1. A definição de instituto obrigação e seus elementos constitutivos.
Desde os mais remotos estudos jurídicos, tem-se por bem nítida a idéia de que obrigação representa uma ligação, uma junção, uma conexão entre pólos de uma relação em torno de um objeto. Apesar da equivocidade do termo obrigação tanto na ciência do direito quanto nas outras ciências sociais, o sentido que será adotado aqui será exatamente este, o de ligação, pois amparado na doutrina em diversos momentos histórico-sociais. Portanto, até por um impulso espontâneo e alheio à razão, tende-se a entender obrigação como um liame, um vínculo, uma união. Contudo, tal vínculo dar-se-á entre pessoas em posições divergentes, com sujeição de uma em face do proveito de outra, em torno de um objeto que é a prestação.
Como já afirmamos, este conceito de obrigação tende a ser algo imanente à própria idéia etimológica, pois da perspectiva da rigidez formal do Direito Romano ou do enfoque transcendental religioso medieval, ou ainda, da influência socialista do Direito Moderno, conclui-se que a obrigação não diverge em seus elementos essenciais[1].
Desta forma, já era prevista nas Institutas que “Obligatio est iuris vinculum quo necessitate adstringimur, alicuius solvendae rei, secundum nostrae civitatis iura”[2], entendendo o Professor CAIO MÁRIO que ao excluir-se a última parte desta definição (secundum nostrae civitatis iura) aplica-se perfeitamente a mesma hodiernamente[3].
OROZIMBO NONATO, citado por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, também entende que tal exclusão faz-se necessária em face da formulação de um conceito vivo de obrigação[4], ou seja, aplicável atualmente.
Todavia, mais esclarecedora é a opinião de PAULO, já vertida por CAIO MÁRIO, que consiste em “a substância da obrigação não em sujeitar a própria pessoa do devedor ou fazê-lo servo do credor, mas em constrangê-lo a uma prestação abrangente de uma dar ou um fazer”[5]. Salienta-se nesta definição os aspectos de sujeição do devedor, do objeto da obrigação e do objeto da prestação.
Não entra em desarmonia com a anterior, a solução de ORLANDO GOMES para o problema definitório de obrigação, senão, vejamos: “obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito de outra”[6].
No mesmo vetor, acerca do mesmo ente cognitivo, VITTORIO POLACO, “Relação jurídica patrimonial em virtude da qual o devedor é vinculado a uma prestação de índole positiva ou negativa para com o credor”[7] ; GIORGI, “um vínculo jurídico ente duas ou mais pessoas determinadas, em virtude do qual uma ou mais delas (devedor ou devedores) são sujeitas à outra ou às outras (credor ou credores) a fazer ou não-fazer qualquer coisa”[8]; também não distoam desta vertente os paradigmas nacionais, estes e aqueles, todos citados por CAIO MÁRIO, como a seguir: CLÓVIS BEVILÁQUA, para quem obrigação é uma “relação transitória de direito que nos constrange a dar, fazer ou não-fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós esta ação ou omissão”[9]; WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, que encerrou sua definição ressaltando o caráter de garantia patrimonial na obrigação, como a seguir se observa : “O obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”[10]; COELHO DA ROCHA, de forma sucinta, porém não menos completa, “vínculo pelo qual alguém está adstrito a dar, fazer ou não fazer alguma coisa”[11], e, sempre figurando como citador, agora passa a ser citado, CAIO MÁRIO : “obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente viável”[12].
Esta linha de raciocínio também é seguida por um dos grandes tributaristas da atualidade, verdadeiro expoente no ramo do Direito Tributário, o Professor LUCIANO AMARO, para quem obrigação é “a relação entre devedor e credor, ou melhor, a relação entre pessoas, por força da qual se atribuem direitos e deveres co-respectivos (dever de dar, fazer ou não-fazer, contraposto ao direito de exigir tais comportamentos)”[13].
Amiúde, como não poderia prescindir em qualquer estudo da Ciência Jurídica, encerramos este ciclo de definições embasantes à nossa vertente de pensamento, com a lição sempre magistral de PONTES DE MIRANDA, que, citado pelo próprio Professor AMARO, ensina-nos que obrigação stricto sensu é “a relação jurídica entre duas (ou mais) pessoas, de que decorre a uma delas, ao debitor, ou a algumas, poder ser exigida, pela outra, creditor, ou outras, prestação”[14].
Assim, formulamos a definição de forma exordial de que obrigação é um liame entre pólos de uma relação jurídica em torno de um objeto prestacional, genetriz de sujeição relativa a um dever contraposto ao direito de exigir.
Portanto, de forma analógica, supúnhamos que cada definição dada fosse uma árvore frutífera denominada obrigação e ao percorrer o pomar vemos que é tempo da colheita e as árvores estão apinhadas de frutos. Famintos que estamos percebemos que todas as árvores, sem exceção, contêm os frutos deliciosos que mais desejamos, assim, retiramos de todas elas a relação jurídica, o vínculo jurídico, a prestação e a sujeição, bastantes para que nos saciemos. Resta-nos agora aprofundarmo-nos a fim de extrair o sumo e as sementes destes frutos.
Destarte, exposto às escanchas o entendimento cognitivo acerca do ente obrigação partamos aos seus elementos essenciais que nos interessam mais de perto, salientando, an passant, que não há que se confundir, neste momento, obrigação com dever jurídico, ou seja, aquela não é uma espécie deste gênero, reafirme-se, não é esta a relação, antes é uma relação entre categoria formal estudada pela Teoria Geral do Direito (dever) e categoria dogmática dependente do corte epistemológico de aplicação (obrigação). Conseqüentemente, o estudo da obrigação é baseado no direito positivo que lhe fixa os pressupostos e contornos materiais gravando-a do caráter de ente jurídico-positivo em contra-senso à categoria lógico-jurídica[15].
É pacífico na doutrina que o objeto direto e imediato da obrigação é a prestação consistente em um dar, fazer ou não-fazer, que seriam o objeto mediato da obrigação e imediato da prestação[16]. Separa-se virtualmente o objeto da relação do bem material, da ação humana ou omissão, abstinência. Adicione-se que o objeto da obrigação, ou seja, a prestação, deve ser possível, lícito, determinável e, para alguns, patrimonial. A possibilidade deve englobar tanto a material quanto a jurídica. Quanto ao caráter patrimonial, os que entendem necessária a sua presença, dividem-se em aqueles que a vislumbram revestida da pecuniariedade em si, enquanto os outros admitem a via indireta de estipulação da pena em face do descumprimento. CAIO MÁRIO adverte que a atenção, o proveito do credor pode ser diverso, mas a prestação deve ser avaliável em dinheiro[17].
O vínculo jurídico é o elemento presente em todas as definições e necessário à apreciação perfeita do tema em comento. Tal liame, considerado como elemento interno de uma relação jurídica obrigacional, é decomposto pela doutrina moderna em um dever prestacional e em uma garantia ou responsabilidade relacionada a este dever. Esta distinção tem origem no direito antigo romano, o qual diferençava o debitum e a obligatio na obrigação.
O debitum correspondia ao objeto mediato da obrigação e imediato da prestação, enquanto a obligatio era o elemento coativo, constrangedor, aquele que forçava o adimplemento daqueloutro. Esta teoria ressurgiu em searas tedescas graças ao estudo de BRINZ, que reconfigurou a obligatio atribuindo-lhe, não a essência de dever jurídico, mas a característica da responsabilidade vinculada ao devedor em face do inadimplemento do seu dever[18], assim, restou nomeada a obligatio de Haftung e o debitum de Schuld. Procede daí a afirmação de que estes elementos surgem em momentos diversos no iter obrigacional, ou seja, o dever de prestar, debitum, Schuld, nasce concomitantemente com a formatura do liame obrigacional, enquanto a responsabilidade, garantia, ou ainda, a sujeição, exsurge em face do não-cumprimento da prestação[19].
ORLANDO GOMES disseca o conceito de obligatio em “sujeição do devedor, na ordem patrimonial, ao poder coativo do credor”, dissociando quaisquer dúvidas que surgiram a respeito de sua natureza jurídica[20].
Destarte, a responsabilidade emerge em circunstancia dúplice, isto é, a priori tem caráter preventivo assecuratório e potencial, a posteriori, efetivo e garantidor em virtude do real inadimplemento.
Repise-se que, mesmo em se reconhecendo que na maioria das vezes os elementos Haftung potencial e Schuld coexistam na obrigação, há exceções, inclusive em relação à Haftung efetiva, a qual somente vem à tona quando do descumprimento do Schuld. Há ainda, depreendido da lição ORLANDO GOMES, relações jurídicas obrigacionais, nas quais não coexistem estes dois elementos, assim : debitum sem obligatio (obrigação natural), obligatio sem debitum atual (fiança) entre outras[21].
As críticas à teoria da estrutura dualista da relação obrigacional adotada neste estudo, antes de servirem de empecilho às nossas conclusões, reforçam-nas, pois o que queremos demonstrar é exatamente a apartação entre dever e responsabilidade e que estes dois elementos surgem em momentos diversos, se não, observe-se a tese tradicional da estrutura monista, em face da qual a idéia de responsabilidade é exterior à estrutura da relação obrigacional reverberando no momentum sancionatório ou de garantia , ente de forma e não fundo.
Também, em adendo, não se pode olvidar a Escola dos Processualistas, citada por CAIO MÁRIO, em que CARNELUTTI, LIEBMAN e ALFREDO BUZAID, propugnam pela vertente de que a Haftung é elemento publicístico, ou seja, processual, e que não compõe o direito subjetivo em virtude de transfigurar-se no direito de ação[22].
Portanto, fixe-se que, em se tratando da análise do fenômeno jurídico obrigação, esta se compõe de dois elementos, o dever de prestar e a responsabilidade em relação a este dever, além de que, o surgimento destes elementos se dá em momentos distintos dentro do iter obrigacional. É o que é importante registrar agora.
2. A qualificação tributária no conceito de obrigação.
Quando se adjetiva uma obrigação de tributária, inapelavelmente emerge um questionamento acerca do que se acrescenta ou se retira da mesma para diferençá-la de uma obrigação de Direito Privado. Como todo elemento que serve de objeto de análise da Ciência Jurídica recebe sobre si diversas correntes de pensamento, no caso sob testilha não haveria de ser diferente. Desta maneira há quem entenda haver uma diferença total entre as obrigações tributárias e as de Direito Privado e há, no outro extremo, aqueles que propugnam por uma completa identidade entre ambas. Do entremeio destes pólos doutrinários, isto é, do seu intervalo epistemológico, extraímos a corrente defendida por ALCIDES JORGE COSTA, o qual sustenta a tese de que “existe uma identidade estrutural entre a obrigação tributária e a de direito privado e que as diferenças entre ambas resultam das funções que têm”[23].
Vogando nestas águas, entendemos que o elemento distintivo entre ambas obrigações é que o objeto da obrigação tributária é a prestação de cunho tributário sobre a qual há o vínculo jurídico entre o sujeito ativo (Fazenda Pública) e o sujeito passivo (contribuinte). Tal prestação em face de seu objeto divide a obrigação tributária em principal (dar o tributo) e acessória (fazer, não-fazer ou tolerar algo de natureza instrumental tributária).
Neste mesmo sentido a lição do Professor LUCIANO AMARO que brilhantemente ministra verbo ad verbum : “É pelo objeto que a obrigação revela sua natureza tributária”[24].
Reitere-se, portanto, que existe uma identidade estrutural entre as obrigações de direito privado e as tributárias. Definamos então obrigação tributária como a vinculação jurídica entre sujeito ativo e sujeito passivo de uma relação jurídica centralizada em um objeto prestacional de natureza tributária, geradora de sujeição relativa a um dever contraposto ao direito de exigir.
Saliente-se que o gravame de involuntariedade na definição se refere ao caráter ex lege do nascimento da obrigação tributária. Assim, prescinde de qualquer manifestação volitiva do sujeito passivo o surgimento da obrigação tributária, ao contrário do que ocorre maciçamente em relação às obrigações de Direito Privado. Contra-argumenta-se que a origem de todas as obrigações é a lei. Não é errônea tal assertiva, todavia, há que se diferenciar fonte imediata de fonte mediata. Desta forma, todas as obrigações têm como fonte mediata a lei, porém, nas relações tributárias, o fato gerador descrito em lei é suficiente e necessário, ou seja, bastante para que surja a referida obrigação tributária.
Como espeque fundamental, PAULO DE BARROS CARVALHO entende que ao tornar-se concreto o fato previsto no descritor da regra de incidência, surge a relação jurídica de conteúdo patrimonial, a saber, a obrigação tributária[25].
3. A natureza jurídica da obrigação tributária acessória. Uma nova síntese a partir de uma crítica à teoria carvalhiana.
É sabido e ressabido que os manuais de Direito Tributário definem a obrigação tributária acessória como uma obrigação de fazer, não-fazer ou tolerar, sublinhando sempre o seu caráter instrumental, formal e acessória à obrigação principal[26].
É cediço ainda que o fato gerador da obrigação acessória, até por definição legal, é qualquer situação que torne obrigatória a prática ou a abstenção de atos, desde que não se transfigurem em obrigação principal, isto é, qualquer ocorrência fática prevista na legislação tributária que imponha um fazer, não-fazer ou tolerar de natureza tributária excluída a obrigação de pagar o tributo (obrigação principal).
Podemos, desta forma, afirmar que o momento em que a obrigação tributária acessória exsurge é o mesmo em que se dá a ocorrência do respectivo fato gerador, ou, como prefere o Professor LUCIANO AMARO, no momento da ocorrência do “pressuposto de fato legalmente definido”[27].
Lançados os pressupostos epistemológicos acerca da obrigação tributária instrumental, procuremos nos imiscuir neste instituto tributário entendendo como tese a doutrina de PAULO DE BARROS CARVALHO e como antítese a crítica de ARIANO SOARES DA COSTA à teoria carvalhiana, para atingirmos a síntese que reterá o que ambas encerram de legítimo.
A norma jurídica tem por escopo regular comportamentos humanos, e neste espectro abrangente de todas condutas socialmente relevantes, somente há possibilidade de agir a norma em tríplice viés, ou seja, permissão, proibição ou obrigação. Este é o princípio deontológico-jurídico do quarto excluído, o qual indica que não há hipótese externa às três modalidades em que o comportamento humano pode ser regulado, ou com exprime o Professor JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: “Não há outro modal deôntico que lhe possa ser referido”[28]. Na mesma direção segue a doutrina do Professor LOURIVAL VILANOVA, citado pelo mesmo Professor BORGES como subsídio ao seu pensar, senão, vejamos: “Sob o ponto de vista sintática e semântico do sistema de posposições normativas do Direito, a conduta que não estiver proibida ou não for obrigatória, é permitida. Quarta possibilidade não se dá.”[29].
Diante disto, pode-se absorver que a norma jurídica possui um conteúdo prescritivo que não se confunde com o enunciado lingüístico que lhe dá suporte, neste sentido já nos manifestamos em outro momento, quando da análise do problema definitório da realidade jurídica, baseados na crítica à teoria do significado de WILLIAM P. ALSTON, que “ministra que o limiar da percepção do objeto será a sensação que este objeto causará no momento da percepção e, através de dados empíricos apreendidos formular-se-ão idéias simples geradoras de idéias complexas”[30]. Na mesma ocasião afirmamos que tal teoria “entifica a idéia ao configurar a passividade da mente humana em relação à mecânica do processo cognitivo, que acreditamos ser a inversão a veracidade, visto que a mente humana é criadora de conceitos, pois a formulação de figuras ideais restaria impossibilitada caso a cognoscência humana no ato intelectivo passiva fosse”[31] e que “o conceito é a priori, a idéia independente da linguagem, que é agente[32] da transmissão daquela, porém, as palavras têm um significado imposto, observado no processo comunicativo educacional onde são apreendidas as grandes partes das idéias dos indivíduos, as quais não são coisas de fatos, mas a utilização da linguagem pelas pessoas”[33], para finalmente concluir que “a comunicação humana não atingiu o máximo de excelência na tarefa de transmitir conceitos através dos signos, das definições, pois do ato perfeito do cognitivo humano contrapõe-se o imperfeito lingüístico do qual se utiliza”[34].
Todavia, mesmo em se admitindo esta imperfeição do formal lingüístico, não se pode negar ao mesmo discrímen fenomênico positivo aperfeiçoável; a norma jurídica enquanto disposição está posta e é sobre ela que devemos laborar em busca de sua outra face, qual seja, o comando prescritivo proibitório, obrigatório ou permissivo respeitante aos limites impostos pelo princípio do quarto modal deôntico excluído.
Desta laceração epistemológica da norma jurídica em enunciado textual e significativo, RICARDO GUASTINI, citado por SOARES DA COSTA, extraiu a idéia de que a produção normativa é produto da hermenêutica sendo o agente desta ação criativa o intérprete enquanto órgão de aplicação[35]. Ressalte-se que esta orientação vai de encontro à tese de lavra do Professor VILANOVA de que a norma jurídica é um prius em relação à sua aplicação, é objeto cognoscível extraído de uma, nas palavras do ilustre Professor, citado por COSTA, “significação vivenciada intersubjetivamente”[36].
O importante é que sendo o destinatário das normas jurídicas o órgão aplicador de GAUSTINI, ou os sujeitos cognoscentes comunicantes de VILANOVA em face da função de “produzi-las”, o quid que se apresenta é qual a repercussão disto perante as obrigações tributárias acessórias no tocante ao surgimento e ao descumprimento das mesmas. Vejamos o que, citado por COSTA, ensina-nos, a respeito deste assunto, o Professor PAULO DE BARROS CARVALHO: “ao captar a mensagem normativa, o destinatário da norma terá, em sua mente, uma representação : se ocorrer o fato F, no plano da realidade tangível, deve-ser a conduta C, do sujeito S2 perante o sujeito S1. o dever-ser encerra aí seu percurso, porque diante dessa representação o destinatário vai orientar-se de acordo com as determinações de sua vontade, que poderá manifestar-se tanto no sentido da conduta prescrita, como no de seu descumprimento. Rompe-se o fio do dever-ser e passamos a lidar com a figura do ser”[37]. Esta clássica passagem da obra do referido autor, concebida em momento de incomum inspiração intelectual, é de suma importância dos conceitos a serem desenvolvidos doravante. Por conta disso, roga-se especial atenção à mesma.
Para a teoria carvalhiana, há um abismo intransponível entre o mundo do dever-ser e o mundo do ser, ou seja, nunca a linguagem toca o objeto, não há trânsito livre entre as esferas deôntica e comportamental. Tal segregação terá sentido reverberante quando da análise do processo de positivação do Direito. Contudo, voltemos um pouco aos fundamentos embasadores desta teoria.
Apoiado em JÜRGEN HABERMAS, ROBERT ALEXY e TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR, PAULO DE BARROS CARVALHO sustenta que há diferença conceitual entre fatos e objetos da experiência. Os fatos traduzem-se em enunciados lingüísticos sempre com referência a um objeto de experiência que, sendo algo de existência relativamente real, pois posso afirmar algo falso, serve de elemento de aplicação da linguagem não-objetivo, já que há necessidade de sua confirmação contextual e intersubjetiva, além de um juízo de autenticidade ou validade. Destarte. Os enunciados podem ser prescritivos ou descritivos, e, do juízo de autenticidade ou validade sobre os mesmos, respectivamente, surgirão, inapelavelmente, enunciados verdadeiros ou falso e válidos ou não-válidos[38].
Assim, sobre a linguagem, enquanto conjunto de enunciados, social apõe-se o que o grande tributarista chama de “linguagem do direito positivo”[39]. Tal linguagem do direito posto se consubstancia em um discurso prescritivo de condutas genetriz dos fatos jurídicos[40].
Por conseguinte, para que haja fato jurídico, ou melhor, para que se afirme que aconteceu, para esta doutrina, um fato jurídico, é necessário levá-lo a efeito por meio da incidência da linguagem do direito positivo sobre a linguagem da realidade social, agindo assim o Direito como uma metalinguagem sobreposta à linguagem social, somente atingindo o universo comportamental de maneira indireta, pois entre os dois universos (deôntico e comportamental) exsurge o obstáculo lingüístico enunciativo prescritivo[41].
Ressalte-se ainda que o citado autor pugna expressamente pelo princípio da auto-referencialidade da linguagem no âmbito das teorias retóricas. Desta defesa resulta o caminho da especialização, o afunilamento epistemológico das normas jurídicas, que se origina da ampliação globalizada, abrangente e não-sensível que vai ao encontro da especificação, da particularização, da singularização em nível de substantividade, ou, com esclarece invulgarmente o artífice das searas tributárias, “a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de uma norma individual e concreta”[42].
A faticidade jurídica seria obra da linguagem em níveis de densidade relativos às normas jurídicas individuais e concretas presentes no descritor da norma geral e abstrata. Assim, é fato jurídico tanto a proposição formal prevista na norma geral e abstrata, quanto o antecedente de uma norma individual e concreta[43].
Repise-se que, se a linguagem de expedição é a linguagem é a linguagem de Direito Positivo, necessariamente, as normas derivadas serão lingüisticamente jurídicas, refletindo-se que os eventos naturais são, ao mundo do Direito, trazidos, pela mão transformadora de sua natureza, um enunciado formal, jurídico e denotativo, veiculado no antecedente de uma individual e concreta norma jurídica.
Frise-se que estamos ainda em terras carvalhianas e nestes domínios não se concebe que, em sendo o Direito um conjunto de normas prescritivas, que os fatos jurídicos confundam-se com os fatos sociais, pois aqueles são introduzidos em uma nova dimensão por meio das normas individuais e concretas constituindo-se em enunciados prescritivos[44].
Extrai-se daí que os atos de cumprimento ou descumprimento da prescrição sem a expedição do enunciado em linguagem competente, se constituem em meros fatos sociais[45].
A crítica a esta conclusão vem de ADRIANO SOARES DA COSTA que, primeiramente baseado em HANS KELSEN, defende que o cumprimento ou não de uma norma no plano social relaciona-se com o universo deôntico em uma perspectiva de eficácia da norma em cuja conduta humana têm seu objeto e finalidade regulatória[46].
Entende HANS KELSEN que não há arbitrariedade imaginativa na produção das normas jurídicas, arbitrariedade esta tomada no sentido de desvinculação com a realidade fático-social, sendo esta o conteúdo que valida uma norma, sendo ainda vetor da criação e aplicação da mesma. Não é exigida ainda a adequação conformativa absoluta entre as condutas reguladas e a norma reguladora, antes, é imprescindível o desalinho para que seja gravado de significado o ordenamento jurídico. O grau de correspondência entre a ordem jurídica e a realidade é que vai ditar o nível de validade daquele[47]. Admite KELSEN um intervalo limitado verticalmente, o que contraria a teoria carvalhiana, a qual só enxerga duas hipóteses: válida e não-válida.
ADRIANO SOARES DA COSTA encontra amparo ainda, em face da crítica à teoria carvalhiana que faz, em HANS NAWIASKY, para quem “Um direito apenas abstrato, no plano do enunciado é a negação do próprio direito, porque não atinge nunca o seu escopo”[48].
Podemos afirmar neste momento que a teoria carvalhiana, ao promover a restrição da realidade jurídica a um conjunto de enunciados prescritivos (normas gerais e abstratas e individuais e concretas), foi forçada a admitir como normativos, prescritivos, os fenômenos sociais de (des)cumprimento não veiculadores de normas individuais e concretas [49], v.g., a escrituração ou não de livros obrigatórios, a emissão ou não de notas fiscais, exigindo a cognição do Fisco a fim de positivá-las[50].
Indo de encontro a esta posição adotado por PAULO DE BARROS CARVALHO, o Professor LOURIVAL VILANOVA, citado por SOARES DA COSTA, sustenta, em favor de que, em relação ao Direito, “o dever-ser, sem perder sua especial constituição normativa, se relacione com o ser”[51], concluindo mais adiante que “a essência do direito não reside em ser um sistema de normas, mas em um sistema de normas em efetividade, em progressiva realização. Importa, para uma integral compreensão científico-empírica do Estado, não só o normativo, mas também o fato, não só a proposição como entidade lógica, mas a observância da prescrição proposicional porparte dos sujeitos cuja conduta pretende regular”[52].
Resta citar que, em paralelo aos fatos jurídicos, na teoria carvalhiana a relação jurídica também exige a produção da norma individual e concreta cujo enunciado do conseqüente constituirá o chamado fato-efeito[53].
Neste momento, não podemos comungar do purismo lingüístico do Direito da teoria carvalhiana, pois, no que tange às obrigações acessórias, somos premidos a admitir que os deveres instrumentais tributários têm incidência no espectro jurídico do sujeito passivo abstraindo da necessária expedição veiculatória da norma individual e concreta pela qual propugna PAULO DE BARROS CARVALHO.
Neste diapasão, os deveres instrumentais tributários são previstos nas normas gerais e abstratas que fazem nascer a relação jurídica obrigacional acessória tributária em face dos fatos previstos no antecedente daquelas.
Se não fosse desta forma, como explicar o surgimento de uma obrigação acessória através da veiculação de uma norma individual e concreta expedida pelo próprio sujeito passivo em uma espécie de autonormatização, ou uma auto-sujeição obrigatória não-volitiva ? Como explicar que no caso de descumprimento do dever instrumental ou omissão do sujeito passivo incida a norma sancionatória sem que haja previsão do seu cumprimento, ou melhor, de onde adviria tal dever que não de uma norma geral e abstrata?
Não há que se confundir o adimplemento ou o inadimplemento de um dever com o próprio dever adimplido ou inadimplido. É uma relação de prius e posterius. São prius os deveres instrumentais que exigem a observância de determinada conduta e posterius os fenômenos fático-sociais no plano da análise da observância ou inobservância de deveres positivos postos[54].
Eduzimos, portanto, que as obrigações tributárias acessórias vinculam a conduta do sujeito passivo diretamente da ocorrência dos fatos previstos no antecedente de uma norma geral e abstrata. Esta vinculação de conduta tem o sentido de relação jurídica obrigacional. A outra conclusão não chegou o jurista ADRIANO SOARES DA COSTA, senão, vejamos: “se a norma geral e abstrata atribui competência ao contribuinte, pela causalidade jurídica, faz nascer para eles deveres que não decorrem de nenhuma norma individual e concreta”[55].
Finalmente podemos concluir novamente com a afirmação lançada em linhas transatas de que o dever instrumental ou a obrigação tributária acessória exsurge no mesmo momento da ocorrência do respectivo fato gerador, qual seja, o previsto no antecedente de uma norma geral e abstrata. Melhor explicando: da distinção em relação à obrigação tributária principal da obligatio (responsabilidade) e do debitum (dever prestacional) cujo objeto é o tributo, podemos afirmar que este nasce com a ocorrência do fato gerador da obrigação principal, enquanto que a obrigação acessória tributária (fazer, não-fazer ou tolerar) exsurge com a situação prevista na legislação aplicável (fato gerador do dever instrumental) que pode ser anterior, concomitante ou posterior ao cumprimento da obrigação principal.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Ricardo Kuklinsky Sobral
Procurador da Fazenda Nacional