Resumo: O mandado de injunção foi criado pela Constituição Federal (art. 5º, LXXI), destinado a permitir a correção de omissão legislativa, sempre que disso decorrer a impossibilidade do exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania. Porém, a obtenção de julgamento favorável em ações desta natureza não implicam em imediata cessação da inércia legislativa, porque a amplitude do comando constitucional, bem como a falta de regulamentação infra-constitucional permitem interpretações várias a respeito dos efeitos de tal sentença. O presente ensaio tem por objeto a análise do mandado de injunção à luz do princípio do acesso à ordem jurídica justa e das teorias cunhadas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, objetivando encontrar a melhor solução para que uma sentença favorável nestes casos possa efetivamente entregar ao jurisdicionado um resultado útil.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Mandado de injunção. Efetividade processual.
Abstract: The injunctive writ was created by the Federal Constitution (article 5º, LXXI), to allow correction of omission from legislative, always that it involves the impossibility to pursue constitutional rights and liberty from prerogatives related to nationality, sovereignty and citizenship. However, a favorable verdict in this kind of law suit, doesn’t mean the immediate end of legislative inertness, once that the amplitude of constitutional text, as well as the lack of regulation outside Constitution, allow several interpretations about the effects of this sentence. This assay has the objective to analyze the injunctive writ and to relate it with the principle of fair access of juridical order and with the theories found in the national doctrine and judgments, in search of best solution for a favorable sentence that can give to the citizen a useful result.
1. Introdução
Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988, quando comparada com as ordens jurídicas anteriores, produziu significativos avanços na proteção dos direitos individuais e coletivos. Todavia, mesmo decorridas duas décadas de vigência da nova Carta Constitucional, muitos dos direitos nela previstos, por carecerem da obrigatória regulamentação infraconstitucional, não produzem ainda os efeitos visados pelo legislador constituinte, situação doutrinariamente denominada “síndrome de inefetividade das normas constitucionais” (LENZA, 2007, p. 763).
Causa maior espanto o fato de que o próprio ordenamento jurídico pátrio dispõe de instrumentos que se destinam a solucionar a aludida síndrome, garantindo a plena eficácia dos direitos constitucionalmente consagrados, dentre os quais destaca-se o mandado de injunção.
Esse problema tem origem na relativa abertura semântica da norma constitucional que instituiu tal instrumento processual, limitando-se a definir-lhe a hipótese de cabimento sem, contudo, definir expressamente os efeitos que dele decorrem, associada à inadequada postura dos operadores do direito na interpretação e aplicação do instituto. Nesse contexto, acabaram por prevalecer interpretações totalmente desvinculadas da necessidade de se conferir ao mandado de injunção os efeitos visados pelo legislador quando de sua criação, destituindo esse importante instrumento processual de toda a sua utilidade prática.
Neste ensaio, pretende-se uma releitura desta ação constitucional em face dos parâmetros interpretativos da processualística moderna, pautados por uma visão instrumentalista do processo enquanto meio destinado a garantir o acesso à ordem jurídica justa, mediante efetiva realização dos direitos (WATANABE, 2000, p. 20-21).
2. O princípio processual do acesso à ordem jurídica justa
2.1. Eficácia interpretativa dos princípios jurídicos
Antes da análise do princípio processual do acesso à ordem jurídica justa enquanto diretriz de aplicação das normas que regem o mandado de injunção, importa tratar da força interpretativa exercida pelos princípios no ordenamento jurídico.
A ordem jurídica, a despeito de ser composta pelas mais variadas disposições normativas, apresenta-se, ainda assim, como sistema de normas lógica e coerentemente unidas entre si (MIRANDA,1990, apud DELGADO, 1993, p. 66). Tal unidade somente se faz possível em virtude das funções prospectiva e ordenadora desempenhadas pelos princípios jurídicos, na medida em que, ao enunciarem os valores fundamentais do sistema normativo, impõem as diretrizes que condicionam tanto o legislador, no momento da criação das normas jurídicas, quanto os operadores do direito, no momento de interpretá-las e aplicá-las (DELGADO, 1993, p. 66).
Com efeito, sabe-se que as normas jurídicas apresentam-se, em regra, como enunciados dotados da generalidade e abstração imprescindíveis à abrangência da maior quantidade possível de situações sob seu âmbito de regulamentação. E por não disporem de densidade suficiente para a imediata aplicação aos casos concretos, prescindem de atividade interpretativa de seus aplicadores.
Ocorre que a aludida abstração pode resultar na incorreta interpretação dos textos normativos se isoladamente considerados, uma vez que a pobreza semântica de uma determinada norma, tomada fora do contexto jurídico ao qual pertence, ora dá margem a interpretações inadequadas às finalidades do sistema normativo, ora impossibilita que se chegue ao significado que melhor atende a essas finalidades.
É exatamente nesse ponto que emerge a importância dos princípios jurídicos enquanto diretrizes interpretativas, na medida em que impõem aplicação, ao caso concreto, da solução que melhor corresponda aos valores fundamentais do sistema normativo neles enunciados. Assim, “[…] em relação às normas de abrangência mais restrita, os sobre (princípios) exercem uma função interpretativa, na medida em que servem para interpretar normas construídas a partir de textos normativos expressos, restringindo ou ampliando seus sentidos.” (ÁVILA, 2006, p.98)
Importante salientar que os princípios constitucionais dispõem de eficácia interpretativa mesmo quando destinam-se a direcionar a aplicação de regras emanadas da própria Constituição[1]. É certo que, pelo princípio da unidade hierárquico-normativo da Constituição, as normas constitucionais não guardam entre si relação de hierarquia (BARROSO, 1993, p. 172). Todavia, não há que se falar, no caso, em distinção de níveis hierárquicos. O que ocorre, na verdade, é a diversidade das funções exercidas pelas normas-disposições, também denominadas regras, e pelas normas-princípios, ou simplesmente princípios, dentro do ordenamento jurídico constitucional. (BARROSO, 2006, p. 152).
Nesse sentido, deve-se partir da clássica lição de J. J. Gomes Canotilho, para quem as normas constitucionais podem ser classificadas em regras e princípios. Enquanto as regras caracterizam-se por apresentarem nível de abstração relativamente reduzido e aplicabilidade direta aos casos concretos, os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado, carecedores de mediação do juiz ou do legislador para aplicação ao caso concreto, constituindo fundamento de todo o sistema jurídico (CANOTILHO, 1993b, p. 166 et. seq.).
Exatamente por apresentarem abstração reduzida, as regras constitucionais têm por função precípua reger os casos específicos situados no seu âmbito de regulamentação. Os princípios constitucionais, por sua vez, apresentando maior abstração, além de servir de elemento estruturante do sistema constitucional, têm por função servir de parâmetros integrativos e interpretativos das regras, independente de emanarem diretamente da Constituição ou de disposições infraconstitucionais (BARROSO, 2006, p. 151).
2.2. Princípios processuais na Constituição Federal
A elaboração das normas disciplinadoras da vida social concentra-se nas mãos do Estado. Todavia, de nada vale a edição de normas sem que lhes seja conferida obrigatoriedade. Por isso, o Estado tomou para si o papel de garantir o cumprimento coativo das normas que elabora, mediante monopólio do exercício da atividade jurisdicional. Nesse contexto, a jurisdição apresenta-se como uma das faces do poder do Estado, consistente na possibilidade de promover a pacificação dos conflitos interindividuais mediante aplicação das normas jurídicas por ele próprio elaboradas, bem assim de impor o cumprimento obrigatório das decisões proferidas.
Por constituir expressão do poder estatal, o exercício da jurisdição não se desenvolve de maneira livre e irrestrita, porquanto uma das principais características do Estado de Direito é a submissão do exercício do poder às limitações previstas no sistema normativo, cujas linhas mestras vêm definidas pelos princípios jurídicos. Com relação ao exercício do poder jurisdicional, estas limitações expressam-se na observância obrigatória do princípio do devido processo legal (ROCHA, 1993, p. 39).
Frise-se que o princípio do devido processo legal constitui verdadeiro sobre princípio do sistema normativo processual, na medida em que dele decorrem inúmeros outros princípios “menores” (NERY JÚNIOR, 2002, p.31), previstos ou não no texto constitucional, tais como os princípios do juiz natural, da imparcialidade do juiz, do contraditório e da ampla defesa, da exigência de motivação das decisões, da publicidade e do duplo grau de jurisdição, dentre outros. A aplicação das normas processuais em consonância com o que enunciam estes princípios, além de coibir eventuais abusos pelos sujeitos da relação processual, garante que do exercício da jurisdição resultem soluções justas para os conflitos submetidos aos julgadores.
2.3. Fundamento constitucional do princípio do acesso à ordem jurídica justa
A aplicação do princípio do devido processo legal e de seus corolários, por si só, não é suficiente para propiciar o exercício adequado do poder jurisdicional. A garantia de decisões justas tornar-se-ia absolutamente inócua se fosse permitido ao Estado decidir livremente sobre a conveniência e oportunidade de exercer a atividade jurisdicional, ameaçando não apenas a eficácia do sistema normativo processual, mas de todo o sistema jurídico. Então, o acesso à jurisdição é direito-garantia (ROCHA, 1993, p. 42) que objetiva possibilitar o exercício de todos os outros direitos de cunho material (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11-12).
Com o objetivo de vedar a possibilidade de que o Estado disponha livremente sobre as hipóteses de exercício do poder jurisdicional a Constituição instituiu a inafastabilidade da jurisdição, ao dispor em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Evidenciou-se, assim, a natureza de poder-dever de que se reveste a prestação da atividade jurisdicional.
Contudo, como bem salienta José Augusto Delgado (1993, p. 67), “as normas constitucionais, por si só, são insuficientes para fazer expandir os seus conceitos com a simples expressão de seu texto”. Ainda que da leitura apressada do dispositivo transcrito decorra tão somente a garantia de acesso à jurisdição, o princípio por ele enunciado ultrapassa os sentidos alcançáveis por meio da mera interpretação gramatical de seu texto.
Isso porque a garantia de acesso à jurisdição, enquanto poder-dever do Estado, há de ser interpretada em confronto com os valores fundamentais do sistema normativo, decorrentes do paradigma constitucional vigente em cada época. Nos dizeres de Luiz Guilherme Marinoni (1993, p. 13) “as teorias acerca da jurisdição não podem ser compreendidas à distância do “espírito das épocas”, ou das idéias de Estado que as inspiraram.”.
Assim, na vigência do paradigma do Estado liberal, pautado no individualismo e na garantia de liberdades negativas ao cidadão em face do Estado, formal e abstratamente consideradas, tinha-se como suficiente a simples previsão de acesso ao judiciário. O “direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. […] O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva.” (CAPELETTI; GARTH, 1988, p. 9).
Ante a constatação de que o regime de intervenção mínima não era suficiente para garantir a efetiva implementação das liberdades em favor dos cidadãos, o sistema liberal entrou em decadência, dando ensejo à transição para o Estado do bem-estar social. Nesse novo paradigma, o direito à igualdade, antes meramente formal, começou a ser substancialmente garantido pelo Estado, mediante atuação positiva que possibilitou a efetivação dos direitos sociais básicos, tais como os direitos dos trabalhadores e os direitos à saúde e à educação.
Por conseguinte, a jurisdição, anteriormente tratada como simples acesso formal ao judiciário, ganhou novos contornos, passando a ser considerada enquanto efetivo acesso à justiça (ROCHA, 1993, p. 32) ou, na expressão cunhada por Kazuo Watanabe (1988, p. 128), acesso à ordem jurídica justa, uma vez que, conforme afirmado acima, a adequada prestação jurisdicional viabiliza a eficácia de toda a ordem jurídica.
Então, á luz das idéias decorrentes do Estado do bem-estar social deve ser interpretada a norma do art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal que, a despeito de textualmente enunciar apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição, fornece o fundamento constitucional do princípio processual do acesso à ordem jurídica justa (NERY JÚNIOR, 2002, p. 100)[2].
2.4. Conteúdo do princípio do acesso à ordem jurídica justa
Sabe-se que a garantia do acesso à ordem jurídica justa deve ser efetiva, não se esgotando mediante simples previsão normativa de prestação da atividade jurisdicional. Com o objetivo de atingir a aludida efetividade foram implementadas nos países ocidentais, ao longo do século XX, diversas inovações, ora mediante alteração dos sistemas normativos processuais, ora por meio da atuação concreta do Estado, ora pela simples proposta de uma nova postura por parte dos aplicadores do direito.
Com base nas referidas inovações, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 31) identificaram três tendências de densificação do princípio do acesso à ordem jurídica justa, à quais atribuíram o nome de “ondas renovatórias de acesso à justiça”. A primeira, tinha por objeto o provimento dos meios necessários ao efetivo acesso ao judiciário. A segunda, dedicava-se à proteção judicial dos interesses transindividuais. Por fim, a terceira onda visava difundir a necessidade de adequada prestação jurisdicional. Saliente-se que cada uma das ondas renovatórias desenvolveu-se mediante absorção dos avanços introduzidos pela anterior, e não por meio da negação das tendências que a precederam (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 68). Por conseguinte, o conteúdo atual do acesso à ordem jurídica justa compõe-se de contribuições das três ondas renovatórias, razão pela qual serão analisadas as características de cada uma delas (Cf. ALVIM, 2003).
2.4.1. Primeira onda renovatória
A primeira onda renovatória partiu da preocupação com as desigualdades sociais e econômicas entre os que necessitavam recorrer aos órgãos jurisdicionais. Constatou-se que muitos indivíduos, ao se depararem com entraves de ordem financeira, cultural e psicológica deixavam de submeter seus conflitos aos tribunais, restando prejudicado o efetivo acesso à prestação jurisdicional (Cf. MARINONI, 1993, p. 26 et. seq).
Assim, as ações inicialmente levadas a efeito em virtude das tendências difundidas por essa primeira fase de efetivação do acesso à justiça têm como alvo principal a remoção dos obstáculos financeiros impostos aos potenciais litigantes, notadamente aqueles decorrentes da obrigatória contratação de profissionais da advocacia. Para tanto, garante-se a assistência judiciária, mediante fornecimento de serviços jurídicos gratuitos aos pobres, ora mediante disponibilização de advogados contratados diretamente pelo Estado, ora mediante provimento de recursos para contratação de advogados particulares, ou ainda por meio da combinação dos dois sistemas (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 31 et. seq). Destaca-se, ainda, nessa fase da primeira onda renovatória, a tendência de garantir aos que comprovarem insuficiência de recursos a gratuidade da justiça, mediante isenção do pagamento de custas e demais despesas processuais.
Mesmo que a diminuição dos custos financeiros do processo represente significativa contribuição ao projeto de efetividade do acesso à prestação jurisdicional, mostra-se insuficiente para, por si só, garanti-la, na medida em que os litigantes potenciais, por problemas de ordem cultural e psicológica, permanecem ainda distantes do judiciário.
Nesse contexto, o primeiro obstáculo a ser vencido é o desconhecimento dos direitos materiais por seus destinatários. A simples presunção de publicidade das leis[3], decorrente do cumprimento das formalidades prescritas para sua divulgação, é insuficiente para que os indivíduos tenham efetivo conhecimento dos direitos que lhe são garantidos. Das desigualdades sócio-econômicas derivam problemas de ordem cultural, como o analfabetismo e a impossibilidade de acesso crítico às fontes de informação, o que inviabiliza a adequada compreensão das fontes formais do direito[4] e, por conseguinte, dos próprios direitos materiais delas decorrentes. Por óbvio, a ignorância dos direitos induz seus destinatários a crerem que eventuais conflitos, por não encontrarem proteção jurídica, são insuscetíveis de apreciação pelo judiciário (ARMELIN, apud MARINONI, 1993, p. 36).
Percebeu-se, então, que a prestação de serviços jurídicos visando tão somente prover o indivíduo da assistência profissional obrigatória para acesso aos tribunais é insuficiente. O Estado deve fornecer não apenas a assistência judiciária, mas efetiva assistência jurídica, disponibilizando profissionais que, além da representação em juízo, promovam a constante orientação dos cidadãos quanto aos direitos que lhes são destinados (MARINONI, 1993, p. 48 et. seq.).
Acrescente-se a essa situação o fato de que o acesso à prestação jurisdicional encontra dificuldades em questões de ordem psicológica, igualmente advindas das desigualdades sócio-econômicas. Os indivíduos desprovidos de recursos, por serem mais humildes, tendem a se sentirem inferiores e intimidados frente ao judiciário, e até mesmo em face do advogado que lhe é disponibilizado pelo Estado (MARINONI, 1993, p. 37).
Por essa razão, além de garantir assistência jurídica efetiva e integral, o Estado deve aproximar os profissionais da advocacia dos cidadãos e permitir a participação popular ativa nos procedimentos judiciais, de modo a quebrar as barreiras psicológicas existentes entre os potenciais litigantes de um lado e os advogados e juízes do outro, barreiras essas que se mostram extremamente perniciosas à concretização dos ideais de pleno acesso à ordem jurídica justa.
No Brasil os reflexos desta primeira onda renovatória fizeram-se sentir, inicialmente, na edição da Lei 1.060/50, ainda em vigor, que estabeleceu as normas para a concessão de assistência judiciária gratuita aos necessitados, mediante isenção de custas e despesas processuais e garantia de acesso a serviços jurídicos prestados por defensores dativos.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 avançou em direção à efetivação das propostas da primeira onda renovatória, ao incluir no rol de direitos fundamentais a prestação de assistência jurídica, e não meramente judiciária, integral e gratuita, aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, inciso LXXIV). Para tanto, prevê a criação da defensoria pública, órgão estatal que visa à orientação jurídica e defesa dos necessitados (art. 134). Por fim, podem ser citadas as inovações trazidas pela Lei 9.099/95 que criou os Juizados Especiais, destinados ao julgamento de causas de menor expressão econômica. A criação destes órgãos, além de diminuir os custos do processo e imprimir celeridade à sua tramitação, propiciou maior participação popular na atuação do judiciário, ao prever o recrutamento de conciliadores e juízes leigos, na condição de auxiliares da justiça[5].
2.4.2. Segunda onda renovatória
Mesmo que removidos todos os obstáculos de cunho financeiro, cultural e psicológico por meio da adequada prestação de assistência jurídica aos necessitados, os interesses de natureza transindividual permaneceriam excluídos da apreciação pelo poder judiciário, uma vez que os sistemas jurídicos processuais, desenvolvidos inicialmente sob a influência dos ideais individualistas do liberalismo, visavam tão somente à solução de controvérsias surgidas entre duas partes, em decorrência de interesses individuais de cada uma delas (ALVIM, 2003).
Os direitos transindividuais somente começaram a receber atenção da ciência processual no contexto sócio-econômico vigente a partir do início do século XX[6]. Considerando que, em várias ocasiões, os conflitos levados ao conhecimento do poder judiciário encontravam fundamento em um mesmo problema, que trazia conseqüências a um determinado grupo de pessoas, ou mesmo à coletividade como um todo, a solução caso a caso das demandas individualmente propostas, quando não era inviabilizada pela indivisibilidade do direito pleiteado, apresentava-se como dispendiosa e ineficiente. Surgiu, então, a necessidade de tratamento conjunto, em um mesmo processo, dos litígios que apresentavam a mesma origem.
Nesse contexto surgiu a segunda onda renovatória de acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49 et. seq.), que tem por escopo enfrentar o problema da eficaz representação dos interesses transindividuais em juízo, aí considerados tanto os de natureza difusa ou coletiva, quanto aqueles que, a despeito de apresentarem natureza eminentemente individual, são suscetíveis de proteção conjunta por terem origem em um problema comum, tratados pela legislação e doutrina como individuais homogêneos.
Por essa segunda onda renovatória, entende-se que para a efetivação do acesso à justiça é imprescindível a adaptação das normas procedimentais às peculiaridades das demandas que versam sobre interesses transindividuais, especialmente quanto à definição dos legitimados a ingressar em juízo na defesa desses interesses, sejam eles indivíduos, entidades privadas ou estatais, ou entes especificamente criados com essa finalidade.
Mais uma vez o sistema normativo brasileiro não se manteve distante das novas tendências de efetivação do acesso à ordem jurídica justa. Ao prever a legitimidade de todos os cidadãos brasileiros para a propositura de ação popular visando à anulação de ato lesivo ao patrimônio público, a Lei 4.717/65 inaugurou no país a sistemática da defesa judicial dos direitos transindividuais, haja vista que a proteção do patrimônio público, por ser interesse de todos os brasileiros, constitui direito de natureza claramente difusa.
Posteriormente foi editada a Lei 7.347/85 que, instituindo a ação civil pública, que aumentou o rol dos interesses difusos e coletivos passíveis de proteção judicial, além de conferir legitimidade ao Ministério Público, à Defensoria Pública, à União, aos Estados e Municípios, bem assim às autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações privadas para a defesa judicial desses interesses.
Finalmente, destaca-se a importância do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)[7] que, dentre outras inovações, prevê a possibilidade de ajuizamento de ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos.
Em nível constitucional, a defesa dos interesses transindividuais encontra previsão, por exemplo, no art. 5º, incisos LXX, que prevê o mandado de segurança coletivo, e LXXIII, fundamento constitucional da ação popular. Além disso, o art. 129, inciso III, inclui expressamente dentre as atribuições do Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos.
2.4.3. Terceira onda renovatória
Finalmente, a terceira onda renovatória nasceu da observação de que a disponibilização dos meios necessários para o acesso ao judiciário, individual ou coletivamente, não era suficiente, por si só, para garantir que a atividade jurisdicional fosse adequadamente prestada, de modo que, na prática, fossem cumpridos os seus objetivos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67 et. seq.). Se pelas inovações introduzidas pelas ondas renovatórias anteriores foi possível alcançar o efetivo acesso ao judiciário, o que se busca pela nova tendência é o acesso efetivo à ordem jurídica justa.
O exercício da jurisdição passou a ser analisado sob a ótica dos consumidores do serviço jurisdicional, interessados em que as soluções oferecidas pelo judiciário efetivamente ponham fim aos conflitos levados ao seu conhecimento e produzam da maneira mais célere, eficaz e útil os resultados práticos visados (Cf. WATANABE, 1988, p. 128). Desse novo ponto de vista decorre que o adequado exercício da atividade jurisdicional deve levar em conta tanto aspectos formais, buscando-se a celeridade na tramitação dos processos e atribuição de eficácia às decisões, quanto aspectos substanciais, mediante decisões dotadas de maior utilidade prática.
2.4.3.1. Adequada prestação jurisdicional sob o aspecto temporal
Quanto ao primeiro aspecto, há de se reconhecer que a efetivação intempestiva de um direito em muito pouco difere da sua negativa. Muitos são os direitos que não podem permanecer desprovidos de eficácia por longo período, sob pena de colocarem em risco a subsistência de seus titulares e a própria utilidade da prestação visada.
Além disso, a morosidade na prestação jurisdicional propicia o tratamento anti-isonômico dos jurisdicionados, na medida em que os custos e prejuízos advindos da maior duração do processo atingem mais severamente aqueles que detêm menos recursos financeiros (MARINONI, 1993, p. 33).
Por esse motivo, sob a influência da terceira onda de acesso à justiça, sustenta-se a necessidade de se imprimir maior celeridade à tramitação dos processos, bem assim à prolação e ao cumprimento das decisões. Para tanto, faz-se necessária a adoção de uma nova postura pelos juízes, voltada para simplificação e agilidade na prestação jurisdicional, bem assim a implementação de ações pelo Estado no sentido de aperfeiçoar a organização e a estrutura do poder judiciário, e de promover reformas legislativas voltadas, por exemplo, à criação de vias alternativas de pacificação social, tais como a conciliação e a arbitragem, à valorização do princípio da oralidade nos procedimentos, ao enxugamento dos sistemas recursais e à previsão de tutelas sumárias de urgência.
No Brasil, desde meados da década de noventa, vêm sendo introduzidas modificações na legislação processual em clara adesão a esta vertente das propostas da terceira onda renovatória de acesso à justiça. Citem-se, por exemplo, a Lei 8.952/94, que introduziu no Código de Processo Civil a nova sistemática das tutelas de urgência, prevendo expressamente a concessão de medidas satisfativas em sede de cognição sumária; a Lei 9.099/95 que, criando os Juizados Especiais, responsáveis pelo julgamento de causas de menor expressão econômica, instituíram procedimento simples e ágil, mediante atuação de conciliadores e juízes leigos; a Lei 9.307/96, que prevê a solução de controvérsias por meio da arbitragem; e, mais recentemente citem-se as Leis 11.187/05, 11.276/06, 11.277/06, 11.280/06, 11.382/06 e 11.341/06, que introduziram inúmeras modificações no Código de Processo Civil, visando conferir maior agilidade à tramitação dos processos.
Por fim, é essencial destacar que a questão da celeridade processual ganhou status constitucional por meio do acréscimo do inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45/2004, assegurando a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação a todos os litigantes no âmbito judicial e administrativo[8].
2.4.3.2. Adequada prestação jurisdicional sob o aspecto da eficácia das decisões
A garantia de rapidez da tramitação processual não esgota a noção de adequada prestação jurisdicional (ROCHA, 1993, p. 38). Além de celeridade, deve-se conferir eficácia aos resultados das demandas judiciais, por meio de medidas que garantam o cumprimento das decisões, de modo que seja entregue ao titular do direito exatamente o objeto que receberia caso fosse devidamente cumprida a obrigação decorrente da relação jurídica submetida à apreciação do poder judiciário (MARINONI, 1993, p. 87-88)
Para tanto, ganham especial atenção as reformas que objetivam promover a agilidade e a eficiência do processo executivo, tais como as que foram realizadas na legislação processual brasileira pelas Leis 8.952/94, 10.444/2002 e 11.232/2005.
2.4.3.3. Adequada prestação jurisdicional sob o aspecto da utilidade das decisões
E finalmente, mesmo que garantida a celeridade da prestação jurisdicional e a eficácia das decisões proferidas, ainda assim não se teria como implementado o acesso à ordem jurídica justa caso o provimento concedido pelo judiciário fosse destituído dos efeitos desejados quando da propositura da ação. Por essa razão, o último aspecto desta terceira onda a ser analisado constitui o ponto de convergência de todas as demais inovações implementadas pelas ondas renovatória de acesso à justiça.
Propõe uma visão instrumentalista do processo, segundo a qual a interpretação e aplicação das normas jurídicas processuais deve ser realizada tendo-se em conta que o seu cumprimento é o meio pelo qual se busca a solução justa dos conflitos, e não a finalidade última do sistema processual. Para que os conflitos sejam efetivamente solucionados, garantindo-se o cumprimento das finalidades do sistema processual, há que se trabalhar com o sistema normativo processual de modo a conferir às decisões judiciais a máxima utilidade possível (Cf. DINAMARCO, 1994, p. 297).
Com efeito, a utilidade das decisões judiciais, diferentemente das demais idéias propostas pelas ondas renovatórias, não depende, precipuamente, da atuação material ou legislativa do Estado. Nem mesmo a legislação processual mais avançada, aliada ao sistema de assistência jurídica mais eficiente, seria eficaz contra a inadequada postura dos operadores do direito. Assim, a prolação de decisões úteis prescinde, em primeiro lugar, de uma mudança de postura na aplicação das normas que regem tanto o processo, quanto o direito material, permitindo-se que efetivamente alcancem os fins a que se destinam[9].
3. Os efeitos do mandado de injunção à luz do acesso à ordem jurídica justa
Sob este último aspecto da terceira onda renovatória analisa-se as teorias sobre os efeitos que decorrem do mandado de injunção, visando identificar, dentre elas, a que resulta no provimento jurisdicional dotado de maior utilidade prática e que, portanto, melhor atende aos parâmetros traçados pelo princípio processual do acesso à ordem jurídica justa.
Para tanto, é indispensável analisar, inicialmente, o alcance do objeto deste instrumento processual, visando identificar as finalidades consideradas pelo legislador constituinte quando de sua instituição. Somente assim é possível chegar ao que se deve entender, no caso, como decisão dotada de utilidade prática.
3.1. As Omissões inconstitucionais
Elaborada sob forte influência dos ideais do Estado de bem-estar social, a atual Constituição Federal brasileira não se ateve à atribuição de competências ao Estado e à definição dos limites em que devem ser exercidas (FIORAVANTI, 2001, p. 150). Caracterizada como Constituição dirigente (PIOVESAN, 1995, p.34), traça os fundamentos básicos dos direitos sociais a serem implementados em favor dos cidadãos, fornecendo as diretrizes da atuação positiva do Estado.
A despeito de dispor extensamente sobre os direitos que visa assegurar, permitindo, não raras vezes, o seu imediato exercício mediante aplicação direta das disposições que enuncia, a Constituição não tem a pretensão de ser completa, apresentando, em vários pontos do seu texto, preceitos abertos, carentes de integração de sentido, o que lhe garante a flexibilidade imprescindível à adaptação de seu texto às novas realidades decorrentes do desenvolvimento social (PIOVENSAN, 1995, p. 21). Daí dizer-se que a Carta Constitucional brasileira classifica-se como dirigente e aberta, ao mesmo tempo.
Nos casos em que os direitos são garantidos por preceitos abertos, que apenas lhes definem as características principais, é necessária a atuação do legislador infraconstitucional na edição de normas que lhes confira plenitude de sentido, disciplinando o seu exercício.
Partindo desta característica das normas constitucionais, consistente na exigência de regulamentação legislativa para que se torne possível a sua aplicação ao caso concreto e a conseqüente produção de efeitos jurídicos, podem elas ser classificadas quanto à sua aplicabilidade (Cf. SILVA, 1999, p. 13).
Assim, se a norma constitucional, desde a entrada em vigor da Constituição é, por si só, dotada de auto-aplicabilidade imediata, produzindo ou tendo a possibilidade de produzir os efeitos a que se destina, independentemente da edição de atos normativos inferiores que lhe explicitem o conteúdo ou disciplinem o exercício, recebe a classificação de norma constitucional de eficácia plena (SILVA, 1999, p. 101).
Há hipóteses, todavia, em que a norma constitucional, mesmo regulando uma determinada matéria de maneira satisfatória, sendo, portanto, dotada de auto-aplicabilidade imediata, prevê expressamente a possibilidade de que o legislador infraconstitucional restrinja-lhes o conteúdo mediante regulamentação ulterior. Denomina-se, neste caso, norma constitucional de eficácia contida (SILVA, 1999, p. 116).
Finalmente, se a norma constitucional não apresenta conteúdo suficientemente definido que lhe confira aplicabilidade imediata e, por conseguinte, exige que sua normatividade seja complementada mediante atuação do legislador infraconstitucional, é denominada norma constitucional de eficácia limitada (SILVA, 1999, p. 82).
Nesse contexto, há casos em que o legislador constituinte, ao editar norma de eficácia limitada, silenciou sobre a obrigatoriedade da respectiva regulamentação, facultando sua edição à atuação discricionária do legislador infraconstitucional. Diferentemente, em outras hipóteses, a Constituição impõe ao legislador a expressa obrigatoriedade de proceder à regulamentação legislativa da norma constitucional (SILVA, 1999, p. 147).
Com efeito, o próprio tratamento dispensado pela Constituição aos direitos por ela assegurados, ao conferir-lhes aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º), justifica a restrição da atuação discricionária do legislador quanto à oportunidade da edição das normas regulamentadoras. Se tal liberdade fosse irrestritamente permitida, correr-se-ia o risco de que os direitos fundamentais instituídos por normas constitucionais de eficácia limitada permanecessem indefinidamente despidos de eficácia, atribuindo-se ao legislador ordinário a possibilidade de legislar negativamente em desacordo com a Constituição.
Assim, a inércia legislativa, quando inviabiliza a plena aplicação das normas constitucionais para as quais a própria Constituição prevê a obrigatoriedade de integração legislativa (Cf. CANOTILHO, 1993a, p. 354), representa verdadeira inconstitucionalidade por omissão, insuscetível de permanência em uma ordem normativa em que se garante a supremacia das normas constitucionais (Cf. KELSEN, 2000, p. 246-247).
Visando garantir a eficácia dos direitos que assegura, em face da injusta inércia do legislador, a própria Constituição Federal prevê mecanismos destinados a coibir as referidas omissões inconstitucionais. São eles a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º), que visa ao controle das omissões legislativas em abstrato, a iniciativa popular de lei (art. 61), e o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), destinado a afastar a omissão constitucional no caso concreto (SILVA, 1999, p. 165-166).
3.2. A inconstitucionalidade por omissão enquanto objeto do mandado de injunção
O mandado de injunção encontra fundamento no art. 5º, inciso LXXI da Constituição Federal de 1988, que prevê sua concessão sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania[10]. Nos arts. 102, inciso I, alínea “q”, e 105, inciso I, alínea “h”, está prevista a competência, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça[11] para o seu julgamento.
Da norma prescrita no art. 5º, inciso LXXI da Constituição Federal, depreende-se que nem toda omissão inconstitucional pode ser tomada como objeto do mandado de injunção. Exige-se que da ausência de norma regulamentadora resulte a inviabilidade do exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (PIOVESAN, 1995, p. 117-118).
Ao condicionar a impetração do mandado de injunção à inviabilidade do exercício dos direitos e prerrogativas que enumera, a Constituição Federal define claramente os fins visados pelo instituto, quais sejam, remover o obstáculo da obrigatória regulamentação legislativa e permitir ao impetrante[12] o exercício desses direitos e prerrogativas.
Importante notar, ademais, que a norma constitucional, ao se referir expressamente à inviabilidade do exercício do direito ou prerrogativa, e não à possibilidade de aplicação do direito ou prerrogativa em abstrato, confere ao mandado de injunção a finalidade de afastar as omissões inconstitucionais em concreto, e não de corrigir a ordem jurídica lacunosa, cabendo esta última função à ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º da Constituição Federal) e à iniciativa popular de lei (art. 61 da Constituição Federal) (Cf. PIOVESAN, 1995, p. 130).
Assim definida a finalidade a que se destina o mandado de injunção, passa-se à análise das teorias sobre os efeitos que decorrem do instituto, para encontrar a que melhor atende a esta finalidade, conferindo às decisões nele proferidas a maior utilidade possível e, por conseguinte, apresentando-se como mais adequada aos corolários do princípio do acesso à ordem jurídica justa.
3.3. Teorias sobre os efeitos da sentença de procedência em mandado de injunção
3.3.1. Teoria não concretista
Partindo do princípio constitucional da separação dos poderes, os adeptos da teoria não concretista[13] entendem que o juiz, ao conceder o mandado de injunção, não pode estabelecer as regras a serem aplicadas para fins de permitir que os direitos constitucionalmente garantidos sejam exercidos por seus titulares. Caso agisse assim, o juiz estaria editando normas gerais e abstratas, invadindo, dessa forma, a esfera de atuação do poder legislativo. Portanto, a sentença de procedência do mandado de injunção tem por único efeito declarar a mora do legislador na emissão da norma regulamentadora, cabendo ao juiz dar-lhe ciência da omissão, para que tome as providências necessárias para saná-la.[14]
A sentença proferida nesses moldes em nada contribui para permitir a implementação do direito ou prerrogativa carente de regulamentação legislativa, não sobrevindo nenhuma conseqüência de ordem prática para o impetrante da medida. O direito constitucional cujo exercício era inviabilizado pela ausência de norma regulamentadora, permanece destituído de eficácia, uma vez que a injunção concedida limita-se a expedir sugestão ao legislador omisso, não comportando execução específica no sentido de impor a obrigatória edição na norma faltante (BARBI, 1993, p.105) [15]. De longe, essa é a teoria que menos se adequa ao princípio do acesso à ordem jurídica justa, na medida em que retira do instituto do mandado injunção toda a sua utilidade prática (QUARESMA, 1995, p. 51).
Outrossim, a edição de normas gerais e abstratas em caráter definitivo não é a finalidade do mandado de injunção, que se destina, tão somente, a permitir o exercício do direito ou prerrogativa no caso concreto, mediante atividade integrativa do juiz, que surte efeitos provisórios e restritos às partes que integraram a lide. Não há que se falar, no caso, em ilegítima intromissão na área de competência do Poder Legislativo, mas sim no controle judicial, constitucionalmente legitimado, da injusta inércia deste poder (ACKEL FILHO, 1991, p. 127).
3.3.2. Teoria concretista geral
Por essa teoria, permite-se que o juiz, ao julgar procedente o mandado de injunção, profira decisão com eficácia erga omnes, removendo a omissão legislativa atacada e possibilitando o exercício dos direitos constitucionais carentes de regulamentação mediante edição das normas regulamentadoras, com caráter geral e abstrato.[16]
Ainda que, quando comparada com a teoria não concretista, a teoria concretista geral constitua avanço no sentido de conferir maior utilidade prática ao mandado de injunção, ainda assim não é a que se mostra mais adequada. Isso porque, se prevalecer o entendimento desta corrente doutrinária, após a obtenção da sentença de procedência disciplinando o exercício do direito garantido pela norma constitucional, o impetrante deverá ingressar novamente em juízo pleiteando o direito material cujo exercício fora outrora inviabilizado pela omissão legislativa (QUARESMA, 1995, p. 51). Dessa forma, o mandado de injunção, por si só, não seria meio hábil para viabilizar diretamente o exercício do referido direito, deixando de cumprir, consequentemente, os escopos visados pelo instrumento.
Além disso, para o controle judicial em abstrato das omissões inconstitucionais, a Constituição Federal prevê a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Partindo, então, de uma interpretação sistemática da Constituição, pode-se afastar a plausibilidade da teoria concretista geral, vez que seria ilógico e irrazoável a criação de dois instrumentos processuais com a mesma finalidade, distinguindo-os apenas pelo critério da legitimidade ativa (PIOVESAN, 1995, p. 133).
3.3.3. Teoria concretista individual
Pela teoria concretista individual, a sentença de procedência no mandado de injunção, além de disciplinar, provisoriamente (Cf. BARBOSA MOREIRA, 1989, apud MAZZEI, 2007, p. 370), o exercício do direito constitucionalmente garantido, deve viabilizar diretamente, no caso concreto, o seu exercício[17]. A norma constitucional que prevê o mencionado instrumento processual permite que o juiz remova o óbice imposto ao exercício do direito, qual seja, a necessidade de legislação regulamentadora, exercendo atividade integrativa, mediante aplicação das fontes jurídicas supletivas, de modo a conferir plena aplicabilidade ao direito ou prerrogativa carente de regulamentação (PIOVESAN, 1995, p.141).
A teoria concretista individual divide-se ainda em duas correntes: a direta e a intermediária (Cf. MORAES, 2004, p. 187). Pela teoria concretista individual direta, julgado procedente o mandado de injunção, o juiz apresenta a regulamentação a ser aplicada no caso concreto e emite ordem para que seja imediatamente viabilizado seu exercício ao impetrante, direcionada ao sujeito passivo da respectiva obrigação. Já pela teoria concretista individual intermediária, entende-se que o juiz, ao julgar procedente o mandado de injunção, deve conferir prazo razoável para que a autoridade responsável edite a norma regulamentadora prevista pela Constituição. Somente após o decurso do prazo concedido é que o juiz deve exercer a atividade integrativa, disciplinando o direito, e expedir a ordem de imediata implementação em favor do impetrante.
A teoria concretista individual, ao cumprir com as finalidades visadas pelo legislador ao instituir o mandado de injunção é a que melhor corresponde aos parâmetros interpretativos impostos pelo princípio do acesso à ordem jurídica justa, conferindo ao mencionado instituto processual a maior utilidade possível. Porém, a escolha entre as vertentes direta ou intermediária desta teoria deve ser analisada em face de cada caso concreto.
Nos casos em que, a partir do início da vigência da norma constitucional carente de regulamentação já tenha decorrido prazo claramente suficiente para a edição da legislação regulamentadora, não se justifica a concessão de nova chance ao legislador para que o faça, sob pena de se propiciar a injusta procrastinação da efetivação dos direitos constitucionais em favor de seus destinatários. Tal solução ofende os postulados da terceira onda renovatória de acesso à ordem jurídica justa, especialmente quando à necessidade de se conferir celeridade à prestação jurisdicional. Todavia, há casos em que, da recente edição de norma constitucional de eficácia limitada mediante emenda constitucional, não transcorreu prazo suficiente para a edição da respectiva norma regulamentadora. Somente em face de tal situação torna-se admissível facultar ao legislador a edição da referida norma previamente à expedição da ordem injuncional.
4. Considerações finais
Do estudo realizado, constata-se que o princípio do acesso à ordem jurídica justa é fundamental no sistema normativo, na medida em que de sua observância decorre não apenas a garantia formal de acesso à prestação jurisdicional, mas a eficácia de todos os direitos positivamente reconhecidos. Por conseguinte, constitui parâmetro interpretativo de todo sistema processual, impondo aos aplicadores do direito (especialmente legislador e órgãos jurisdicionais) uma postura instrumentalista, voltada a garantir a máxima utilidade prática ao processo. Sob essa ótica deve ser interpretada a norma constitucional que instituiu o mandado de injunção.
Partindo, então, da identificação da finalidade do mandado de injunção, qual seja, afastar omissões legislativas inconstitucionais no caso concreto, permitindo o exercício de direitos e prerrogativas dependentes de regulamentação, é possível concluir que a posição doutrinária sobre os efeitos da ação injuncional que melhor atende aos postulados do princípio processual do acesso à ordem jurídica justa é a teoria concretista individual, por melhor atender àquela finalidade.
Assim, somente a valorização desta última teoria, iluminada pela visão instrumental do mandado de injunção, pode garantir a plena efetividade dos direitos constitucionalmente assegurados em face da injusta inércia legislativa. Nos dizeres de Canotilho (1993a, p. 367): “Se um mandado de injunção puder, mesmo modestamente, limitar a arrogante discricionariedade dos órgãos normativos, que ficam calados quando a sua obrigação jurídico-constitucional era vasar em moldes normativos regras actuativas de direitos e liberdades constitucionais; se, por outro lado, através de uma vigilância judicial que não extravase da função judicial, se conseguir chegar a uma protecção jurídica sem lacunas; se, através de pressões jurídicas e políticas, se começar a destruir o ‘rochedo de bronze’ da incensurabilidade do silêncio, então, o mandado de injunção logrará os seus objectivos.”
Informações Sobre os Autores
Gil Ferreira de Mesquita
Mestre em Direito pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Professor do Centro Universitário do Triângulo (UNITRI) e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG). Advogado.
Inácio André de Oliveira
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Triângulo – UNITRI. Estudante-Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Acesso à Justiça”, da mesma instituição