectos polêmicos do procedimento penal. 3.1. Lei n. 11.343/06 e Lei n. 9.099/95. 3.2. Sobre a constitucionalidade do art. 59 da Lei de Tóxicos. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Ainda nos tempos mais vetustos da história do ordenamento jurídico pátrio, os problemas advindos do uso de tóxicos já se mostravam alvo de preocupação.
Dizia o título 89 das Ordenações Filipinas “que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”. A julgar o fato de que esse é apenas o ponto de partida de uma longa caminhada legislativa – que irá culminar na mais recente Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – e considerando o visível aumento de conteúdo normativo – se compararmos aquela antiga norma ao mais recente diploma legal – pode-se com total liberdade concluir que o problema do uso inapropriado de entorpecentes e o tráfico das drogas ilícitas, longe de ter sido solucionado, apenas ganhou proporções maiores.
Tal juízo nos vem a lume ao considerarmos o grau de complexidade das situações oriundas do problema ora abordado, explicitadas pela maneira com que o legislador as descreve por meio de normas. Logo, nos é forçoso reconhecer a dinamicidade inerente a estes mesmos fatos, motivados, sobretudo, pelas mudanças de caráter social, inevitáveis às sociedades humanas. Tudo isso sem olvidarmos o aperfeiçoamento da tecnologia e ciências naturais – referimo-nos aqui especificamente à química – cuja evolução possibilitou o aparecimento das chamadas drogas sintéticas – sintetizadas pela química farmacêutica moderna ou mesmo pelos próprios toxicômanos.
É, portanto, notório o fato de que o uso indevido de tóxicos sempre foi (e, ao que parece, sempre será) motivo de preocupação do legislador pátrio. E é perfeitamente justificável a atenção despendida pelo legislador ao problema. Esclarece VICENTE GRECO FILHO que
“(…) a toxicomania, além da deterioração pessoal que provoca, projeta-se como problema eminentemente social, quer como fator criminógeno, quer como enfraquecedora das forças laborativas do país, quer como deturpadora da consciência nacional” (GRECO FILHO, 1972, pág. 01).
Indubitável, destarte, a necessidade sempre urgente de soluções de caráter legislativo que visem a prevenção e a repressão do uso e proliferação por meio de tráfico das drogas ilícitas, visto as conseqüências que essa doença social acarreta ao homem civilizado.
Cabe à ciência do direito colaborar neste desiderato – ainda que de forma indireta – descrevendo através de proposições jurídicas o conteúdo das normas, objetivando conduzir o autêntico aplicador das mesmas às melhores soluções no caso concreto, sempre tendo em vista o equilíbrio entre o valor individual do ser humano e a utilidade social.
O presente trabalho tem por finalidade prestar esta contribuição, por meio de uma análise científica de alguns pontos particulares ensejados pelas próprias normas que compõem a nova Lei dos Tóxicos: seu sistema de prevenção/repressão, seu novo thelos de repressão/prevenção, e alguns aspectos polêmicos de seu procedimento penal.
1. O SISTEMA DE PREVENÇÃO/REPRESSÃO DA LEI 11.343/06
Uma grande inovação da nova Lei de Tóxicos com relação às leis anteriores (Lei n. 10.409/02 e Lei n. 6.368/76) é a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD – agora o encarregado da manutenção das atividades relacionadas com a prevenção do uso de drogas e a repressão do tráfico. In verbis da própria Lei:
“Art. 3º O Sisnad tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas com:
I – a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
II – a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.”
Fala-se, portanto, da existência de um Sistema comprometido especificamente em coordenar as atividades desenvolvidas pelos diferentes órgãos responsáveis (CONAD, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério da Justiça etc.) pela execução dos planos objetivados em lei, o que inexistia nas leis anteriores. Destarte, o que se verifica aqui, do ponto de vista de uma Política Criminal, é o cuidado ainda maior que a nova Lei dedica ao problema da prevenção/repressão do uso e do tráfico de drogas, ao instituir um método mais prático – que é, a saber, a criação de um Sistema que objetiva tão-somente garantir a eficácia dos planos traçados pelo legislador – que não se verificava nas diretrizes de prevenção e repressão antes adotadas. Logo, quis o legislador acrescentar um Sistema administrativo para um melhor direcionamento daquelas atividades e, através disso, obter um melhor aproveitamento dos atos voltados à concretização da norma abstrata.
Por outro lado, sob o enfoque de uma sociologia jurídica, tal fato se deve às gigantescas proporções adquiridas pela criminalidade assentada sobre o narcotráfico instalado nas zonas periféricas das metrópoles, e o aumento do número de marginalizados que contribuem na prática deste crime organizado. Há também a crescente vulnerabilidade infligida ao sujeito viciado em drogas, em razão da proliferação das mesmas, o que redunda, evidentemente, em uma degenerescência do corpo social. Na verdade, o que há é uma reciprocidade de fatores catastróficos: é constatável uma etiologia da dependência de drogas, onde uma série de fatores, que podem variar desde a efetiva potencialidade do caráter de alguns indivíduos em se tornar usuários posteriormente – portanto, fator de caráter congênito, ou de essência – até pressões advindas da sociedade moderna – fator de caráter circunstancial. Acrescenta-se ainda a falta de orientação educacional como um dos fatores preponderantes que determinam a atuação da criança e do adolescente (de fato, a total não-conscientização acerca dos efeitos maléficos que o uso de entorpecentes acarretam pode fomentar a curiosidade do jovem). O descontrole social sobre tais fatores provoca o aumento do número de indivíduos dispostos à experimentação de entorpecentes. O tráfico assim fortifica-se devido ao grande número de consumidores, que acabam por incentivar a produção e disseminação de drogas ilícitas. Em suma, há um fortalecimento do crime organizado e o enfraquecimento dos indivíduos viciados. Todavia, se tomarmos o indivíduo pré-determinado ao uso de entorpecentes, e o indivíduo determinado por fatores exteriores como ponto de partida, deveremos adotar, como diretrizes básicas da política de prevenção, medidas tendentes no sentido de informar sobre os efeitos negativos proporcionados pelo uso indevido da droga e buscar a readequação social do indivíduo já arruinado pelo uso da mesma. Com muita proficiência, diz GRECO FILHO que:
“(…) o ser humano criou-se historicamente e se desenvolveu sob condições objetivas terrestres e ajustadas à realidade terrestre. A simples procura individual de ‘realizações subjetivas alienígenas’ é grave sintoma de distorção mental, uma espécie de pré-psicose ou psicose potencial” (GRECO FILHO, 1972, p. 07).
O mesmo autor, sem descuidar dos fatores exteriores (sociais) que integram a etiologia do vício, diz que:
“(…) nasce a toxicomania de um conflito psicológico não resolvido de inadaptação social que podemos enquadrar entre uma das causas básicas já referidas. Este conflito, chamado de primário, se resolvido representa a superação do problema e a permanência da normalidade” (GRECO FILHO, pág. 13).
Daí a importância de normas tais como o art. 4º da nova Lei de Tóxicos, onde diz, no seu inciso III, constituir um dos princípios do SISNAD “a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados”.
Ou ainda:
“Art. 19 As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes: […]
V – a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas utilizadas; […]
IX – o investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais, entre outras, como forma de inclusão social e de melhoria de qualidade de vida;
X – o estabelecimento de políticas de formação continuada na área de prevenção do uso indevido de drogas para profissionais de educação nos 3 (três) níveis de ensino;
XI – a implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino público e privado, alinhados à Diretrizes Curriculares Nacionais e aos conhecimentos relacionados às drogas; […].”
Agora, verifiquemos o fenômeno sob o aspecto dialético. A Lei n. 6.368, de outubro de 1.976, dispunha em seu artigo 1º:
“É dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”
Logo após, instituía em seu parágrafo único sanções às pessoas jurídicas que, solicitadas, não prestassem colaboração nos planos governamentais de repressão e prevenção.
A Lei n. 10.409, de 11 de janeiro de 2002, sem grandes inovações, dizia no artigo 2º:
“É dever de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras com domicílio ou sede no País, colaborar na prevenção da produção, do tráfico ou uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.”
O § 1º, à semelhança da Lei n. 6.368/76, também previa sanções de caráter administrativo às pessoas jurídicas que, injustificadamente, negavam-se a colaborar com os preceitos da Lei. Ainda que, aparentemente, não hajam mudanças muito significativas, destaca ISAAC SABBÁ GUIMARÃES
“(…) que o legislador de 2002 fez uma opção mais realista em relação ao que era disposto no art. 1º, da Lei 6.368/76, quando determinou o dever de colaboração apenas nas medidas de prevenção” (GUIMARÃES, 2003, pág. 132)
Além disso, flagramos o emprego do vocábulo produção autonomamente, além de acrescentar a condicionante injustificadamente ao estatuir sanções (GUIMARÃES, 2003, pág. 132). No entanto, um ponto essencial em ambas as leis, e que permaneceu comum, é a necessidade de colaboração das pessoas físicas e jurídicas com o poder público, para que fosse possível a realização dos planos objetivados na lei. Porém, o mesmo não sucede com a atual Lei de Tóxicos, que parece-nos ter atenuado bastante essa responsabilização às entidades estranhas ao exercício específico de programas de prevenção e repressão do uso e tráfico de drogas. O mais próximo que a nova Lei chega das normas revogadas supra-citadas, é quando diz no Capítulo I, intitulado “Da Prevenção”:
“Art. 19. As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes: […]
IV – o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias; […].”
Trata-se de norma “exortativa”, que não traz em seu bojo qualquer sanção. Agora toda a organização, articulação, coordenação, e integração das atividades ditas preventivas constituem-se em finalidade do SISNAD, como bem esclarece o art. 3º supra-citado, e a execução de tais atividades é responsabilidade daqueles órgãos que o compõem – de acordo com Dec. 5.912 de 2006.
Portanto, conclui-se que – sob um aspecto dialético-evolutivo – a hodierna legislação alcançou um significativo reforço à política de prevenção e repressão ao dedicar-se em seu Título II à instituição de um Sistema totalmente vocacionado para tal, cuja finalidade é dirigir e coordenar todas as condutas de seus respectivos órgãos tendentes no sentido de prevenir e reprimir o uso indevido de entorpecentes e o tráfico de drogas ilícitas. Se se leva em conta as ferramentas oferecidas pela Lei 11.343/06 na sua política de prevenção/repressão, a tendência parece ser a superação dos resultados práticos alcançados pelas antigas legislações.
2. O NOVO THELOS DE PREVENÇÃO/REPRESSÃO DA LEI 11.343/06
De acordo com LUIZ FLÁVIO GOMES, um dos eixos centrais da Lei 11.343 de 2006 é a “eliminação da pena de prisão ao usuário (ou seja, em relação a quem tem posse da droga para consumo pessoal)” (GOMES, 2007, pág. 7). Como se sabe, a Lei 10.409/02 em nada revogou o Capítulo III da Lei 3.368/76, que tratava dos crimes e das penas. Mas isso se deu pelo veto que a Lei 10.409/02 sofreu justamente nas suas medidas tendentes no sentido de eliminar a pena de prisão ao usuário e ao dependente. Segue-se o texto de uma das normas vetadas:
“Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.
Art. 21. As medidas aplicáveis são as seguintes:
I – prestação de serviços à comunidade;
II – internação e tratamento para usuários e dependentes de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar ou psiquiátrico;
III – comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico;
IV – suspensão temporária da habilitação para conduzir qualquer espécie de veículo;
V – cassação de licença para dirigir veículos;
VI – cassação para licença para porte de arma;
VII – multa;
VIII – interdição judicial;
IX – suspensão da licença para exercer função ou profissão.”
Evidente que o art. 28 da atual Lei de Tóxicos é fruto de um reaproveitamento do Art. 20 da Lei de 2002. Os incisos I e III do art. 21 também foram reutilizados pelo art. 28 ao especificar as penas aplicadas àquele que porta drogas para consumo pessoal. Em caso de necessidade, o § 7º do art. 28 determina que o Poder Público “coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”, assim como fazia o inciso II do art. 21.
Ainda que “louvável a intenção do legislador ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas” – assim se manifestou o Ministério da Justiça (PÉRIAS, 2003, pág. 156) – o artigo 20 da Lei 10.409/02 não vingou por apresentar vício na sua elaboração, ao não especificar no art. 21 o tempo de duração das medidas aplicáveis ao transgressor (usuário ou dependente). Daí porque justificável o veto. A norma em questão contrariava preceito constitucional que regula o princípio da individualização da pena, mais precisamente o art. 5º, XLVI e XLVII, “b”, da Constituição Federal (PÉRIAS, 2003, pág. 157).
De qualquer forma, a Lei 11.343/06 introduz – por meio de inédita sistemática – novo tratamento ao usuário e ao dependente de drogas. As condutas tipificadas no art. 28 como guardar, ter em depósito, trazer consigo ou transportar drogas para consumo pessoal, estão inseridas no Capítulo III, intitulado “dos Crimes e das Penas”. Porém, o Capítulo III está compreendido no Título III, responsável pelas “atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. À semelhança do conteúdo do antigo Capítulo III da Lei 6.368/76, que tratava dos “Crimes e das Penas” – e inaugurava ali sua política de repressão – a nova Lei traz em seu bojo o Título IV (“da repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”) que contém o Capítulo II (“dos crimes”). Portanto, a Lei 11.343/06 nos oferece uma sistemática mais complexa, consistente na divisão entre Títulos e respectivos Capítulos.
Assim, enquanto que na antiga Lei de Tóxicos as medidas repressivas estavam contidas no Capítulo III (a divisão era feita tão-somente entre Capítulos), agora essas medidas repressivas têm seu espaço no Capítulo II, Título IV da Lei atual.
Obedecendo, pois, à nova ordem sistêmica adotada pelo legislador, devemos concluir que a infração descrita no art. 28 da lei 11.343/06 tem caráter preventivo, e não mais repressivo. Essa é a posição adotada por países europeus tais como a Espanha, Suíça, Holanda e Portugal (GOMES, 2007, pág. 112). A atual lei apenas seguiu esta tendência disseminada pela Europa. Destaca LUIZ FLÁVIO GOMES que, atualmente, podemos identificar no âmbito internacional diversas modalidades de políticas de prevenção e repressão do uso de drogas. Pode-se aqui citar, ainda baseando-se no trabalho do mesmo autor, o modelo norte-americano – muito repressivo, objetiva a abstinência total do uso de drogas – e o modelo europeu, agora adotado pelo Brasil – que tem por finalidade a “redução de danos”, focalizando uma política de controle e de investimento na educação (GOMES, 2007, p. 111). Assim, o art. 28 da Lei de Tóxicos não mais aplica penas restritivas de liberdade (reclusão, detenção e prisão simples) ao mero usuário de drogas. Em lugar disso, são aplicadas as seguintes medidas: “I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Por essa razão, comparece hoje um dissenso entre doutrina e jurisprudência acerca da natureza jurídica da infração descrita no artigo 28. Uma interpretação sistemática da Lei nos obriga num primeiro momento a pensar que se trata de um crime ou delito (o Capítulo III tem o título “dos crimes e das penas”). Porém, para LUIZ FLÁVIO GOMES a questão não é tão simples. Afirma ele que a infração descrita no art. 28 – que nas leis anteriores havia se constituído em delito – sofreu “descriminalização” por força do art. 1º da Lei de Introdução do Código Penal, que classifica como crime a
“(…) infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente” (GOMES, 2007, p.120).
Logo, como o art. 28 não comina nenhuma pena restritiva de liberdade ao usuário ou dependente químico, não haveria também porque se falar em delito. Para o autor, o art. 28 tipifica agora uma “infração sui generis”: deixou formalmente de ser crime por causa do art. 1º da LICP, todavia o uso de droga ainda é um ilícito (as drogas não foram legalizadas). In ipsius verbis:
“A nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou formalmente a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de ‘crime’ porque de modo algum permite a pena de prisão. O usuário já não pode ser chamado de “criminoso”. Ele é autor de um ilícito, ou seja, a posse de droga não foi legalizada, mas não pode mais receber a pecha de ‘criminoso’. Do contrário, cai por terra toda a preocupação preventiva e não punitivista da lei, em relação ao usuário. O fato de a própria lei ter intitulado o capítulo III, do Título III, como dos ‘crimes e das penas’ não impede a conclusão acima exposta porque nosso legislador há muito tempo deixou de ser técnico.” (GOMES, 2007, p. 122).
Diante de situação tão anômala, aqui poderíamos inclusive falar em abolitio criminis, mas não em legalização.
Todavia, o STF tem adotado posição diversa. A infração penal do art. 28 não deixou de ser crime. De acordo com a Excelsa Corte, a simples atenuação das penas impostas não descaracteriza o delito, já que a Constituição Federal adota em seu art. 5º, XLVI outras medidas além das penas privativas de liberdade. Além disso, o topos no qual a norma está inserida (cap. III, “dos crimes e das penas”) deixa clara a intenção do legislador em atribuir ao uso de drogas o caráter de conduta criminosa. O que houve foi a supressão da aplicação de pena privativa de liberdade – mera despenalização – o que por si só não seria suficiente para suprir o caráter delitivo da conduta (RE 430105 QO/RJ, 1º T., rel. Sepúlveda Pertence, 13.02.2007, v.u., Informativo 496).
Nesta seara, o professor GUILHERME DE SOUZA NUCCI concorda parcialmente com o entendimento sustentado pelo STF. Á possibilidade de descriminalização, apontada por LUIZ FLÁVIO GOMES, fundamentada na não-aplicação de pena restritiva de liberdade, contrapõe NUCCI a direção que é seguida pelo Direito Penal em seu atual estágio evolutivo, no sentido de abrandar as penas aplicadas ao infrator, o que tem culminado naquilo que o autor chama de “a crise da pena privativa de liberdade”. Garante NUCCI que esta tendência é verificada no âmbito mundial, aceita “pela quase totalidade da doutrina, nacional e estrangeira”. O autor também nos chama a atenção para a topografia do art. 28: sendo todo delito uma ficção jurídica e, portanto, obra da vontade do legislador, indubitável é a vontade deste no sentido de fazer da conduta descrita no art. 28 um crime, daí o título do Capítulo III: “Dos crimes e das Penas” (NUCCI, 2008, p. 299). A alegação de que a Lei de Introdução ao Código Penal impede que atribuamos ao art. 28 a natureza jurídica de crime também seria infundada. Diz NUCCI que o art. 1º da LICP tem fim meramente didático, que consiste pura e simplesmente na diferenciação entre crime e contravenção penal (NUCCI, 2008, p. 300). Por outro lado, deixa o autor de concordar com o STF na opinião referente à despenalização. “Penas existem, porém mais brandas. Houve, então, mera desprisionalização” ( NUCCI, 2008, p. 301).
No outro extremo encontra-se ALICE BIANCHINI. Enquanto NUCCI afirma não existir descriminalização ou despenalização e, de conseguinte, conclui ser o art. 28 autêntica norma penal, entende BIANCHINI que o art. 28 nem mesmo pertence ao Direito Penal, mas configura tão-somente uma infração do Direito judicial sancionador (apud GOMES, 2007, p. 135).
Independentemente deste conflito na ciência, indubitável a nova teleologia da Lei em questão, no sentido de reforçar a política preventiva, ainda que em detrimento da repressão. Como muito bem acentua ALICE BIANCHINI
“(…) a preocupação com a prevenção, a atenção e a reinserção social do uso indevido (sic) é a marca distintiva da nova Lei. Ela rompe com as anteriores por tratar a fundo essas questões, dedicando, inclusive, a ela, trinta dos seus setenta e cinco artigos” (apud GOMES, 2007, pág. 138).
Em síntese: em razão da indecisão doutrinária quanto à natureza jurídica das condutas traçadas no art. 28 da nova Lei de Tóxicos, podemos enumerar alguns posicionamentos com a finalidade de estabelecer “arquétipos”. Enquanto NUCCI e ALICE BIANCHINI representam pólos opostos, LUIZ FLÁVIO GOMES e o STF optaram pelo “meio-termo” – ainda que esses últimos sustentem opiniões antagônicas. Entretanto, o que mais chama a atenção na nova Lei é o novo tratamento despendido ao mero usuário ou dependente químico: não é aplicada a este qualquer pena restritiva de liberdade, sob circunstância alguma. Preocupou-se aqui o legislador, acima de tudo, em empregar métodos de ressocialização e prevenção.
3. ASPECTOS POLÊMICOS DO PROCEDIMENTO PENAL
3.1. Lei n. 11.343/06 e Lei n. 9.099/95
Como conseqüência da nova política de repressão/prevenção adotada pela Lei 11.343/06 – que numa interpretação teleológica acerca do conjunto nos chama a atenção pelo acentuado caráter preventivo – faz-se necessário um procedimento penal específico também modificado em alguns pontos, para a perfeita interação entre matéria e forma.
Já falamos sobre a sensível mudança de tratamento despendida ao mero usuário de drogas – o que levou parte da doutrina a considerar como não criminosa a conduta do art. 28. Em consonância ao novo aspecto teleológico da Lei, no sentido de reeducar ao invés de punir o usuário, o legislador optou por deixar de aplicar a prisão em flagrante ao delito do art. 28. Reza o art. 48, §2º, que
“(…) tratando-se de conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminho ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.”
Se indisponível o juízo competente, as providências serão tomadas pela própria autoridade policial. A prisão do agente, no entanto, está terminantemente vedada. É o que determina o § 3º do art. 48. Temos aqui, portanto, mais uma hipótese onde o agente poderá “livrar-se solto”.
Deve-se sublinhar que os §§ 2º e 3º do art. 48 são bastante taxativos ao referir-se ao art. 28 tão-somente. Assim como faz o § 1º, que prescreve a aplicação da Lei n. 9.099 de 26 de setembro de 1995 às condutas previstas no art. 28. Aqui chegamos a um dilema: embora a Lei de Tóxicos circunscreva a atuação dos §§ do art. 48 ao art. 28, não devemos esquecer que a Lei 9.009/95, após sofrer alteração nos artigos 60 e 61 – em razão da Lei 11.313/06 – passou a considerar infrações de menor potencial ofensivo todas aquelas cuja pena máxima não exceda 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. Logo, além das infrações do art. 28, estariam também sujeitas ao procedimento dos Juizados Especiais Criminais os delitos do art. 33, § 3º (“oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos consumirem”) e art. 38 (“prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”). As penas cominadas são respectivamente: detenção, de seis meses a um ano, e pagamento de setecentos a mil e quinhentos dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28; e detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de cinqüenta a duzentos dias-multa. Como se vê, as penas impostas não ultrapassam o limite previsto pelo artigo 61 da lei 9.099/95. Tal fato levou FERNANDO CAPEZ ao entendimento de que o art. 48, § 1º “merece um reparo”. Diz o autor:
“É que o art. 33, § 2º (cessão ocasional e gratuita de drogas), constitui infração de menor potencial ofensivo, de forma que o concurso dessa modalidade típica com o art. 28 (posse de droga para consumo pessoal) não afasta a competência dos Juizados Especiais Criminais, ao contrário do que dá a entender a redação daquele dispositivo, o qual, na realidade, no que tange ao art. 33, está se referindo apenas ao caput e § 1º” (CAPEZ, 2007, p. 680).
Porém, como já salientado acima, o legislador foi bastante claro no texto da nova Lei de Tóxicos ao permitir a aplicação do procedimento dos Juizados Especiais ao art. 28 (e a este tão-somente). Portanto, ainda que pese a opinião de FERNANDO CAPEZ, uma análise totalmente objetiva acerca do conjunto normativo que ora nos é oferecido leva-nos a concluir pela impossibilidade de escolher entre qualquer forma de interpretação tida como mais “justa” ou “correta”.
Logo, tudo o que podemos afirmar do ponto de vista puramente científico é que, para a solução desta antinomia normativa, podemos apenas oferecer duas soluções básicas:
I – aplica-se a regra do art. 60 a todos os delitos que a pena não ultrapasse o limite de dois anos. Esta poderia ser a solução mais acertada por dois motivos:
a) O texto do art. 60 – analisado através das regras de lógica formal – não apresenta relação com nenhum fator condicionante, ou seja, não se trata ali de um juízo hipotético. Trata-se mesmo de um juízo categórico, ao afirmar que o Juizado Especial Criminal tem competência para a conciliação, julgamento e execução das infrações penais de menor potencial ofensivo. Por ser categórico e não hipotético, o art. 60 teria obrigatoriamente aplicabilidade geral, e não aplicabilidade subordinada a alguma condição ou caso restrito.
b) Deve-se lembrar que após a superveniência da Lei 11.313/06, o art.61 condicionava a aplicabilidade da Lei 9.099/95 aos casos que não eram regidos por algum procedimento especial. Se o legislador optou por suprir esse trecho da norma, então confirma-se sua intenção no sentido de atribuir aplicação geral à Lei 9.099/95.
c) Analisada a legislação penal pátria em sua generalidade é possível concluir pela ampla utilização do princípio favor rei ou favor libertatis. Aliás, a liberdade é um direito fundamental assegurado pela Constituição, e valor máximo de todos os Estados Democráticos de Direito (abaixo apenas da própria vida). Por conseguinte, parece-nos de todo justo deixar o jus libertatis sobressair-se sobre o jus puniendi, sempre que o ordenamento apresentar as condições (ainda que mínimas) para tal.
Como conseqüência disso, aqueles que praticassem as condutas do art. 33, § 3º, e art. 38, da Lei de Tóxicos, também estariam imunes à prisão em flagrante – a autoridade apenas lavrará termo circunstanciado e encaminhará imediatamente o agente ao Juizado competente – e teriam direito à transação penal.
II – Não se aplica o art. 60 aos delitos que a Lei 11.343/06 não especifica. Tal proposição pode se apoiar nos seguintes motivos:
a) A Lei 11.343/06 é uma lei específica, enquanto que a Lei 9.099/95 tem alcance geral. E o princípio de que a lex specialis legem generalem derogat é muito difundido na hermenêutica jurídica. Uma das lições de interpretação – dentre as inúmeras – que CARLOS MAXIMILIANO nos fornece é a de que:
“(…) se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem a supremacia. Preferem-se as disposições que se relacionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata: In toto jure generi per speciem derogatur, et illud potissimum habetur quod ad speciem directum est – ‘em toda disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie’” (MAXIMILIANO, 1997, p. 135).
b) Outro princípio de interpretação bastante disseminado é o Lex posterior legem priorem derogat. A Lei 11.343/06 data do mês de agosto, dia 23, e passou a vigorar 45 dias depois; enquanto que a Lei 11.313/06 – que viria a modificar o artigos 60 e 61 da Lei dos Juizados Especiais – foi publicada em 28 de junho. Portanto, a Lei de Tóxicos é aproximadamente dois meses mais jovem. Tal fato leva-nos a crer que o legislador, ao publicar a Lei de Tóxicos, tinha plena consciência acerca do conteúdo da Lei dos Juizados Especiais, e mesmo assim optou por fazer aquelas restrições na sua parte procedimental.
3.2. Sobre a constitucionalidade do art. 59 da Lei de Tóxicos
Outro ponto bastante relevante do procedimento penal é o art. 59. Apregoa o citado dispositivo que
“(…) nos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei, o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença penal condenatória.”
A nova norma é menos rigorosa se compararmos ao que dispunha a Lei Antitóxicos de 1.976, onde não se permitia apelar sem recolher-se à prisão sob condição alguma.
Como é fácil constatar, o art. 59 apenas reproduziu em parte aquilo que o art. 594 do Código de Processo Penal já preconizava. Porém, após a positivação pela nossa Lei Maior do Princípio da Presunção da Inocência, em seu art. 5º, LVII, parece-nos inaceitável qualquer forma de privação ou restrição da liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Todavia, essa privação é assegurada pelo art. 594 do CPP e, por conseqüência disso, o mesmo pode ser dito com relação ao art. 59 da Lei 11.434/06. Esta flagrante contradição entre norma constitucional e infra-constitucional recebeu duras (e muito bem dirigidas) críticas de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO. Ensina o ilustre professor que se:
“(…) a Constituição, que é a Lei Maior, proclama que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Se não é considerado culpado, por que exigir a sua prisão antecipadamente?” (TOURINHO, 2007, pág. 67).
A seguir, completa: (…) Entendimento diverso conferirá à Lei das Leis o mesmo destino das folhas mirradas e ressequidas das estações outonais. Para que serviria, então, a Magna Carta? (TOURINHO, 2007, pág. 67).
Para o renomado autor, a prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória só se justifica a título de cautela. Realmente, a conclusão lógica deste cotejamento entre aquilo que é assegurado pela Constituição – enquanto direito fundamental – e o que é efetivamente ordenado pelo nosso diploma processual, é que, embora ainda inocente, o réu deverá ser mantido preso – o que parece representar um verdadeiro contra-senso sob o enfoque lógico, e uma gritante iniqüidade do ponto de vista moral…
Interessante notar que TOURINHO FILHO se utiliza também da teoria da pirâmide de KELSEN para sustentar seus argumentos. Segundo o grande HANS KELSEN, o direito se define como um corpo normativo – ordem normativa – que obedece uma estrutura escalonada, onde uma nota de escalão superior confere legitimidade para a norma de escalão inferior. Se remontarmos uma seqüência hierárquica de normas, conseguintemente chegaremos ao ápice, onde está localizada a Lei Maior. Acima desta se encontra apenas a Norma Fundamental (Grundnorm), de caráter lógico-transcendental, pois não é uma lei posta – tal qual a Constituição – mas pressuposta. Ela confere legitimidade à própria Constituição – a Grundnorm é chamada também de Constituição lógico transcendental, para diferencia-la da Constituição em sentido jurídico-positivo (KELSEN, 2006, p. 222).
Sob esta perspectiva, não parece haver problemas em concluir que, de acordo com a Teoria Pura do Direito, existe em nosso ordenamento uma flagrante contradição entre norma inferior e norma superior. Todavia, a questão não é tão simples. KELSEN, atento ao fenômeno da “norma inconstitucional”, não esqueceu de nos fornecer uma resposta cientifica in magna opera sua. Escreve o mais ilustre mestre da ciência jurídica que
“(…) este conflito – entre normas, seja lá qual for seu escalão – não é (…) uma contradição lógica no sentido estrito da palavra, se bem que se costume dizer que as duas normas se ‘contradizem’. Com efeito, os princípios lógicos, e particularmente o princípio da não-contradição, são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas (…) Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ou inválida” (KELSEN, 2006, pág. 229).
E, de acordo com a teoria kelseniana, se um ato subjetivo da vontade, cujo sentido é um dever-ser, tem valor objetivo, id est, se este ato equivale a uma norma geral, então ele é válido. Uma norma “inválida” não é uma norma, pois uma norma “inválida” simplesmente não existe. Se ela é válida, não pode ser contrária à Constituição, pois, como mostramos acima, o Direito é uma ordem normativa escalonada onde uma norma só pode ser válida com fundamento na Constituição. Mutatis mutandis, o art. 94 da lei de Tóxicos e o art. 594 do CPP, que são claramente válidos, estão em conformidade com a Constituição.
Na teoria de HANS KELSEN, o que se entende vulgarmente por “inconstitucional” quer significar tão-somente que uma norma é passível de ser anulada por um órgão competente – determinado na própria Constituição – se entender que a norma em exame não corresponde às determinações constitucionais – sejam essas determinações de caráter material ou simplesmente formal. Mas enquanto esta norma não for anulada por meio de um processo previsto pela própria Constituição, ela permanece válida e deve ser aplicada. Em síntese: o que se entende comumente por norma “inconstitucional” significa tão-somente que tal norma dita inconstitucional é passível de anulabilidade, mas enquanto não for anulada, é válida – e conseguintemente constitucional.
E, por fim, há quem entenda que a expedição de mandado de prisão em momento anterior ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória em nada ofende o princípio constitucional da presunção da inocência. Segundo MIRABETE, a Constituição apenas veda a inscrição do nome do réu no “’rol dos culpados’, que se inicie a execução da pena ou que se produzam outros efeitos da condenação” (MIRABETE, 2001, pág. 1261). Nesse sentido, dispõe a Súmula nº 9 do STJ que “a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção da inocência”. O mesmo entendimento é reiterado pelo STF (RT 756/489).
CONCLUSÃO
Dialeticamente, a nova Lei de Tóxicos alcançou um maior amadurecimento em relação às leis precedentes. Sua Política Criminal é notavelmente mais forte, por se compor de uma sistemática normativa mais completa. Destaca-se, nesse sentido, a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD. Destarte o legislador, sem descurar-se da realidade social, tratou de traçar novas medidas que assegurem a eficácia da lei.
Essa mesma atenção ao fator social, foi responsável pela grande novidade da Lei 11.343/06: a despenalização do delito de posse de entorpecentes para consumo pessoal – como se viu, há mesmo quem defenda a idéia de que houve a descriminalização desta infração. De qualquer forma, o espírito da nova Lei é muito mais preventivo do que punitivo, relativamente às legislações que a antecederam.
Em consonância à nova política preventiva, o procedimento penal também sofreu alterações significativas. A prisão em flagrante já não pode mais ser aplicada ao mero usuário. Todavia, a nova Lei de Tóxicos não prescreve o mesmo sobre as outras infrações de menor potencial ofensivo nela constantes, o que parece contrastar com o disposto na Lei 9.099/95. Esta antinomia pode ser solucionada por diferentes critérios de interpretação que, por sua vez, apontam para resultados contraditórios. Na impossibilidade de escolher entre o resultado “mais correto”, resta-nos aguardar a avaliação jurisprudencial definitiva.
Outro ponto digno de polêmica e controvérsias é a reprodução do art. 594 do CPP, que na opinião de TOURINHO FILHO contradiz o princípio constitucional da “presunção da inocência”. Todas as soluções apresentadas – ainda que contraditórias entre si – parecem ser perfeitamente possíveis do ponto de vista lógico. Tudo dependerá da forma de interpretação – entre as tantas possíveis – que os órgãos aplicadores da lei tenham por mais correta ou convencional.
Informações Sobre os Autores
Erika Fernanda Tangerino Hernandez.
Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina – PR; Mestre em Geografia, Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual de Londrina – PR.
Rogério Moreira Orrutea Filho
Acadêmico de Direito da Faculdade Dom Bosco de Cornélio Procópio – Paraná