O que não fizemos por dever humanitário, ou no mínimo, por conveniência social, forçados, agora, faremos por dever de sobrevivência!
As comunidades tal como os homens carecem ser adotadas, bem tratadas curadas em seus males, amadas. Elas precisam de espaço e tempo bem como de amor, de boa atenção para poderem crescer fortes e saudáveis. Talvez nem as pedras dispensem cuidados análogos! As comunidades mais carentes material e fraternalmente são corações e mentes facilmente alugadas e pelo menor valor possível. Uma sociedade considerada politicamente organizada (Estado) e que permite que suas comunidades se degradem tanto assim, já não merece ser reconhecida como organizada, menos ainda como Estado, senão ajuntamento social como as manadas e bandos. Essa desclassificação se acelera e se espalha pelo nosso Brasil de povo tão dócil quanto omisso, de governos tão variados quanto incompetentes ou vendidos. De fato, no Rio de Janeiro e São Paulo, cidades mais ricas e de população mais favorecidas do país é grave a degradação das comunidades carentes. Registre-se que as comunidades ricas também apresentam crimes até bem violentos, mais em níveis ainda normais.
Há décadas que muitas comunidades estão abandonadas pelo resto da sociedade circundante, pelo Estado e são usadas pelos políticos populistas, pelos contraventores-benfeitores (que ocupam e exploram o vazio de um Estado ausente). Todas as formas de exploração tais comunidades são vitimas inconscientes ou conscientes de que não resta outra opção menos indigna. Isso tudo adoece a mente o coração até das pedras! Já nem precisávamos dos traficantes globalizados, do crime organizado (aliás, apenas mais organizado que a política e a polícia[1]) para que essa triste e sinalizadora situação de degradação doesse em nossos olhos. Uma infeção mal curada ou não tratada é origem de mal maior e, às vezes, de tratamento quase inviável, sobretudo num Estado que reflete o descaso com as dores dos mais frágeis. É uma doença moral, um mal sentimental, um atestado de desinteligência: pois a fome e a miséria só aconselham o mal. Com efeito, numa mansão ninguém pode dormir em paz se a vizinhança não dorme por causa da fome e do abandono de todos.
Nossa sociedade tolera um Estado ausente que abandona nossos desfavorecidos (e que nos sobrecarrega mais que duas famílias), nossa sociedade se omite diante do quadro de degradação humana sob os olhos de todos, até porque convenientemente transfere a culpa disso para o Estado, mas nem sempre quer dividir sua agressiva opulência com os miseráveis, quiçá via caridade (às vezes mero investimento celestial: meio p/alcançar um lugar no céu! E a ética disso?).Junte a esse quadro já sombrio a fúria, a falta de compostura ética do próprio Estado-arrecadador que se esconde e esconde suas reais motivações e dolosamente sangra o povo-contribuinte, na mais gritante injustiça fiscal. Ora se próprio Estado e seus homens públicos se valem de meios inconfessáveis, mentem, desviam o foco de suas ações, como o comum dos homens, como o mais carentes dos homens pode continuar bom e virtuoso, nem no paraíso!
Agora que o ilegal, o irregular já são modas, que a ética e os princípios já parecem algo ultrapassado, que o crime e a violência, a informalidade no ganha-pão de muitos, os flanelinhas (paga ou algo de ruim pode ocorrer c/seu carro), os cobradores da paz de aluguel, os agente duplo do Estado (não só policiais, mas fiscais, lideres e até altas autoridades); agora já não são mais a exceção e sim a regra ou quase isso, enfim agora que o mal é crônico, a infecção é generalizada, todos gritam, todos querem proteções e rápidas, todos ou muitos sabem exigir pena de morte, agravamentos das penas, exércitos. Alguns ou muitos grãos de areia não podem afundar um navio, mas algumas carradas sim!
Ora, quem há de ter autoridade para falar de punição exemplar, como bem se vê nem mesmo o Estado com os seus homens atuais. Há anos vimos repetindo: a violência não é só a mostrada na TV! Não, há a violência absurda e diária contra muitos que sequer aparecem na imprensa. Violência de todas as origens, inclusive do Estado e dos políticos, do povo omisso! Há uma cultura de violência e tolerância com ela e seus subprodutos (o crime é um deles). Há muito tempo que esse fenômeno já não é mais caso de polícia, mas de política macro, de política social (onde se insere uma consistente política criminal, prevenção real do fenômeno). É um desserviço, um outro mal sinalizador permitir-se que a instituição policial seja desprestigiada por falha de toda uma sociedade, de todo um Estado. Nem a melhor polícia do mundo, com todas as armas do exército mais poderoso da terra resolveria o mal que nos abate há décadas[2].
O mal, agora, já exige tratamento amplo e mutidisciplinar, ou seja, terapia tópica de vigoroso choque da força legitima do Estado, mas bem dirigidas e bem focada (para não gerar o efeito reverso, mais danosa ao Estado e à Polícia que aos bandidos[3]) ainda que de mero efeito circunstancial e, por outro lado, um tratamento propriamente dito, isto é, intervenções profiláticas duradouras, policiais e sobretudo não-policiais (o Estado deve se transferir pro tempore para as comunidades adotadas pela criminalidade). Sucede que não há tratamento de câncer tão alastrado e insidioso que não seja a longo prazo. Contudo, os analgésicos e placebos são bem vindos posto que, se não curam (por não atacarem a causa), acalmam os sintomas/efeitos e geram um ambiente francamente favorável ao tratamento de longo curso (escola, saúde, outras presenças do Estado nas 24 horas do dia e por anos).
Não precisamos de mais discussões (acompanho estas desde 1979), de mais “faz de conta” e slogans, de mais marketing político-eleitoral (programas ocos e dinheiro público mal gasto) como solução mágica de tão grave problema. Quando o Plano Nacional de Segurança Pública foi lançado no governo passado como salvação, ou quando a novidade dos marketeiros oficiais das forças-tarefas (muitos desvios de funções legais e pouca eficiência), ou o uso das Forças Armadas no combate aos crimes (fala-se de boca cheia “poder de polícia ao Exército!”) nada além de mero analgésico : assim que retirado a dor volta porque o mal foi preservado). Diante destas não-soluções sempre nos opusemos, pois mais bravatas estatais que eficiência. O crime não se vence com canhões ou mísseis, senão apenas os criminosos – que, aliás, sempre serão substituídos por outros[4] – mas com persistentes e sérias políticas sociais. A “política” de enfrentamento, a “guerra pela guerra” que hoje algumas mentes distorcidas, mas no comando, vêm de sustentar é a derrocada final do Estado de Direito e de uma polícia que já devia estar mais preparada na base e na cúpula (a cultura policial brasileira, de todas as polícias da federal às guardas municipais incompatíveis com o atual Estado brasileiro) e consciente de suas funções e fins. A “tropa invasora” esquece que o território invadido e a população civil não pertencem ao “país inimigo”… Basta de políticas econômicas que sacrifiquem tudo e todos, como se fossem um fim em si mesmo, eis que isso se é mal para os não-incluídos, também o é para os incluídos que agora gritam por socorro e apelam até para o Exército. O que não fizemos por dever humanitário, ou no mínimo, por conveniência social, forçados, agora, faremos por dever de sobrevivência! Basta de fugir das causas e ficar só nos efeitos, na superficialidade do fenômeno que é complexo. Toda e qualquer política ou ação do Estado não pode ser um fim em si mesmo. Não é sociedade que existe para o Estado, mas exatamente o inverso. A União precisa induzir, via condicionamento de verbas a projeto consistente e de médio e longo prazo, Estados-membros, municípios e organizações comunitárias (do tipo dos conselhos tutelares) a investirem pesado em políticas sociais de base (escola, saúde, justiça, segurança inseridas no interior das comunidades já afetadas ou ainda potenciais), em combate à corrupção, sobretudo nos serviços públicos, em nova (e mais compatível com nosso Estado democrático de direito) formação policial (menos bélica, mais jurídica e de inteligência). È esse o papel decisivo da União no tema. Temos de superar essa longa crise de princípios que tem nos marcados. Parece que ninguém sabe o que deve ser feito, o que é certo e o que é errado…
Informações Sobre o Autor
Luiz Otávio de O. Amaral
advogado militante há mais de 27 anos e professor de Direito há mais 25 anos. Já lecionou na UnB e UDF. Ex-Diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente leciona na Universidade Católica de Brasília-UCB. Foi assessor de Ministros da Justiça; do Min. da Desburocratizarão/P. Rep. Secret. Nacional de Dir. Consumidor. Autor de “Relações de Consumo” (04 v.); “O Cidadão e Consumidor” (co-autor); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor, coord. Prof. Cretela Júnior (Ed.Forense) e “Legislação do Advogado”, MJ, 1985. Autor de “Lutando pelo Direito” (Consulex, 2002); e de “Direito e Segurança Pública – juridicidade operacional da Polícia” (Consulex, agosto/2003) e ainda de “Teoria Geral do Direito” (Forense, mai/04).