1.
Introdução
Através do presente trabalho,
busca-se um conhecimento maior a respeito do instituto da Delação Premiada,
analisando suas origens e evolução, seus aspectos éticos e jurídicos, e sua
aceitação pela comunidade jurídica e social. Tal matéria é muito pouco
explorada pelos doutrinadores e possui jurisprudência ainda em formação, apesar
da grande relevância que possui para o Direito.
Delação premiada é o instituto pelo
qual um dos acusados de um crime colabora eficazmente com informações
importantes à elucidação do mesmo, permitindo a identificação dos co-autores e
a liberação das vítimas, se houverem, em troca da extinção ou diminuição da
pena.
Com o passar do tempo, as sociedades
evoluíram, se modernizaram, se estruturaram de maneira cada vez mais organizada,
permitindo o desenvolvimento de projetos e o alcance de metas até então
inalcançáveis, buscando saciar os anseios de uma população crescente e
paulatinamente mais complexa. Não obstante, os problemas cresceram na mesma
proporção do desenvolvimento das sociedades, chegando a ponto da criminalidade
se organizar, surgindo o crime organizado.
A partir da profissionalização da
atividade criminosa, com sua atuação hierárquica, sigilosa e a participação de
vários membros, em que necessariamente poucos conhecem o funcionamento e os
integrantes da cúpula da organização criminal, pessoas quase sempre bem
sucedidas e com grande poder em suas mãos, que raramente seriam descobertas
pelos métodos ordinários de investigação, é que se faz necessária a utilização
da Delação Premiada, como forma de estímulo à elucidação e punição de crimes
praticados em concurso de agentes (plurissubjetivos).
De acordo com o art. 5º da
Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos,
em seu inciso III, “ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Dessa forma,
é praticamente impossível convencer um criminoso a entregar seus comparsas, o
que resultaria na ira dos demais praticantes do crime, bem como na produção de
provas contra o próprio acusado, sem, ao menos, oferecer-lhe algum benefício em
troca.
2.
Origens e evolução
A origem da Delação Premiada no
Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, compilação jurídica que
resultou da reforma do Código Manuelino, como conseqüência do domínio
castelhano (o rei da Espanha era rei de Portugal), permanecendo vigente mesmo
após a queda da Dinastia Filipina, com a ascensão de D. João IV como rei de
Portugal.
As Ordenações Filipinas vigoraram
desde 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. Em seu Livro V,
que trata da parte criminal, o Título CXVI tratava especificamente da Delação
Premiada, sob a rubrica “Como se perdoará
aos malfeitores, que derem outros à prisão”, premiando, com o perdão, os
criminosos delatores.
Sempre combalida pelos doutrinadores
e legisladores pela sua inegável carga moral, ética e religiosa, a Delação
Premiada somente foi instituída pelo ordenamento jurídico pátrio através da Lei
nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), que em seu art. 8º, parágrafo único,
dispõe: “O participante e o associado que
denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu
desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
É bem verdade que institutos dessa
natureza sempre foram rechaçados pela tradição jurídica brasileira. Não
obstante, a partir da década de 90, quando os estragos provocados por
quadrilhas organizadas, que contavam inclusive com a participação de
empresários, políticos e altos funcionários públicos, começaram a ser sentidos
pelo Poder Público e pela sociedade, a reprimenda teve de ser à altura. Dessa
forma, ressurgia a Delação Premiada no Brasil, considerada verdadeira traição
institucionalizada.
A inspiração para emergir tal
instituto no nosso país foi buscada nos Estados Unidos (plea bargain), país que
sempre se utilizou dessa prática durante o período que marcou o acirramento do
combate ao crime organizado, e na Itália (pattegiamento),
na famosa Operação Mãos Limpas, que resultou em um processo de investigação que
permitiu ao país identificar e punir pessoas ligadas a todo tipo de escândalos
envolvendo a Máfia italiana e importantes políticos.
3.
Aspectos éticos
O ponto de partida da Delação
Premiada provoca a mais atávica repulsa moral. Com efeito, a História abomina
traidores. Muito embora a finalidade deste trabalho não seja teológica,
impossível não citar o nome daquele que, até que se prove o contrário,
destaca-se como um dos maiores traidores de toda a história, Judas Iscariotes,
que entregou Jesus a Pilatos em troca de 30 moedas de prata. Quanto à nossa
história, os brasileiros associam a imagem de traidor a Joaquim Silvério dos
Reis, que denunciou os planos dos inconfidentes mineiros em troca do perdão de
sua dívida junto à Fazenda Real.
A importância da confiança
transcende a esfera das relações privadas e atinge todo o corpo social,
inserindo-se no âmbito do interesse público. Na nossa Constituição Federal, no
parágrafo único do seu art. 1º, temos o princípio representativo: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”. Assim, inaceitável não acreditar, ainda que alguns
considerem utópico, na confiança depositada por cada eleitor em seus
representantes.
E não pára por aí, qualquer tipo de
apologia à traição é vista como uma agressão aos objetivos expostos no
preâmbulo de nossa própria Constituição, isto é, um atentado à construção de um
Estado Democrático de Direito e à própria dignidade da pessoa humana,
fundamento basilar da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF).
Indubitável a estreita ligação entre
a delação e o espírito antidemocrático, visto que na Alemanha nazista os
alemães recebiam de 2 a 3 mil delações por dia, destinadas a expor a origem
judaica de compatriotas e os hábitos subversivos de alguns indivíduos, bem como
no governo ditatorial do Brasil, marcado por inúmeras prisões efetuadas com
base em denúncias infundadas feitas ao Departamento de Ordem Política e Social
– DOPS.
4.
Aspectos jurídicos
Prescreve o art. 61, II, “c”, do
Código Penal: “São circunstâncias que
sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: ter o
agente cometido o crime: à traição, de emboscada (…)”.
Contraditoriamente, os diplomas legais brasileiros ora asseveram a traição,
como exposto acima, ora incentivam a traição, como é o caso da Delação
Premiada.
Sob o aspecto jurídico, a Delação
Premiada rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, demonstrando sua
impropriedade quanto a essa feição, visto que se punirá com penas diferentes
pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade.
5.
Legislação
O instituto da Delação Premiada está
previsto atualmente nas Leis nº 7.492/86, alterada pela Lei nº 9.080/95 (Crimes
Contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos),
8.137/90 (Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contras as
Relações de Consumo), 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), 9.613/98 (Lei de
Lavagem de Dinheiro), 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas), 10.409/02 (nova
Lei de Entorpecentes), bem como no próprio Código Penal, mais especificamente
no crime de extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º).
A previsão do instituto em estudo
nas legislações supracitadas demonstra a grande preocupação do legislador em
punir todos aqueles que, valendo-se de sua condição financeira, de seu status social e político, camuflam suas
condutas através de seus subordinados, em que muitas das vezes estes são
punidos e aqueles não.
É de se ressaltar que as legislações
que tratam da Delação Premiada possuem como conditio
sine qua non para sua concessão a eficácia das informações prestadas pelo
delator. Em termos práticos, não basta a mera delação para que o criminoso se
beneficie, deve resultar a delação na efetiva libertação do seqüestrado, na
hipótese de extorsão mediante seqüestro, na recuperação total ou parcial do
produto do crime ou, nos casos de quadrilha, associação criminosa ou concurso
de agentes, na prisão ou desmantelamento do grupo.
6.
Conclusão
Muito embora a adoção da Delação
Premiada já exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente às mais
variadas formas de ações criminosas, e demonstre a aceitação de sua
ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por
associações criminosas, a intenção revelada é positiva.
É bem verdade que a priori ver o Estado patrocinar a
delação cause ojeriza, inobstante trata-se de verdadeiro “mal necessário”, na
medida em que nenhum direito é absoluto. Com suas vantagens e desvantagens, a
Delação Premiada vem sendo largamente utilizada, às vezes com pouco ou nenhum
critério técnico, mas com resultados satisfatórios.
A delação é uma expressão que
encontra muitos opositores, eis que adquiriu conotação pejorativa, tomando o
sentido de acusação feita a outrem, com traição da confiança recebida, em razão
de função ou amizade. Todavia, em benefício de um Direito Penal funcionalista,
utilitário, pragmático e menos idealista, vem ganhando a simpatia do legislador
pátrio, inspirado na ordem jurídica de outros países, como forma de fazer
frente ao crime organizado.
Certamente a Delação Premiada
continuará sendo amplamente utilizada, independentemente de sua fundamentação
ética, e provavelmente será vista como valiosa, dada a sua utilidade e o medo
que impera da criminalidade crescente. Não obstante, tem fragilizada a sua
aceitação, reconhecida a sua inidoneidade moral e a carência de adaptação do
seu conteúdo à evolução da consciência moral de uma sociedade que privilegia a
dignidade da pessoa humana e rejeita a traição.
Dessa forma, tendo em vista o teor
eticamente reprovável da Delação Premiada e a necessidade de se legitimar a
consecução dos fins individuais e preservar o restante de dignidade do
potencial delator, acreditamos que a aplicação do instituto deve ser relativizada
e restringida sempre que possível.
Informações Sobre o Autor
André Gonzalez Cruz
Assessor de Procurador de Justiça. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Mestre em Políticas Públicas e Doutorando em Direito