Comemorando o 1º de abril (Ou “Pequenas considerações sobreo golpe de 1964”)

Inicie-se afirmando que o golpe de 1964 não aconteceu em 31 de março. A data fatídica foi a seguinte, o dia da mentira. Estranhamente, passados quarenta anos, os fatos aparecem na memória com um atípico sentido de proximidade. Não se  fale sobre o que aconteceu naquele dia, ou a partir da madrugada, no resto do país. Cada centro de influência, segundo a importância que lhe davam, reagiu de determinada maneira. Pode-se dar exemplo relevante de como o fato político acicata particularmente os cidadãos: quando Getúlio Vargas se matou  (saiu da vida para entrar na história, frase célebre), eu jurava à bandeira, num quartel qualquer do exército, deixando bem claro, agora, que o serviço militar foi das piores experiências que tive na vida. Alguém, lá em casa, achava que o menino precisava virar homem. Assim, não se tentara “quebrar o galho”, até porque havia sérias dúvidas sobre a honestidade daqueles que pretendiam interferir naquele sentido, a ponto de se cunhar no país, há muito tempo, a expressão “conto do serviço militar”. Pois bem: eu estava lá, fazendo o tradicional juramento. Empunhava a bandeira, pois os superiores haviam entendido conveniente que eu não devia ter o fuzil nas mãos. Além de arma pesada (eu saía de uma pneumonia), o soldado “Leite” não era muito confiável. Eis quando, no meio do hino nacional, surgiu a notícia do suicídio do presidente Vargas. Dali aos tempos presentes, não consegui lembrar-me se a cerimônia terminou ou não. Sinto-me, até hoje, um soldado meia-boca, pois quem faz promessas no meio-a-meio fica devendo algo à integridade do compromisso de morrer pela pátria. Fica assim como a música de Geraldo Vandré: viver pela pátria e morrer sem razão…
Voltando-se ao golpe de 1.º de abril: Naquele época, os advogados tinham razão de “lutar contra os comunistas”. A Justiça havia sido paralisada. Fóruns invadidos, juízes postos a andar enquanto arregaçavam as togas no meio das pernas, tudo organizado por trabalhadores do cais, destacando-se estivadores e arrumadores de carga e descarga nos navios. A Justiça não pode ser escarmentada. Era e é, ainda, regra sem exceções. Daí, aos 28 anos, o já advogado “Leite” foi acordado, antes do sol  nascente, para engrossar as fileiras dos resistentes. Foi uma comédia trágica. Não se sabia muito o que fazer. Sabia-se apenas que era preciso lutar contra os comunistas. Deram-me uma arma novinha, naquela madrugada. Quis devolvê-la, depois, mas o doador fingia que não a via. “Que arma?”  “Qual arma?”  Tira isso daí, rapaz, ou sumo com os dois, você e o trabuco!…
Daquela manhã cinzenta, restam os vinte anos em que mudei de lado. O soldado “Leite”, sem convicções políticas, começou a defender um ou outro “comunista” procurado, triturado ou torturado pelo regime. Lembraram-se disso a destempo, outro dia, na Câmara dos Deputados”. Prestaram homenagens a alguns sobreviventes daquela tarefa. O ofício chegou tarde demais. Veio “no bico do corvo”. Não dava tempo de mandar à lavanderia o terno de missa ou de padrinho da primeira comunhão. De qualquer maneira, na medida em que muitos estão por aí a escrever sobre o 1.º de abril (escrevem sobre a “Pagu”, que também parece fácil, mas não é), seria bom que alguns, na medida da participação de cada qual, descrevessem, com autenticidade, o que aconteceu naquele madrugada que verteu no país,  no vintênio seguinte, a chuva ensangüentada cuja umidade ainda fertiliza área indescoberta do sertão do Araguaia e, em São Paulo, o tétrico edifício, antigo DOPS, a ser transformado em museu, segundo dizem, pelo governador  (Se assim for, não vai ser bom. Ouve-se  dentro daquele casarão o eco dos gritos das almas danadas postas a chorar pelos carrascos de antanho).
Dia desses, conto meu pedaço do dia 1.º de abril de 1964. Basta, a título de fecho, uma consideração: naquele tempo, o juiz foi achincalhado sob o ferro da baioneta. Agora, sofisticadamente, o Poder Judiciário vem sofrendo golpe  pior, porque envergonhado de fora para dentro, na medida e que não se admite, num governo forte, que o juiz diga ao presidente o que o Executivo deve fazer. Curiosamente, o fenômeno tem ligação íntima, embora separada a inspiração em quase meio século. O controle externo do Poder Judiciário é uma espécie de mordaça.Dificulta ao   magistrado, em certa medida, o  agir contra o rei. Sempre foi assim. Basta procurar a lição da história.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 

Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.

 


 

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