Sumário: I) Introdução; II) Reincidência; II.I) Fundamentos; II.II) Formas; II.III) Condições da Aplicabilidade; III) Efeitos da Reincidência; IV) Algumas considerações sobre o princípio do Ne bis in idem; V) Reflexos do Garantismo; VI) Breves comentários sobre o entendimento jurisprudencial e o direito comparado; VII) Considerações finais; VIII) Notas; IX) Bibliografia.
I) Introdução
No Código Penal brasileiro, os artigos 63, 64 e 67, dispõem sobre a reincidência, como fator relevante ao agravamento da pena. Isto traduz, a certa evidência, a vontade do legislador brasileiro, em dividir os indivíduos em “disciplinados e não-disciplinados”[1], ou em outras palavras em “aqueles que aprenderam a conviver em sociedade e aqueles que não aprenderam e insistem em continuar delinqüindo”[2].
Assim, os delitos cometidos por agentes tidos como disciplinados recebem um determinado apenamento, enquanto as infrações de autoria dos “não-disciplinados” é punida com uma restrição mais severa, e com maior resistência a algumas benesses que devem ser alcançadas ao agente, e impossibilitando a concessão de outras.
Isto porque, tal instituto leva em consideração uma circunstância (subjetiva) relevante ao sujeito ativo do injusto; em tempos nos quais se discute o Direito Penal do fato, é, todavia, salutar que se faça um juízo sobre o tema, a fim de que se busque valorar real finalidade da reincidência ante o sistema garantista.
São muitas as críticas que pairam sobre a reincidência, contudo as que tratam do garantismo expressam maior relevância, porque modernamente se entende, ser este a base de um Estado Democrático de Direito.
Em verdade: “resulta difícil encontrar en la reincidencia razones en las que fundamentar una mayor culpabilidad por el hecho que se enjuicia y sobre el que recae la agravante”.[3]
II) Reincidência
A reincidência no Brasil esteve presente desde o Código Criminal do Império de 1830 (artigo 16, §3.º) e no Código Penal de 1890 (artigo 40); em ambos diplomas era tida como circunstância agravante, em relação ao “novo” delito, desde que da mesma natureza do antecedente (reincidência específica). Somente no Código de 1940, é que o legislador adotou simultaneamente a reincidência genérica e específica (artigos 46 e 47), porém em caráter perpétuo.[4]
No ano de 1977, com advento da Lei 6.416, o legislador brasileiro alterou o critério de aplicação da reincidência, impondo limite ao lapso temporal (5 anos) e abolindo a forma específica do instituto em análise.[5]
II.I) Fundamentos
A reincidência encontra-se positivada nos artigos 63, 64 e 67 do nosso Código Penal. Tendo relevância como circunstância agravante da pena, do agente que incide na prática de um crime (ou contravenção), posteriormente a ter sofrido condenação por crime.[6]
Nos termos do artigo 63 do Código Penal: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”.[7]
Trata especificamente, quando o sujeito incide em novo crime (ou contravenção), posterior a ter sido condenado (no Brasil ou no exterior) por crime.
Um dos fundamentos que mais se suscita, acerca da reincidência, é reflexo direto de um positivismo arriscado na América Latina, que seria a evidência de uma potencial periculosidade do sujeito, concebido como uma maior tendência ao cometimento de delitos. Contudo, não se pode presumir (e/ou esperar) que alguém já condenado torne a delinqüir.[8]
Entretanto, doutrinariamente, é de todo refutável, pelo conteúdo presumido que se infere. Assim, “todavia, a periculosidade, no caso de se poder valorá-la, constitui um juízo fático, e, por conseguinte, jamais poderia ser presumido juris et de jure, porque se assim, fosse, estabeleceria a presença de um fato quando o fato não existe”.[9]
Árdua seria, a tarefa de conceituar a reincidência de maneira satisfatória, “pois toda a construção dogmática tende a centralizar o debate nas tradicionais relações entre reincidência genérica ou específica, ficta ou real”.[10]
Isto porque o Código Penal, não define o que vem a ser o instituto em análise, “apenas indica as condições de sua verificabilidade”.[11]
Interessante é a teoria sobre a reincidência, formulada por Armim Kaufmann, que afirma: “ao realizar o segundo delito viola-se duas normas: a do segundo tipo (“não furtarás”, por exemplo), e a que, partindo do primeiro delito, proíbe cometer um segundo”. Assim, sustenta que cada tipo possui duas normas, uma extrínseca, que refere ao próprio crime; e outra intrínseca, referente à proibição futura de delinqüir.[12]
II.II) Formas
Doutrinariamente, com grande facilidade, se encontram várias formas de se conceber a reincidência. Neste sentido, trata de reincidência genérica, a que diversifica os crimes praticados pelo agente, v.g., o primeiro é crime de furto, o segundo é crime de roubo, logo ocorre reincidência genérica; reincidência específica, estabelece a prática de delitos homogêneos à que se leve em análise; reincidência ficta, é propriamente a prática de um delito posterior a uma condenação por outro; reincidência real, é aquela em que o agente pratica um crime depois de ter sido condenado e ter cumprido pena por delito anterior.[13]
II.III) Condições da Aplicabilidade
Se aplica a reincidência, quando o agente tiver contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado (pressuposto legal da aplicação), referente a crime anterior, excetuando-se condenações por contravenções. Cabe destacar, que conforme o que dispõe o Decreto – Lei n.º 3.688 (Lei das Contravenções Penais), uma anterior condenação por crime faz reincidente o sujeito que pratica uma contravenção. Entretanto, o contrário não se verifica.[14]
Para fins de aplicação, não é necessário que o agente tenha cumprido a pena antecedente a que fora condenado (reincidência ficta). [15]
Deve-se, entretanto, atender ao que estabelece o artigo 64, inciso I do nosso Código Penal, onde fixa o prazo de cinco anos para que a condenação anterior seja computada para fins de reincidência.
Ainda sobre a aplicação da reincidência, em caso de condenação no estrangeiro, necessário se faz, que o fato da primeira condenação no exterior, seja considerado crime também aqui no Brasil, pois, não seria de bom grado, considerar reincidente uma pessoa condenada em outro país por um fato que a legislação pátria considera atípico.[16]
Logo também é salutar, mencionar que a sentença estrangeira não necessita de homologação, todavia, deve apresentar fundamentos de que foram obedecidas as “garantias processuais do due process of law”.[17]
III) Efeitos da Reincidência
O agente que fora condenado por crime, antes mesmo de vir a cometer outro delito, de qualquer natureza, já conta com um agravante, de tangibilidade desconhecida, porque se este indivíduo comete um homicídio (como “novo delito”) o terço que lhe majora é um; se comete uma lesão corporal, o terço será outro. Nas palavras de Cernichiaro: “A teoria geral do delito não pode ser olvidada na interpretação de qualquer instituto penal. O direito penal da culpa confere ao elemento subjetivo, portanto, à conduta, significado antes desconhecido”.[18]
Neste sentido, é mister reforçar que a Carta Magna impõe para cada infração penal uma determinada sanção, vinculada, incontinente, “à lei em sentido formal”.[19]
É dizer, que na aplicação do artigo 63 do nosso Código Penal, ante a pluralidade de delitos, a pena de um crime “projeta-se em outro crime”.[20]
Além destes efeitos, a reincidência ainda incide sobre:
a) impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ou por multa, nos termos do artigo 44, II e §2.º do Código Penal;
b) impossibilita a concessão de sursis, caso a reincidência seja por crime doloso;
c) dilata o prazo de cumprimento da pena para a obtenção do livramento condicional, nos termos do artigo 83, II do Código Penal;
d) impossibilita o livramento condicional quando a reincidência versar sobre crimes hediondos, tráfico de drogas, terrorismo e tortura, conforme o artigo 83, V do Código Penal;
e) revoga obrigatoriamente o sursis, se a condenação versar sobre crime doloso, conforme artigo 81, I, CP; e pode revogar o sursis, se a condenação tratar de contravenção ou crime culposo, nos termos do artigo 81, §1.º do Código Penal;
f) suspende o prazo da prescrição executória, conforme artigo 117, VI do Código Penal;
g) dilata em um terço o prazo da prescrição executória, nos termos do artigo 110 do Código Penal;
h) revoga a reabilitação, se o reabilitado for condenado, como reincidente, por decisão definitiva, conforme artigo 95 do Código Penal;
i) impossibilita a concessão da benesse nos crime dos artigos 155, §2.º, 170, 171, §1.º e 180, §5.º do Código Penal;
j) impõe que o condenado reincidente, cumpra a pena superior a 4 anos e inferior a 8 anos em regime fechado (art. 33, §2.º, b), se pena for igual ou inferior a 4 anos cumprirá o reincidente em regime semi-aberto, conforme artigo 33, §2.º, c do Código Penal;
k) impede a transação penal e suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89, L 9.099/95.
Deve-se considerar, oportunamente, que não há que se falar em reincidência de crimes políticos e militares. Isto porque, em relação aos crimes políticos, aplicam-se (as penas) com certa dose de liberalidade (por parte do Estado, nos tempos de hoje), “reconhecendo que têm sentido diverso dos demais crimes e demonstram ausência daquele caráter individual e anti-social dos motivos”.[21]
Da mesma maneira, os crimes militares não são suscetíveis de reincidência, por carecem da natureza peculiar dos crimes comuns.[22]
Dentre os efeitos extrínsecos da reincidência, supra citados, extraídos da interpretação literal do nosso Código Penal; há também que se levar em consideração os antecedentes, que, sobretudo, diferem da reincidência, mas apresentam relevante significância tendo como “principais características a amplitude, negatividade, subjetividade, relatividade e perpetuidade. Essencialmente negativa e indeterminada conceitualmente, constitui instrumento de imposição de rótulos e consolidação de estigmas acerca da vida do acusado”. Acerca dos antecedentes, que exibem caráter perpétuo, a reincidência em nada se comunica, em virtude do lapso temporal que a lei dispõe.[23]
Assim, têm os antecedentes uma conceituação mais ampla, porque qualquer circunstância ocorrida pode ser suscitada em juízo. Daí sua negatividade, em relevar somente os “maus antecedentes” baseados em meras anotações[24], sem que estas respeitem qualquer formalidade.[25]
IV) Algumas considerações sobre o princípio do Ne bis in idem [26]
O princípio do Ne bis in idem, surge hodiernamente como uma das pilastras do Estado Democrático de Direito, e por conseguinte do garantismo. Isto porque, veda a dupla incriminação, demonstrando, assim, que não se pode punir alguém duas vezes pelo mesmo fato. Encontra-se fundamento no artigo 8.º, 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.
O Tribunal Constitucional da Espanha, na decisão 221/1997, consagrou: “siempre que exista identidad fáctica, de ilícito penal reprochado y de sujeto activo de la conducta incriminada, la duplicidad de penas es um resultado constitucionalmente proscrito”.[27]
Por isso, tem-se que a toda agravação da pena em razão de o sujeito ser reincidente, viola-se o princípio do ne bis in idem.[28]
Citando Enrique Bacigalupo: “no sólo se vulnera este principio sancionando al autor más de una vez por el mismo hecho, sino también cuando se lo juzga por el mismo hecho en más de una oportunidad”.[29]
É perfeitamente concebível, acerca da reincidência, que “a pena maior que se impõe na condenação pelo segundo delito, decorre do primeiro”, pelo qual o sujeito, via de regra, já fora sentenciado.[30]
V) Reflexos do Garantismo
Não se pode hesitar em afirmar, o retrocesso que significa a aplicação da reincidência e dos antecedentes, ante ao sistema criminal constitucional que se estabeleceu com o advento da Carta Magna de 1988. Salo de Carvalho em sua brilhante obra sobre o tema, citando Cândido Furtado Maia Neto, a respeito do embate da reincidência e do garantismo, assim nos brinda: “o instituto da reincidência é polêmico e incompatível com os princípios reitores do direito penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado. Quando o juiz agrava a pena do delito anterior, esta em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime”.[31]
É dizer, que a pena agravada em virtude da reincidência, não se justifica per si, assim a aplicação do instituto em análise, acaba por prejudicar, o agente, na sua ressocialização, em razão da estigmatização que se verifica.[32]
A reincidência, induz uma segregação, isto porque, os que contraíram a mácula da reincidência, acabam por constituir um restrito agrupamento de pessoas que, diferem dos demais membros da sociedade, refutados pela sua “marca”.[33]
Logo, como bem observa Lênio Streck: “esse duplo gravame da reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivíduos em ‘aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade’ e ‘aqueles-que-não-aprenderam-e-insistem-em-continuar-delinqüindo”.[34]
Assim, o garantismo assume papel fundamental à sustentação do direito penal constitucional, uma vez que, incide em alcançar aos indivíduos as garantias positivadas pela Constituição. Cabe destacar, a Carta Magna de 1988, que consignou princípios de vultuosa relevância, tais como: inviolabilidade (art. 5.º, X), liberdade de manifestação (art. 5.º IV), liberdade de consciência (art. 5.º, VI), liberdade de convicção política (art. 5.º, VIII), entre outros.[35]
Ademais, é salutar trazer, que uma tendência (vigente) do direito penal moderno, encontra sua essência no princípio da legalidade, traduzindo (através de uma ruptura entre direito e moral) a positivação de direitos fundamentais, chamada de princípio da secularização, que se erige sob a égide da “legitimidade externa do direito penal” que busca amparo no âmbito constitucional.[36]
Todavia, o princípio da secularização traz alguns efeitos, de ordem material e instrumental penal. Onde, no tocante ao injusto, diz que o direito penal deve incumbir-se de impedir condutas prejudiciais à vida em sociedade. Em se tratando da parte instrumental, requer que o juízo não valore critérios intrínsecos do réu, “mas somente acerca dos fatos penalmente proibidos que lhes são imputados e que podem, por outra parte, ser empiricamente provados pela acusação e refutados pela defesa”.[37]
As disposições que preceituam análises de caráter subjetivo do agente, tal como a reincidência, ”são normas penais constitutivas, normas que não vetam condutas lesivas, mas que castigam imediatamente; normas que não proíbem atuar, mas ser”.[38]
Contudo, “a estrutura normativa do instituto da reincidência não fere apenas a inviolabilidade da coisa julgada pela afronta ao princípio do non bis in idem”, senão, que transgride a dogmática constitucional baseada no princípio da secularização.[39]
VI) Breves comentários sobre o entendimento jurisprudencial e o direito comparado
No Brasil, via de regra, os Tribunais entendem que devem cumprir a lei, e assim, aplicar o disposto no artigo 63. Entretanto, deve-se destacar decisões inéditas, principalmente a Apelação Crime n.º 699.291.050 (5.º Câmara Criminal, TJRS), em especial o voto do relator o Des. Amilton Bueno de Carvalho, que confirmou a sentença do juízo monocrático (da cidade de Erexim) que deixou de aplicar a reincidência.[40]
Na Itália, o artigo 99 daquele Código Penal, fora modificado no ano de 1974, no sentido de exterminar a reincidência genérica e específica, e introduzir a reincidência facultativa. No mesmo sentido, o Código Penal português (DL 48/1995), no artigo 75.º, 1, possibilita a aplicação da reincidência facultativa.[41]
Na Espanha o Tribunal Constitucional (em 1991) recusou a declaração de inconstitucionalidade da reincidência, fazendo constante no Código Penal espanhol (1995) no artigo 21, 4.º, somente a reincidência específica.[42]
O Código Penal alemão (StGB)[43], mantém a reincidência (genérica) no disposto §46, II, como causa geral de individualização da pena. O StGB austríaco, traz a reincidência como preceito geral de prevenção criminal. O Código Penal Suíço, por seu turno, aplica a reincidência como agravante da pena, no artigo 67, sem fazer menção à recriminação da culpabilidade.[44]
VII) Considerações finais
Pelo exposto, se conclui, sem embargos, que o instituto da reincidência opera ao desabrigo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, e por conseguinte fere o garantismo, pilastra do Estado Democrático de Direito.
Toda a legislação infra-constitucional, deve se adequar aos princípios contemplados pela Carta Magna, sob pena de incorrer em um descumprimento de preceito constitucional, sujeito a ser declarado, o conteúdo infringente, pelo Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, pode (deve) o magistrado fazer uma interpretação conforme os princípios, ou seja, “fazer a tradução sistemática, atualizar, se necessário, a norma posta pelo legislador”.[45]
O princípio da secularização, que incide em empregar o direito penal do fato, “é a única possibilidade de resgatar o direito enquanto instrumento de superação de sua própria crise”. O direito encontrará respostas às suas carências revendo seus próprios conceitos.[46]
VIII) Notas
IX) Bibliografia
Informações Sobre o Autor
José Carrazzoni
Bacharel em Direito, pós-graduando em Direito Penal (lato sensu), aluno da Escola Superior do Ministério Público/RS.