Como estudantes de Direito e Enfermagem, por diversas vezes nos questionávamos se boa parte das coisas que hoje acreditamos foi mais reflexo daquilo que nossos pais acreditavam que propriamente nós entendíamos como certo ou verdadeiro. Hoje bem sabemos que é proibido roubar, mas se fosse para responder, sinceramente, qual o motivo de nós nunca termos roubado, provavelmente não saberemos dizer se foi porque lemos em algum lugar que roubar era errado e que ao ler isso tivesse criado em nós uma repulsa a tal atitude. “Ler, por si só, não quer dizer educação” (Mahatma Ghandi).
Mas sabemos que fomos influenciados, desde criança, mesmo inconscientemente, e também já na adolescência, pelos nossos pais, que “as coisas escritas outrora foram escritas para nossa instrução”, o que significava seguir um padrão preexistente de normas religiosas dotadas de legitimidade. Assim, pelo que nossos pais liam das Escrituras, pelo padrão previamente estabelecido na família, aprendemos que roubar era errado. Com o tempo, nos demos conta que aquela norma familiar, “é proibido roubar” era mesmo verdadeira, não apenas porque estava escrito, mas porque emanava de quem tinha autoridade e legitimidade para dizer o que era bom ou ruim para nós; e que nossos pais a seguiam porque acreditavam que também foi imposta por quem tinha legitimidade.
Porque a legitimidade de uma norma, civil, penal, administrativa ou religiosa, empiricamente falando, parte do pressuposto de estar a mesma em conformidade com a lei e ser autêntica, genuína, pura com relação ao fim a que se destina. Mas, se legítima é a norma apenas por seu texto estar conforme a lei, esta, por sua vez, se tornaria, ao contrário, em muitos casos, ilegítima, ou impura, haja vista a superprodução de leis, muitas delas inócuas, injustas ou inconstitucionais.
Porque “não há crime sem lei anterior que o defina”, diz o Código Penal. Significa dizer que toda conduta, condenável ou não, deve pautar-se em algum padrão previamente estabelecido. Assim, o direito não representa uma vontade absolutamente livre, mas torna-se legitimada a produzir seus efeitos porque uma norma, anteriormente definida, dá sustentação àquela decisão. Ou seja, se se pretende acobertar com a legalidade uma ação, qualquer que seja, é porque alguém, imbuído ou não dos melhores propósitos, entendeu como mais adequado considerar aquela situação, naquele determinado tempo, para determinadas pessoas como proibida ou permitida. Se equivocada ou não, se justa ou não, se tendenciosa ou não, por ser dotada de “legitimidade”, deve ser obedecida.
Porque da mesma forma que não se pode punir sem a presença de norma regulamentadora e a observância das garantias constitucionais, ninguém pode se escusar de cumprir uma lei alegando que não a conhece, ou que seu texto é ultrapassado. Pelo mesmo motivo que condenamos ou absolvemos apoiados em lei ou em nossa convicção, entendemos ou rejeitamos as decisões de um juiz que absolve um acusado, que concede a liberdade provisória ou habeas corpus, (por mais bárbaro que aparenta o crime supostamente praticado) ou ainda que ordena uma transfusão de sangue em uma Testemunha de Jeová mesmo contra sua vontade. Daí, soltar um “criminoso” aparentemente culpado ou autorizar uma transfusão sangüínea é, pois, admitir que aquele ato apenas tornou-se legal, porque amparado em lei. Porém, legítimo, talvez, não o fosse.
Porque se ainda hoje partimos de normas anteriormente definidas para legitimar normas mais recentes (lex posterior derogat priori) estaremos então a nos dar conta que, quanto mais pretérita for a norma, maior legitimidade esta haveria de ter, ainda que inferior tecnicamente, por mais se aproximar daquele – órgão ou não – que a editou (o que a tornaria autêntica, genuína) antes mesmo de qualquer influência oriunda de nossos preconceitos, interesses pessoais e egoísmo, o que acaba desvirtuando, muitas vezes, inevitavelmente, o sentido e o alcance de um texto legal. Porque, afinal, “as leis dizem o que queremos que elas dizem” (Paulo Queiroz) e nenhuma norma é hoje isenta de qualquer influência política, sobretudo.
Porque se condicionamos nossas ações à presença de leis que regulamentam ou proíbem situações, que tanto beneficiam como prejudicam os interesses pessoais dos envolvidos (como na ponderação de princípios fundamentais), então devemos partir da origem dessas leis para saber se são ou não adequadas, razoáveis ou se continuam aptas a trazer benefícios, e não apenas na subsunção ao texto legal. Para admitirmos que uma norma (religiosa ou profana) é legítima, há que se prevalecer, portanto, a mais antiga, ou a mais legítima, mais pura, mais autêntica, por ser, como visto, ausente de influências boas ou ruins.
Porque se Adão e Eva, v.g., primeiro casal humano, tivessem editado suas normas à sua prole, não haveria o menor resquício de dúvida sobre a sua legitimidade. É que se tentassem regulamentar situações que ainda não existiam – poderiam até se equivocar nessa tentativa – estariam isentos de qualquer influência, qualquer tendência de beneficiar determinado grupo ou agravar situações; ou para sustentar seus próprios interesses. Ainda mais, sendo os primeiros a editarem as normas, eles saberiam (pelo menos segundo suas convicções), melhor do que ninguém, o que era bom ou ruim, justo ou injusto para sua sóbole. Seriam suas normas, portanto, legais e legítimas.
Porque há milhares de anos temos regras básicas, consideradas como princípios desde os primórdios da Humanidade e ainda benéficas. E as leis mudam, “mas os princípios permanecem e, com eles, nosso ímpeto em segui-los” (Tassos Lycurgo), e nos foram impostos (crentes ou não) e que deles originaram todas as outras regras hoje vigentes.
Porque emanadas com cautela e extrema precisão, foram, e ainda são, esse conjunto de regras, simples de serem entendidas e aplicadas como, por exemplo, “amar a Deus”, epicentro (ou deveria ser) de todos os outros princípios e normas. Pois, quem ama (e teme) a Deus (qualquer que seja a crença) não age de forma a contrariá-lo. O mesmo se aplicando a quem amar a seu próximo; não há de prejudicá-lo porque não causaria tal prejuízo a si mesmo.
Porque neste mesmo lastro, o princípio da dignidade da pessoa humana, nada mais é que corolário de “amar o próximo como a ti mesmo”, ou ainda, da chamada Regra de Ouro (Mateus 7:12), que consiste em “fazer com o outro aquilo que gostaria que o outro lhe fizesse”, regra que perdura já por dois mil anos.
Também o princípio da reserva legal pode ser encontrado nos Escritos Sagrados (Isaías 11:3; Êxodo 9:14); princípio da inocência (Atos 28:22; Deuteronômio 19:15); princípio da taxatividade (Êxodo 20:4; 20:13; 20:14; 20:15; 20:16; Levítico 7:26,27; 26:1); princípio da igualdade e imparcialidade (Levítico 19:15; 19:35; 19:36; Deuteronômio 1:17); princípio da humanidade (Marcos 6:34; Tiago 1:27; Deuteronômio 10:19; Zacarias 7:9,10); princípio da moralidade (Efésios 4:25; 1 Pedro 2:1; Miquéias 6:11), dentre tantos outros.
Hoje nós acreditamos nas leis porque muitas delas foram baseadas em princípios bíblicos básicos, tal como “não matarás” (Êxodo 20:13). Apesar de algumas leis terem diversos entendimentos, de acordo com quem as interpreta, esses princípios básicos continuam imutáveis.
Se as leis do passado fossem cumpridas até hoje não haveria necessidade de tantas leis, “porque mais leis significa mais violação às próprias leis” (Cesare Beccaria). Se apenas duas regras essenciais fossem seguidas igualmente por todos (amar a Deus e o próximo), independentemente de quaisquer interesses pessoais ou convicção filosófica ou religiosa, por certo isso implicaria em mais felicidade para os homens. E não existiriam tantas violações aos direitos, tampouco a necessidade de se reformular e criar outras leis com punições mais severas para crimes que hoje tanto causam vergonha à sociedade.
Apesar das constantes mudanças, por mais evoluída e agradável que aparenta ser uma nova lei, nem todas as pessoas estarão dispostas a respeitar certos limites e a corrigir seu modo de agir. Porque grandes mudanças envolvem, em muitos casos, grandes transformações na vida de cada um.
Hoje nos damos conta do óbvio: que “é necessário e justo respeitarmos nosso semelhante não importa se aceitamos ou rejeitamos suas decisões” (Maísa J. Miranda). Porque quem defende ou condena um suposto “criminoso”, assim como quem aceita ou recusa um tratamento médico sem sangue, o faz baseado em regras que considera legítima, seja humanas ou divinas. Temos o direito de ser preconceituosos; mas não o de fazer dos nossos preconceitos um direito.
Porque querendo ou não, sempre existirão regras que foram e serão proibidas, como era e ainda é proibido “comer coisa alguma com sangue” (Gênesis 9:4; Levítico 19:26; Atos 15:28,29), era, e hoje ainda é “proibido roubar”, “proibido matar”. Para alguns ainda se trata de normas ilegítimas; para nós, não.
Princípio da Taxatividade
Êxodo 20:4: “Não deves fazer para ti imagem esculpida, nem semelhança de algo que há nos céus em cima, ou do que há na terra embaixo, ou do que há nas águas abaixo da terra”.
Êxodo 20:13: “Não deves assassinar”.
Êxodo 20:14: “Não deves cometer adultério”.
Êxodo 20:15: “Não deves furtar”.
Êxodo 20:16: “Não deves testificar uma falsidade contra o teu próximo”.
Levítico 7:26, 27: “Não deveis comer nenhum sangue em qualquer dos lugares em que morardes, quer seja de ave quer de animal. Toda alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do seu povo”.
Levítico 26:1: “Não deveis fazer para vós deuses que nada valem e não deveis erigir para vós uma imagem esculpida ou uma coluna sagrada, e não deveis pôr alguma pedra como peça de exibição na vossa terra, com o fim de vos curvardes em direção a ela; pois eu sou Jeová, vosso Deus”.
Princípio da Reserva Legal
Isaías 11:3: “E não julgará pelo que meramente parece aos seus olhos, nem repreenderá simplesmente segundo a coisa ouvida pelos seus ouvidos”.
Êxodo 9:14: “Deve haver um só estatuto para vós, tanto para o residente forasteiro como para o natural do país”.
Princípio da Inocência
Atos 28:22: “Achamos correto ouvir de ti quais os teus pensamentos, porque, deveras, quanto a esta seita, é sabido por nós que em toda a parte se fala contra ela”.
Deuteronômio 19:15: “Uma só testemunha não se deve levantar contra um homem com respeito a qualquer erro ou qualquer pecado, no caso de qualquer pecado que ele cometa. O assunto deve ficar de pé pela boca de duas testemunhas ou pela boca de três testemunhas”.
Princípio da Igualdade e Imparcialidade
Levítico 19:15: “Não deveis fazer injustiça no julgamento. Não deves tratar com parcialidade ao de condição humilde e não deves dar preferência à pessoa do grande. Com justiça deves julgar o teu colega”.
Levítico 19:35: “Não deveis cometer injustiça no julgamento, na medida, no peso ou na medida de líquidos.
Levítico 19:36: “Deveis mostrar ter balanças exatas, pesos exatos, um efa exato e um him exato”.
Deuteronômio 1:17: “Não deveis ser parciais no julgamento. Deveis ouvir o pequeno do mesmo modo como o grande. Não deveis ficar amedrontados por causa dum homem, pois o julgamento pertence a Deus”.
Princípio da Humanidade
Marcos 6:34: “Ora, ao desembarcar, ele viu uma grande multidão, mas teve pena deles, porque eram como ovelhas sem pastor. E principiou a ensinar-lhes muitas coisas”.
Tiago 1:27: “A forma de adoração que é pura e imaculada do ponto de vista de nosso Deus e Pai é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas na sua tribulação, e manter-se sem mancha do mundo”.
Deuteronômio 10:19: “Também vós tendes de amar o residente forasteiro, pois vos tornastes residentes forasteiros na terra do Egito”.
Zacarias 7:9,10: “Assim disse Jeová dos exércitos: ‘Fazei o vosso julgamento com verdadeira justiça; e praticai mutuamente benevolência e misericórdias; e não defraudeis nem viúva, nem menino órfão de pai, nem residente forasteiro, nem atribulado, e não maquineis nada de mal um contra o outro nos vossos corações”.
Princípio da Moralidade
Efésios 4:25: “Sendo que agora pusestes de lado a falsidade, falai a verdade, cada um de vós com o seu próximo, porque somos membros que se pertencem uns aos outros”.
1 Pedro 2:1: “Concordemente, ponde de lado toda a maldade, e toda a fraudulência, e hipocrisia, e invejas, e toda sorte de maledicências”.
Miquéias 6:11: “Acaso posso ser [moralmente] puro com balança iníqua e com uma bolsa de enganosos pesos de pedra?”.
Informações Sobre os Autores
Bruno Soares de Souza
Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG
Maísa Juliana Miranda
Acadêmica de Direito