Resumo: Esse artigo é uma aproximação ao tema da atual situação em que se encontra a teoria e a prática do direito processual civil, destacando alguns dos problemas que assolam a tensão entre os direitos da coletividade e a prática usual do ordenamento jurídico que ainda teima em restringir esses direitos.
“Poucos juristas se preocupam em saber a que servem; eles obedecem”. Michel Villey.
Sumário: 1 Introdução 2. Influências históricas 2.1 Direito Romano 2.1.2 Reflexos no processo civil brasileiro 2.2 Revolução Francesa 2.2.1 Juizes 2.2.1.1 Reflexos no processo civil brasileiro 2.2.2 Código de Napoleão 2.2.2.1 Reflexos no processo civil brasileiro 2.2.3 Racionalismo 2.2.3.1 Reflexos no processo civil brasileiro 2.4 Conclusões 3. Mudanças na sociedade 4. Evolução do processo civil 5. Resistência ao microssisterma processual coletivo 6. A ineficácia do processo coletivo 7. Proposta de solução. 8. À Guisa de Conclusão 9. Notas 10. Bibliografia Consultada.
1 Introdução
“Receio muito que qualquer análise friamente jurídica revelando a inanidade de tão contraditórias atividades camarárias para remendar o caráter injurídico das decisões governamentais acarretasse nova vaga de discussões, de pressões e deliberações que nem a paciência de um professor de Direito teria capacidade para classificar devidamente. Sucede sempre assim quando as leis são esvaziadas do seu conteúdo e finalidade moral”. Manuel Cavaleiro de Ferreira
Todo e qualquer sistema jurídico está, obrigatoriamente, determinado pelo tempo. Pelo tempo histórico onde ele se situa, pelo tempo social onde ele encontra o seu norte. Dessa forma, o direito, e os seus institutos são sempre sujeitos de um determinado discurso, pois que é o resultado do campo social onde faz sentir a sua presença.
Nesse sentido, o presente trabalho procura demonstrar as influências históricas que contribuíram para a formação de nosso sistema processual civil, demonstrando a inviabilidade deste modelo em face das mudanças porque passam a nossa sociedade.
Para tanto, analisaremos uma das respostas a este problema que foi a formação de um microssistema processual, que está, agora, buscando adequar-se mais e mais aos conflitos coletivos. Para isso se pretende analisar a receptividade desta nova e necessária forma de observar o fenômeno processual, demonstrando a falta de ruptura do novo microssistema com o legado histórico em que vivemos.
2. Influências históricas
Nesse primeiro capítulo se pretende desenvolver uma breve aproximação ao tema das influências históricas que marcaram sua presença em nossa formação processual.
Em sendo assim, nos ateremos às influências do direito romano e do direito francês, posterior à Revolução Francesa, bem como a influência do método cartesiano (racionalismo), que é por todos sabido que marcou o pensamento do mundo ocidental como um todo.
O corte escolhido está determinado na medida em que essas são as influências que de forma mais pungente se fazem sentir em nosso ordenamento jurídico.
Observa-se, finalmente, que se pretende realizar, apenas, uma breve aproximação ao tema, pois que o mesmo serve de base para o que se pretende aqui demonstrar.
2.1 O Direito Romano
O professor OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA enfatiza que “o conceito de jurisdição em direito romano é o verdadeiro paradigma que demarca e condiciona os demais conceitos e institutos com que a ciência processual moderna elabora suas categorias”. 1
Vale recordar que o direito romano era marcado por dois institutos de proteção e defesa dos direitos capazes de serem invocados: a “actio” e os “interdictos”.
Em relação a “actio”, o magistrado exercia a “iurisdictio”, isto é, tinha o poder de dizer/declarar o direito para as partes, enquanto nos “interdictos”, o pretor exercia o “imperium”, ou seja, tinha o poder de mandar/ordenar as ações para que as partes cumprissem.
Porém na recepção dos institutos processuais romanos ao longo dos anos, o “interdicto” foi preterido em relação a “actio”.
Novamente, OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA leciona que “temos de ter presente que o direito moderno utilizou-se, em sua formação, das fontes romanas dos últimos períodos de sua história, especialmente do direito romano justinianeo, perante o qual tornara-se mais acentuado a equivalência entre iurisdictio e declaração oficial do direito, com função de “ composição da lide”, em oposição a imperium”. 2
Assim, opera-se uma distinção entre o “dicere” (actio) e o “facere” (interdicto), optando-se por conceber a jurisdição como mera declaração de direitos (actio), sem que qualquer tipo de ordem viesse a integrar o seu conteúdo (interdicto).
2.1.2 Os Reflexos no processo Civil Brasileiro
Essa tradição produziu forte influência nos juristas brasileiros. Ainda hoje, muitos deles mantêm-se fiéis ao direito romano, vislumbrando a jurisdição como uma manifestação da “actio”. Por isso, justifica-se toda a dificuldade em aceitar a inclusão dos efeitos mandamentais e executivos nas sentenças e em optar entusiasticamente pela classificação trinária das sentenças (constitutiva, declaratória e condenatória).
Nesse sentido, é consentâneo o posicionamento de dois exponenciais processualistas (LIEBMAN e BUZAID) que vieram a ter uma forte influência no Brasil, não só na formação de várias gerações de processualistas, como também na elaboração de nosso atual Código de Processo Civil (Lei 5869/73).
LIEBMAN3 afirma que “não é função do juiz expedir ordens às partes e sim unicamente declarar qual é a situação existente entre elas segundo o direito vigente”, e BUZAID4, que não qualifica a ação de mandado de segurança como mandamental, mas esclarece ser a mesma “uma ação de conhecimento, que começa com uma petição inicial e termina por uma sentença, que põe termo ao processo, julgando ou não o mérito. O que determina e qualifica a natureza da ação de segurança é o pedido formulado pelo impetrante, que pode ser: a) meramente declaratório; b) constitutivo; ou c)condenatório”.
2.2 A Revolução Francesa
2.2.1 Quanto aos Juizes
Segundo MERRYMAN, “antes da Revolução francesa, os postos judiciários eram considerados como propriedades que podiam ser compradas, vendidas e herdadas. O próprio Montesquieu herdou tal cargo, o conservou durante dez anos e o vendeu. Os juizes constituíam um grupo aristocrático que apoiava a aristocracia contra os campesinos e as classes medias e trabalhadores urbanos, e contra a centralização do poder governamental em Paris. Com a chegada da Revolução caiu a aristocracia e com ela caiu a aristocracia de togas”. 5
Dessa forma, os juizes, que estavam atrelados as antigas concepções do poder na velha ordem, acabavam por representar, no imaginário político dos revolucionários, um obstáculo à instalação do novo regime pela revolução, uma vez que a sua existência era percebida como manifestação do poder político do Estado Absolutista. Assim, os juízes eram vistos com receio e desconfiança. Limitar o seu exercício era uma necessidade para consolidar a ruptura que o novo pensamento estava por erigir.
Nesse contexto, produziram-se teorias que possibilitaram a diminuição de seu poder, limitando-os a um papel meramente de coadjuvantes na administração do Estado.
Os revolucionários pós-1789 tinham, portanto, o desafio de potencializar os poderes executivo e legislativo, ao mesmo tempo em que praticavam uma redução na atuação do judiciário, na figura dos juízes, quando transformavam esse poder em instrumento do novo espaço político que se estava buscando construir.
Sobre este tema MERRYMAN esclarece que “Montesquieu e outros autores desenvolveram a teoria de que a única forma segura de impedir os abusos desta classe era a separação inicial do poder legislativo e poder executivo frente ao poder judiciário, e logo a regulação cuidadosa do poder judicial para assegurar que se restringisse a aplicação da lei elaborada pelo legislativo e não interferisse no desempenho de suas funções administrativas”. 6
O judiciário acabava, desta forma, reduzido ao alcance do furor revolucionário, pois era necessário oferecer aos setores populares, tomados pela senda revolucionária, algo que pudessem tocar, reduzir etc. Desvalorizar o papel dos juízes, limitando-os como extensão dos outros dois poderes, amarrando-os como meros servidores do novo Estado, era uma forma simbólica de revide contra a velha ordem, pois que além da própria nobreza, o poder judiciário representava de forma mais concreta todo o antigo glamour do ancién regime. Para recuperar a disciplina social, se fazia obrigatório saciar a massa, cansando o seu desejo de vingança social, e aí, adormecendo-a mais uma vez, numa nova e legítima hegemonia.
2.2.1.1 Os Reflexos no processo Civil Brasileiro
Essa desconfiança em relação ao papel dos juizes reforça naquelas influências do direito romano de, igualmente, manter o juiz despido de poder, como um ser sem nenhuma atitude perante os fatos que se passam a sua volta, tendo por única função proferir as palavras que já estão contidas no texto da lei, o que torna mais forte a classificação trinária das sentenças, pois que mantém o juiz sem poder para proferir sentença com o poder de “imperium”, ou seja, mandamentais ou executivas.
Tal herança é sentida pela prática evidente do dia a dia dos nossos tribunais, que aderiram às lições de separação de poder preconizadas pelas lições dos intelectuais da Revolução Francesa, principalmente, pelo ideário de Montesquieu, como está evidente nestes dois acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que se colaciona como exemplo:
“TAXAS DE JUROS. LIMITE DA CONSTITUICAO FEDERAL, ARTIGO192, PAR-3, DE 12% DEPENDE DE REGULAMENTACAO. A UMA, ENQUANTO QUESTAO ECONÔMICA, HÁ POSICÕES QUE AS VÊEM COMO ESTÍMULO AO INVESTIMENTO, POR BAIXAS, E OUTRAS QUE VÊEM-NAS, ASSIM, COMO ESTIMULADORAS DO CONSUMO, LOGO DO PROCESSO INFLACIONÁRIO, AMBAS COM DEFENSORES ILUSTRES. O DEBATE NÃO É JURÍDICO, MENOS AINDA JUDICIÁRIO. A DUAS, DESINCUMBE AO JUIZ ASSUMIR POSICÃO E QUERER IMPÔ-LA AO PODER EXECUTIVO, ESTE APTO A ELEGER SUAS POLÍTICAS ECONÔMICAS, DESDE QUE LEGAIS. NAO HÁ O JUIZ DO GOVERNO. NÃO DEVE HAVER O GOVERNO DOS JUÍZES. (Apelação Cível n.º 190117937)”
“… A NÓS, JUÍZES, CABE INTERPRETAR E APLICAR A LEI, COM AQUELA SENSIBILIDADE QUE SE ESPERA DO JUDICIÁRIO, MAS NÃO AO PONTO DE NOS SUBSTITUÍRMOS, SEJA AO PODER LEGISLATIVO, SEJA AO PODER EXECUTIVO, QUE ESTES SIM DEVEM PROMOVER SOBRE A JUSTIÇA SOCIAL. ELES TÊM OS INSTRUMENTOS PARA ISTO. (Apelação Cível n.º 587004755)”.
2.2.2 O Código de Napoleão
Com a queda do feudalismo, a burguesia iniciou um longo processo que tinha como credo, a utilização de um direito natural, pois que esse se prestava a ser um direito compatível com a proposta de insurreição. Na busca de seu objetivo de superação da ordem jurídica feudal, ela vai ser obrigada a romper com o discurso do jusnaturalismo, pois que representava uma afirmação ideológica que se pretendia superar.
O ideal que empolgara a Revolução Francesa já detivera o próprio impulso, exprimindo-se a nova estruturação de forças sociais por meio de um código-paradigma da nova estrutura social.
Nesse novo paradigma, era urgente a reconstrução de uma disciplina social que condicionasse o próprio incentivo à modificação. Em outras palavras: a revolução, mesmo liderada pelo discurso francês era, também, um discurso histórico, com um tempo determinado que estava longe de ser “ad eternun”. Dessa forma, com a emergência do regime de Napoleão, e sua incansável busca pelo reordenamento da disciplina, se fazia primordial restabelecer uma nova codificação que se fizesse eficiente, a tal ponto, que os efeitos da quebra da ordem pudessem ser lentamente mitigados.
Um novo código de leis estabeleceria um novo padrão de comportamento, ao mesmo tempo em que, uma nova codificação representaria a capacidade de se reencontrar a disciplina e o apaziguamento social.
O professor FARACO nos ensina que “a burguesia, cristalizando sua visão de mundo, no Código de Napoleão, perde o ímpeto revolucionário. Inverte-se sua posição no processo social, passando a querer preservar suas conquistas sedimentadas na lei positiva. Daí a necessidade de atentar, antes de tudo, à intenção do legislador, afirmando-se ser o Estado a fonte única e o fundamento único do direito, sendo o método exclusivo o dedutivo/ dogmático. Ao sistema fechado do direito positivo, em que se cristalizaram a visão de mundo e as prerrogativas de uma classe social interessada em manter sua vitória, haveria de corresponder o sistema hermenêutico cerrado, sem brechas, em que nada ficava ao arbítrio do juiz, não lhe restando, por conseguinte, nada a criar”. 7
2.2.2.1 Os Reflexos no processo Civil Brasileiro
Com o intuito de manter as conquistas da burguesia expressas na lei (Código de Napoleão), instaurou-se um modelo em que os juízes tinham por função, apenas e exclusivamente, declarar o direito previsto na lei. De certa forma, cunhava-se a infamante visão de que o juiz era “a boca da lei”.
A atividade interpretativa passou a ser feita utilizando-se um raciocínio lógico formal: premissa maior – a lei; premissa menor – o fato narrado nos autos (e só este, pois “o que não está nos autos não está no mundo” do direito); conclusão – a solução judicial.8
Assim, foi mantida uma linha de conexão entre o momento da elaboração do Código de Napoleão até os dias atuais. Tanto isso é verdadeiro que grande parte de nossos juristas, são, ainda, adeptos da Escola da Exegese Francesa, acreditando que interpretar a lei resume-se a um processo de subsunção.
A interpretação da lei está, nesse sentido, limitada ao que diz a lei em sua literalidade, sem que essa possa ser/ter alguma dinâmica mais dialética com o próprio mundo social.
MOACIR AMARAL DOS SANTOS reforça esta tradição ao afirmar que “o juiz não cria a norma a ser aplicada, mas extrai do ordenamento jurídico onde ela se encontra em estado latente”.9
Em se aceitando essa percepção ossificada da leitura da lei, o que se pode constatar é que o próprio universo jurídico se distancia do campo social, pois que perde qualquer possibilidade de servir as contradições desse.
Interpretar é reconstruir o próprio sentido, sem o que, se corre o risco de realizar uma idiossincrasia despersonalizada e inoperante, do ponto de vista da sociedade.
2.2.3 O Racionalismo
Mais uma vez, se recorre ao professor OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA que nos ensina que “possuímos vínculos jamais desfeitos, ou sequer questionados, entre as instituições fundamentais de nosso ordenamento processual contemporâneo e o racionalismo cartesiano. Fundamentalmente, a exigir da jurisdição juízos de certeza, nunca juízos de verossimilhança, considerados por Descartes, como já vimos, indignos de uma verdadeira ciência”.10
E complementa o jurista riograndense que “mostra-se decisivo, a herança racionalista, para a posterior formação da ‘ciência’ do processo civil, com o abandono dos juízos de probabilidade, porque, segundo Descartes, apenas as ‘verdades claras e evidentes’ poderiam ser aceitas pela ciência. Esta proposição do filósofo é esclarecedora: ‘O primeiro preceito era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma chance de colocar em dúvida·”.11.
Com o apego da ciência do direito processual civil ao ideal racionalista, o processo transformou-se em uma eterna busca pela “verdade”, e deste modo, só poderá o juiz decidir quando alcançar o “convencimento definitivo” dos fatos e provas trazidos aos autos.
Infelizmente, o resultado do processo nem sempre se encaminha para esse fim, pois que o processo é um movimento dinâmico, não raro contraditório, e que em muitas oportunidades, não permite um esclarecimento áureo e irresignado, mas sim, uma pretensão de certeza subjetiva e condicionada, apenas, ao princípio do livre convencimento do juiz, mas que não é sinônimo de verdade, mas da verdade limitada do juiz, fruto da sua interpretação, e que no dia-a-dia dos tribunais, se sabe estar muito longe daquilo que pode ser a verdade inconteste.
2.2.3.1 Os Reflexos no Processo Civil Brasileiro
O racionalismo nos legou o compromisso com os juízos de certeza, o que importará na busca constante pela “vontade do legislador” que melhor puder decidir o caso levado ao espaço da jurisdição provocada.
Tal concepção gerou uma imensa gama de recursos previstos em nosso processo, pois mesmo admitindo-se que um juiz de primeiro grau decida o caso, isto é, declare o direito, se relaciona a percepção de que essa sua decisão pode não ter sido a mais “correta/certa” para a solvência do conflito, e, em se admitindo de que a decisão possa gerar um certo prejuízo, aceita-se o procedimento de que é preciso recorrer ad infinitum, para que a próxima instância, analisando uma outra vez, finalmente, alcance uma decisão que se aproxime de um decidir mais corretamente, revelando a verdade mais verdadeira do caso levado a juízo, e dessa forma, diminuir a margem de erro.
Lamentavelmente, essa lógica não leva em conta o tempo de espera das partes pela decisão definitiva, e, assim, o próprio judiciário, em sua dinâmica processual acaba por ser a fonte de novos prejuízos, uma vez que, em se adonando do devir, isto é, do tempo, o poder judiciário exerce-se sobre os sujeitos sociais de forma arbitrária e autoritária.
Todavia, esse problema não oportuniza uma solução imediata, pois que as partes têm o direito a buscar nos recursos, aquilo que a sentença não lhes concedeu, enquanto que o tempo recursal está consolidado, sendo moroso e arrastado.
2.4 Conclusões
Em síntese, estas foram as principais influências na formação de nosso sistema processual que formam o modo de resolução das relações processuais atuais.
Tais influências geraram:
a) um juiz que não deve influenciar nas decisões do legislativo e executivo;
b) um juiz que no julgamento dos litígios deve, somente, declarar a “vontade da lei”;
c) um processo sem nenhum poder de imperium; e, finalmente,
d) um processo caracterizado pela procura da “verdade”, utilizando-se de um procedimento plenário e ordinário, em que as demandas são decididas nas últimas instâncias que, tais como oráculos conseguem finalmente descobrir a vontade da lei para o caso concreto.
Destarte, esses são os valores teóricos que estabelecem o domínio conceitual no nosso atual sistema processual civil, e que apesar da longa tradição desenvolvida, enfrentam, hodiernamente, uma gradual e cada vez mais perceptível oposição daqueles que percebem a relação do espaço jurídico com o espaço social, como uma relação mais complexa e ao mesmo tempo, muito mais dinâmica, e que têm a coragem de perceber que o direito não deve ficar reduzido a uma empobrecida interpretação de um intérprete, que não raro, olha o mundo a partir de seu próprio mundo.
3. As mudanças na sociedade
CAPPELLETI nos ensina que “não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de massa”. 12
RIBEIRO DANTAS, por sua vez, assim se manifesta sobre a sociedade de massa “caracteriza-se por sua complexidade, pelos fenômenos multi-interativos da produção, da troca e do consumo em larguíssima escala; pelos relacionamentos entre grandes grupos e pelo intenso movimento deles no seio do organismo social; por seríssimas questões interindividuais, surgidas com a superpopulação, a urbanização, a automação e a degradação ambiental; pela sofisticação dos anseios pessoais e populares, pelas novas demandas culturais; pela influência massiva dos meios de comunicação; pelo stress generalizado; pelas rápidas mudanças, pelos modismos e pela tecnologia. E, principalmente nos países de terceiro mundo, pelos grandes contrastes trazidos pela evolução desigual dos elementos sociais, pela pobreza de muitos, ressaltada na comparação com o elevado bem-estar de outros”. 13
A sociedade é um organismo vivo, pulsante, pois que ela é o resultado do agir dos sujeitos. Não se pode percebê-la como uma unidade estática. Nos últimos 50 anos, o espaço social foi espancado pela velocidade e pela alternância das modificações.
Com o fim da segunda guerra mundial, a economia foi transformada de forma radical, pois que se antes ela era um representante da figura do Estado Nacional, agora, ela vive os ares do efeito da globalização. O mercado, o capital e as grandes empresas construíram a estratégia da extra-territorialização dos seus interesses. Não se limitam mais a representar as figuras limitadas do nacionalismo, mas encaram um mundo sem fronteiras, onde tanto as noções de tempo e de espaço foram alteradas com as novas tecnologias que surgiram.
No campo político, se viu o poente do Estado Liberal, e de seu direito que pretendia proteger os interesses do indivíduo contra a ação da figura estatal, para a consolidação e a crise do Estado do Bem Estar Social, e do seu direito regulador e legitimador da intervenção do aparelho estatal. Levado a extrapolar a sua própria capacidade, esse Estado providência não resistiu ao preço de estar presente em todas as esferas do campo social, e com a globalização, ocorreu a exportação dos valores do mercado para dentro do espaço político, o que justifica, em alguns sentidos, a crise porque passa o Estado nesse início de novo século.
Igualmente, houve uma revolução em curso no espaço social, pois que a radical transformação dos marcos tradicionais das fronteiras nacionais, com o advento das revoluções tecnológicas lideradas pelo setor da informática, afetou a própria forma de viver do ser humano. Ao mesmo tempo em que, hoje em dia, a informação está calcada numa visão macro, essa é proporcional à fragmentação da racionalidade, pois que essa sociedade de massas tem como resultado uma pasteurização da própria compreensão do sujeito em relação ao universo que o cerca.
É, assim, que novas formas de atuação, como o terrorismo, ou mesmo a luta pela ecologia, acaba por seduzir amplos espaços do social, sem que se dê a esse qualquer percepção de segurança, mas apenas de ações que radicalizam a própria inserção do agente em um universo globalizado.
Essas mudanças na sociedade fizeram com que o Direito, instrumento tradicional do ordenamento social, tivesse que se adaptar, notadamente o direito processual, pois que é através dele que o conflito pode ser operacionalizado, e que os novos interesses/problemas que aparecem constantemente, podem buscar a solução para os conflitos que acabam por gerar.
Repita-se: essa necessidade de mudança foi um movimento obrigatório. O direito, enquanto campo parcial do espaço social, não pode ficar distante das transformações que a sociedade sofre, pois que se ele não for dinâmico, corre o risco de se tornar uma figura obsoleta. Dessa maneira, o ordenamento jurídico faz, sempre, um esforço constante em transformar-se, mas sem perder a capacidade de conservar aquilo que é da sua essência.
É verdade que as modificações que ocorrem no direito não conseguem acompanhar a velocidade daquelas que impulsionam o espaço social. Mas, para que os sujeitos reconheçam a legitimidade da fala da lei, essa deve seguir sempre o objetivo de estar próxima do agir social. A tarefa se complica, ainda mais, quando falamos do ordenamento jurídico, pelo fato de que esse deve conviver com a tensão constante entre mudar e conservar, pois que esse conflito tem o condão de quebrar toda a legitimidade da presença da lei como mantenedora da ordem social. Alguns institutos do direito, contudo, puderam se transformar de forma mais dinâmica.
Desta forma, ocorreu em relação ao processo civil, uma verdadeira revolução, com a adaptação de institutos seculares aos novos tipos de demandas que surgiram, agora não mais individuais, mas, igualmente, coletivas latu sensu14.
4. Evolução do processo civil
As ações coletivas iniciaram sua história no sistema processual brasileiro com a lei da ação popular (Lei 4717/1965), sendo essa o primeiro instrumento sistemático e autônomo, voltada à tutela de alguns interesses coletivos em juízo, em especial o patrimônio público.
Tal lei subverteu dois dogmas do processo, a legitimação ativa e a coisa julgada. No seu artigo 1. º, ela legitimou o cidadão15, e o seu discurso político, a cidadania, para defender, em nome próprio, os direitos não só pertencentes a sua esfera, mas de toda a população, através da substituição processual, e em seu artigo 18, ampliou a qualidade da coisa julgada, dando-lhe um efeito erga omnes, desde que a ação fosse julgada procedente; caso fosse julgada improcedente por deficiência de provas, qualquer cidadão poderia propor novamente a ação, desde que fundada sob nova prova.
Contudo, a época em que essa lei surgiu não foi muito propícia ao seu desenvolvimento, pois que estávamos a viver em plena ditadura militar, assim, não era de se esperar que conseguisse florescer um instrumento para coibir justamente os atos praticados pelo poder público.
Mas, é em 1981, que as ações coletivas passam a se estabelecer no sistema processual brasileiro com o surgimento da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (lei 6938/1981), onde se previu a responsabilidade civil para aqueles que poluíssem o ambiente, ao mesmo tempo em que se atribuía ao Ministério Público, a legitimidade para o ingresso da ação em defesa da natureza degradada ou em perigo de degradação.
Entretanto, a força maior da preocupação coletiva ocorreu com o surgimento da Lei da ação civil pública – LACP (Lei 7347/1985), que aprimorou os institutos processuais coletivos como a extensão da legitimidade ativa a vários órgãos, pessoas e entidades ou associações (artigo 5º); o inquérito civil, destinado as investigações preliminares a propositura da ação pelo ministério publico (artigos 8º e 9º); bem assim, a instituição de um fundo para o qual reverteriam , em alguns casos , as indenizações, com vista à reconstrução dos bens lesados (artigos 13 e 20). Todavia, o seu objeto ainda se mantinha limitado, pois que estava restrito a defesa do “meio ambiente, do sujeito consumidor, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.
Com a Constituição de 1988, e o seu corolário em nome das garantias individuais, e dos direitos fundamentais, o ordenamento jurídico brasileiro consagrou o direito processual coletivo.
Em seu artigo 129, III, o objeto da ação civil pública foi ampliado, passando a albergar a proteção de qualquer direito difuso e coletivo, sem nenhuma restrição quanto à tutela jurisdicional de direitos lesados ou ameaçados de lesão.
Além disso, criou uma série de ações constitucionais coletivas além de aperfeiçoar as já existentes, tais como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, a ação popular, a ação civil pública, a ação de dissídio coletivo e a ação de impugnação de mandado eletivo.
Em 1990, com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor – CDC, tal lei trouxe regras específicas para a tramitação dos processos coletivos. Os sistemas processuais do CDC e da LACP passaram a estarem interligados, formando um microssisterma processual coletivo, sendo aplicáveis indistintamente a um e ao outro reciprocamente, conforme os artigos 90 do CDC e 21 da LACP, este último introduzido pelo artigo 117 do CDC.
Há, por assim dizer, perfeita interação entre os dois sistemas, que se completam e podem ser aplicados às ações que versem sobre direitos ou interesses coletivos lato sensu.
5. Resistência ao microssisterma processual coletivo
“- Que coisa. Morreu mesmo?
– Morreu!
– Mas, morreu como?
– Ora, morreu morrendo. Está morta.
– Mas foi de morte morrida ou de morte matada?
– Tão dizendo que foi de morte matada. Coitada… Tão jovem
– De morte matada?
– É de morte matada. Bem matada. Toda vez que ela tentava se levantar batiam de novo. Foi horrível”.16
Atualmente, temos um moderno Sistema Processual Coletivo, mas infelizmente o senso comum teórico dos juristas17 não se deu conta de todas estas modificações e ao invés de colocá-las em prática, procura ou esquecê-las ou restringi-las ao máximo.O Processo Coletivo é, dessa forma, atingido em duas frentes:
a) a primeira, pelos juristas que não se deram (ou não querem se dar) conta das modificações no sistema processual.
É o caso da recente decisão de um magistrado potiguar, da 2ª vara da Fazenda Pública, o juiz IBANEZ MONTEIRO DA SILVA, que proferiu decisão na Ação Civil Pública n.º 001.02.016869-2, em que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte requereu a anulação do Concurso Público para provimento de cargos de Técnico Judiciário, Auxiliar Técnico e Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, por descumprimento flagrante da Constituição Estadual e da Constituição Federal, do seguinte modo:
A falta de indicação de membro do Ministério Público para integrar a comissão do concurso público para provimento de cargos no Poder Judiciário, com inobservância dos artigo 26, § 6° e 72, IV da Constituição Estadual, não afetou, de modo a prejudicar nem beneficiar, qualquer candidato inscrito no certamente. A presença do Ministério Público na comissão do concurso em nada influi, seja na sua lisura ou sob qualquer aspecto que se examine. Até mesmo como fiscal da lei não é possível admitir-se, pois, atuando como membro de comissão de concurso, o Ministério Público não está desempenhando suas atribuições institucionais. Logo, a questão não diz respeito ao interesse de qualquer candidato ou grupo de candidatos. Portanto, não configura também interesse coletivo. Ora, para haver interesse coletivo é preciso que haja, primeiro, o interesse individual; depois, que esse interesse individual seja disseminado entre outros indivíduos ligados ao mesmo grupo. Assim, por exemplo, deveria haver interesse de qualquer candidato para configurar o interesse individual, e que esse interesse fosse comum a outros candidatos, tornando-o coletivo. Mas, como se vê, não há sequer interesse individual, dado que nenhum candidato foi prejudicado ou beneficiado, ainda que indiretamente, com a falta do representante do Ministério Público na comissão do concurso. Nota-se, desse modo, que o interesse é próprio e particular do Ministério Público ou de seu representante. Não se pode confundir interesse do Ministério Público com interesse coletivo. Com efeito, a ação civil pública não se presta para a defesa de interesse particular do Ministério Público, ainda que pudesse ser entendido como interesse institucional, aliás, o que não é, pois, como já afirmei, o interesse institucional está relacionado com as atribuições próprias do Ministério Público, nas quais não se inclui a participação em comissão de concurso para provimento de cargo público.
….
Desse modo, forçoso é, portanto, reconhecer a ilegitimidade do Ministério Público, neste caso. Diante do exposto, indefiro a inicial, com base no artigo 295, II do CPC, por reconhecer a ilegitimidade ativa do Ministério Público, dada a não configuração de interesses difusos ou coletivos no objeto da ação proposta. Transitada em julgado, arquive-se. Publique-se. Registre-se. Intime-se”. (DOE, fls. 23 , 30/11/2002)
Verifica-se que o magistrado, em questão, afirma que o Ministério Público não tem legitimidade para empreender a defesa ao cumprimento da Constituição Estadual e pleitear a lisura do Concurso Público através da Ação Civil Pública. Se isso é verdade, não se pode conhecer o por quê da existência do Ministério público, já que se colocaria, de forma perplexa, uma nebulosa em sua função.
Porém, esse fenômeno não se restringe apenas aos juízes de primeiro grau18, pois que ocorre e atinge, inclusive, tanto aos Tribunais Estaduais, bem como aos Tribunais Superiores, e, infelizmente, em larga escala.
A título de exemplo trazemos a recente decisão do Ministro Gilson Dipp, no Recurso Especial 419.187, em que o Ministério Público Federal, em Ação Civil Pública, pretendia defender direitos previdenciários, mas, para surpresa, teve a sua legitimidade rejeitada:
“A ação civil pública pode servir para a defesa do consumidor, seja em caso de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (CDC 81, caput)”, explica. “O que não pode é servir para a defesa de direitos individuais homogêneos de outras espécies de interesses, como os dos segurados da Previdência Social, por exemplo, por falta de previsão legal”, ressalva. “Nem a Lei de Benefícios, nem qualquer outra lei, autoriza a utilização da ACP para a defesa de direitos individuais homogêneos dos segurados da Previdência Social”, acrescentou. Segundo Dipp, os beneficiários não se equiparam a consumidores. “Desta forma, não há que se aplicar a hipótese do artigo 82, III do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, pois o mesmo trata dos direitos individuais homogêneos”, acredita. “Ante todo o exposto, divirjo da E. relatora para conhecer do recurso e lhe dar provimento, a fim de declarar a ilegitimidade ativa do ‘parquet’ federal’“, concluiu Gilson Dipp19.
A decisão demonstra um falta de assimilação a todas as mudanças advindas com a Lei de Ação Civil Pública, com a Constituição de 1988 e com o advento do Código de Defesa do Consumidor.
Destaca-se que a Constituição e o Código de Defesa do Consumidor não legitimaram o Ministério Público a defender somente os direitos dos consumidores, mas todos, leiam-se de forma contundente, todos os interesses coletivos “lato sensu” (difuso, coletivo e individual homogêneo) em qualquer tipo de matéria envolvida.
A condição fica, portanto, limitada ao fato de só poder haver restrição se o direito não for coletivo. Essa análise deve ser feita não pela matéria que se esta defendendo (por exemplo, o caso dos direitos dos beneficiários da previdência), mas pelo tipo de direito que se está a defender (isto é, o direito coletivo).
Logo, sendo os direitos dos beneficiários da previdência, no caso, direito individual homogêneo, ou seja, coletivo, não existe nenhuma restrição a atuação e a legitimidade da defesa pelo órgão ministerial.
O que ocorre com uma boa parcela da magistratura brasileira é a extrema dificuldade em se aceitar o “novo”. Como afirma o professor STRECK20, “se olharmos o novo, com os olhos do velho, transformamos o novo em velho”. Infelizmente é isto que está acontecendo. Por um apego a idéias de um processo voltado para solucionar demandas individuais, os magistrados têm uma dificuldade enorme em assimilar as novas modificações advindas com o processo coletivo, dando a sua devida eficácia e aplicabilidade.
b) a segunda, pelo “governo federal” que vem paulatinamente, através de Medidas Provisórias21, tentando delimitar o campo de atuação do Processo Coletivo.
Como preleciona SCARPINELLA BUENO “ao invés de estudar condições de dar cumprimento efetivo à decisão do mais alto Tribunal do país é isto que faz o governo: elimina mecanismo de tutela jurisdicional coletiva deste direito impedindo, assim, que, de uma penada, todos possam ser, igualmente, beneficiados com uma decisão uniforme a respeito do tema.”22
b.1) A medida provisória n.º 1570 de 26.3.97, depois transformada na Lei n.º 9.494, de 10 de setembro de 1997, pretendeu limitar a qualidade da coisa julgada à competência territorial do magistrado prolator da sentença , alterando o artigo 16 da LACP que passou a ter a seguinte redação : “A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.(grifo nosso)
A professora GRINOVER23 assim se manifesta sobre a alteração na Ação Civil Pública “limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e de outro lado, contribui para sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente”.
Por sua vez, THEDORO JUNIOR24, ainda impregnado com as influências históricas tratadas no item 2, concorda com a mudança no artigo16, afirmando que “como não há regra alguma de nível constitucional que obrigue a existir ações coletivas com força nacional, a Lei 9494, artigo2º, continuará a fazer com que cada juiz apenas disponha de autoridade para tutelar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos dentro do território de sua jurisdição”, e continua afirmando que “se contra a melhor técnica processual, o legislador entendeu de confundir numa só regra a competência territorial com os limites da força da sentença, o certo é que lei existe e, como tal, deverá ser acatada pelo Poder Judiciário. À jurisdição, a não ser como guardiã da supremacia constitucional, não é dado rever a obra legislativa para modificá-la ou revogá-la, ainda que sustentada por critérios de conveniência ditados pela melhor técnica jurídica”.(grifo nosso)
Em que pese à posição do ilustre professor mineiro, entendemos que tal alteração foi inócua, pois o âmbito de abrangência da coisa julgada é determinado pelo pedido, e não pela competência. Se o pedido for amplo não será por intermédio de tentativas de restrições da competência que o mesmo poderá ficar limitado.
Se tal modificação lograsse êxito, como é do desejo de THEDORO JÙNIOR, teríamos situações esdrúxulas, tais como: a veiculação de propaganda enganosa de um produto exposto em rede nacional, se uma ação coletiva fosse ajuizada em Porto Alegre, a proibição só valeria nos limites deste município, enquanto os outros consumidores continuariam a serem enganados, ou, a venda de um medicamento cancerígeno, também só seria proibido em determinado município onde fosse ajuizada a ação, já o restante da população poderia ingerir tal medicamento e até mesmo morrer, pois a determinação judicial só teria efeito naquele território, até que fossem ajuizadas milhares de ações em todo Brasil, o que é uma ofensa a qualquer lógica racional.
b.2) Logo depois veio a medida provisória n.º1798-1, de 11.2.99, que acrescentou alguns artigos a Lei 9494/97, dentre eles o artigo2.º-A – “ A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator” e seu parágrafo único – “Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços”.
Tais artigos, além de tentarem impor uma nova condição para o ajuizamento das ações pelas associações civis (ata da assembléia, relação nominal dos associados e indicação dos endereços), dificultando o acesso à justiça, só demonstram a falta de conhecimento do Direito Processual Coletivo, ao tentar, novamente, limitar os efeitos da sentença, apenas aos associados, e que possuam domicílio no âmbito da competência territorial do órgão julgador, repetindo o mesmo erro de confundir competência com abrangência da coisa julgada, tratado no item b.1.
A professora paulista GRINOVER, assim, afirma que “mais uma vez o governo serve-se do instrumento da medida provisória para minar todo o trabalho edificado ao longo de anos no sentido de prestigiar os momentos associativos, de facilitar o acesso à justiça e de dotar o Judiciário de instrumentos processuais modernos e adequados à tutela dos direitos ou interesses supra individuais”.
b.3) Para finalizar, a medida provisória 2.180-35 de 24 de agosto de 2001, que acrescenta o Parágrafo Único ao artigo 1.º da Lei da Ação Civil Pública – “ não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”.
Evidente a inconstitucionalidade da Medida provisória, pois essa teima em limitar a competência constitucional do Ministério Público na defesa dos direitos coletivos latu sensu, previsto no art, 129, III da Constituição25, já que não existe nenhuma restrição constitucional, aliás, essa declara que a legitimidade é ampla, não fazendo qualquer exceção à defesa de direitos tributários, previdenciários ou FGTS.
O STF provocado a se manifestar sobre o tema, na ADIN 225126 ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores – PT julgou a mesma prejudicada por falta de aditamento da inicial e na ADIN 235127 ajuizada pela Associação Nacional dos Oficiais Militares Estaduais – AME, e utilizou-se do mesmo motivo da anterior, julgando-a prejudicada por falta de aditamento da inicial.
Esta Medida Provisória teve o intuito de congestionar ainda mais o Judiciário. Agora será necessária uma série de ações individuais para pedir o que poderia ser obtido com uma única ação coletiva.
Em luminosa lição, SCARPINELLA BUENO esclarece que “morreu a ação civil pública que um dia ousou ir contra a voracidade fiscal do Estado e afastar, de uma só vez, toda a ganância tributária imposta à população brasileira. Não àquele que sabe o direito ou daquele que tem dinheiro para pagar tributaristas especializados na invenção de teses e mais teses que têm como premissa que todo o tributo criado no Brasil é inconstitucional (e por que ler as leis se são todas inconstitucionais?). Mas daquele humilde que paga tributo porque sequer sabe que, fosse um país sério, não teria que pagar tributo para avaliar fluxos de pagamentos de outros ingressos mal servidos, mal usados e desviados pela corja que, desde sempre, governa ou manipula o Brasil, suas instituições e seus destinos”.28
Verifica-se, portanto, que o Direito Processual Coletivo é atacado de um lado, pelo senso comum teórico que não compreendem ainda o alcance de suas normas e não sabem interpretar tal sistema, e de outro lado, pelo Governo Federal que ao longo dos anos tenta diminuir todas as vantagens do mesmo, em uma clara demonstração de política autoritária, e que há muito, colocou em cheque a divisão clássica dos poderes em nosso país.
Porém, o principal entrave para a ineficácia das ações coletivas será abordado no próximo capítulo.
6. A ineficácia do processo coletivo
Ainda que o sistema processual coletivo não viesse a sofrer sérios ataques por parte do governo federal, dos magistrados e tribunais29 seria extremamente difícil dar uma verdadeira efetividade ao direito processual coletivo, enquanto não vier a existir um efetivo rompimento com as raízes históricas que formam todo o nosso sistema processual, já salientado no item 2.
Como viabilizar um processo coletivo efetivo se muitos magistrados, ainda, seguem à risca as lições de Montesquieu sobre a separação de poderes, não conseguindo, assim, vislumbrar que o Judiciário pode interferir, por exemplo, na determinação de uma política pública (so) negada pelo poder executivo?
E, como viabilizar um processo coletivo efetivo se da decisão de um juiz não existe nenhum poder de “imperium”, ou seja, se o juiz não tem nenhum poder de força efetivo, para fazer com que a parte cumpra a sua decisão?
Finalmente, como viabilizar um processo coletivo efetivo com um sistema que não se contenta com a “verdade” do juiz de primeiro grau e que necessita, verdadeiramente, espera que o processo tramite por longos e longos anos, em todas as instâncias, para que enfim se vislumbre a “verdade” daquele caso nas Cortes Superiores?
Essas são, de forma geral, os limites, os obstáculos que se devem enfrentar para que o processo coletivo possa encontrar espaços reais e concretos para se fazer valer em nosso ordenamento.
7. Proposta de solução
Para que se possa dar uma maior efetividade ao nosso sistema processual coletivo, aderimos à idéia de MERRYMAN, que preleciona o estabelecimento de regimes locais específicos, isto é, os “microssistemas de direito” que diferem ideologicamente30 do Código, e nesse sentido são incompatíveis com ele.
Pelo item 4, torna-se evidente que já possuímos um microssistema de processo coletivo, mas que esse está permeado por nossas heranças históricas, que em muitos sentidos, legitimam a sua limitação.
Acreditamos que o primeiro passo a ser dado, manifesta-se no rompimento com essas amarras que passam por modificações não só da mentalidade de nossos juristas, mas também em alguns dos institutos do sistema processual coletivo. Para tanto, duas modificações parecem ser imperiosas :
a) aumentar o poder do juiz, para que esse possa ter melhores meios em efetivar as suas decisões (por exemplo, efetiva prisão por descumprimento de ordem judicial). Mas esse aumento deve, é claro, ser acompanhado de maior responsabilidade pelas decisões que vier a tomar, pois que nenhum poder pode prescindir de prestar contas de seu exercício;
b) restrição ao número de recursos no caso de determinadas decisões, ou até mesmo, a criação de um sistema recursal próprio para as demandas coletivas.
É certo que essas mudanças são difíceis, mas como escreve MORIN é preciso acreditar no improvável, pois essa crença é a única certeza para uma efetiva ação por parte de sujeitos históricos. “Certo, nem tudo está perdido. O pior não é certo. Creio no improvável. Não é uma fé ingênua. Creio no improvável porque sabemos que houve épocas… a palavra provável só tem sentido para as informações de que alguém dispõe, num dado momento num dado lugar. Em 1940-1941, sob a ocupação, quando os exércitos nazistas dominavam do Atlântico ao Cáucaso, era ‘altamente improvável’ que esta potência fosse destruída! E ela o foi! No momento do stalinismo triunfante, no momento em que os soviéticos entraram como manteiga no Afeganistão, quando eles detinham a metade do mundo árabe e do Terceiro Mundo, quem teria pensado que eles iriam desmoronar? Quem podia pensar, há dois milênios, que o enorme exército persa que atacou a pequena Atenas por duas vezes iria ser rechaçado? Que aquela cidadezinha miserável, uma vez salva, iria instituir a democracia e a filosofia, a herança sobre a qual vivemos hoje? Creio no improvável, porque, se acreditarmos nas probabilidades, vamos rumo ao caos demográfico, ao caos econômico, ao caos ecológico, ao caos nuclear… Mas o improvável pode acontecer”. 32
8. À guisa de Conclusão
“(…) De fato, não é possível que algumas séries de normas, embora bem elaboradas, sintéticas, espelhem todas as faces da realidade. Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos. Uma centena de homens cultos e experimentados seria incapaz de abranger em sua visão lúcida a infinita variedade dos conflitos de interesses entre os homens. Não perdura o acordo estabelecido, entre o texto expresso e as realidades objetivas. Fixou-se o Direito Positivo; porém a vida continua, envolve, desdobra-se em atividades diversas, manifesta-se sob aspectos múltiplos: morais, sociais, econômicos. Transformam-se as situações, interesses e negócios. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isso se deve censurar o legislador, nem reformar a sua obra. A ação do tempo é irresistível, não respeita a imobilidade aparente dos Códigos. Aplica-se a letra intacta a figuras jurídicas diversas, resolve modernos conflitos de interesses, que o legislador não poderia prever. Se de outra forma se agisse e se ativesse ao pensamento rígido, limitado, primordial, a uma vontade morta e, talvez, sem objeto hoje, porquanto visara a um caso concreto que se não repete na atualidade; então o Direito positivo seria uma remora, obstáculo ao progresso, monólito inútil, firme, duro, imóvel, a atravancar o caminho da civilização, ao invés de o cercar apenas de garantias”. 33
É, por todos aceito, que o direito, por sua própria natureza é um discurso bastante conservador, podendo-se afirmar, sem medo de errar, a existência de uma grande dificuldade que é gerada pela resistência à introdução de novos princípios e normas exigidas pelos desafios dos novos fatos. Esse processo de adaptação é, portanto, lento e gradual, e comumente, contraditório.
Há um descompasso freqüente entre a ordem jurídica e as transformações sociais, e a conseqüência desse fator é que o direito, conforme a experiência concreta tem demonstrado, apresenta uma irresoluta capacidade de distanciar-se com grande intensidade das transformações da sociedade.
Em sendo assim, o mundo jurídico nunca se apresenta ao mundo da vida de uma maneira imediata, ou seja, instantânea, sem detença e sem permeio. As modificações na área jurídica são introduzidas lentamente em razão das estruturas que formam a ciência jurídica. E, pela própria natureza das estruturas, que visam uma solidez necessária para a sua existência, o ordenamento jurídico percebe, com bastante insegurança qualquer transformação que o espaço social exige dele. O atraso nas transformações fica, ainda mais evidente, em comparação com outras ciências, tais como a medicina, a informática, a biologia etc.
Todavia, mudar é preciso, pois a transformação é comprovação de existência. Mesmo que se apresente contra a necessidade da modificação alguma resistência, essa há de soçobrar frente às exigências dos novos fatos e fenômenos que colocam todo e qualquer discurso social frente ao logos da adaptação. No caso em questão, é imperioso que se admita no espaço do processo civil brasileiro, o direito à vida das demandas oriundas do sistema processual coletivo.
É inegável que o espaço social, célere por respostas as suas necessidades, precisa ter no ordenamento jurídico não apenas uma resposta inteligível, mas uma pretensão de segurança aos obstáculos e desafios que ameaçam o corpo social. Quer dizer, não podem os magistrados, e a política arbitrária do Estado, buscar impedir o reconhecimento de que as demandas coletivas têm o direito à existência e, principalmente, o direito ao procedimento correto e legítimo, aliás, já garantido em lei.
Dessa forma, as estratégias para essa realização devem buscar todas as alternativas viáveis, esgotando mesmo as possibilidades de aplicabilidade. Da possibilidade do reconhecimento de microssistemas de direito, passando pelo aumento e valorização do poder juiz, enquanto discurso que faz emergir o direito, até a limitação da intervenção estatal no poder judiciário, acreditamos que é através da discussão levada a cabo em amplos espaços que a (in) efetividade do processo coletivo poderá ser enfrentada e construída.
O processo, agrilhoado ao indivíduo, há de libertar-se em direção ao reconhecimento de que as pretensões coletivas merecem o mesmo “espaço ao sol” do que a visão tradicional. O olhar deve estar voltado para o reconhecimento de que vivemos uma era de transformação e crise, que exige a alteração de velhos conceitos e a coragem para romper com os paradigmas tradicionais.
Em nome da legitimidade do discurso jurídico, em nome do direito continuar a ser uma comunicação legítima entre os indivíduos e desses com o Estado, é preciso dar o passo à frente, pois nenhuma tradição é perene, mas apenas tradição que, guardada na memória, não há de se transformar em religião, mas sim em fragmentos que se dissolvem em nome dos novos tempos e desafios.
Nesse sentido, destaca THOMAS KUHN que “(…) afirmar que a resistência é inevitável e legítima e que a mudança de paradigma não pode ser justificada através de provas não é afirmar que não existem argumentos relevantes ou que os cientistas não podem ser persuadidos a mudar de idéia. Embora algumas vezes seja necessário uma geração para que a mudança se realize, as comunidades científicas seguidamente têm sido convertidas a novos paradigmas. Além disso, essas conversões não ocorrem apesar de os cientistas serem humanos, mas exatamente porque eles o são… ocorrerão algumas conversões de cada vez, até que, morrendo os últimos opositores, todos os membros da profissão passarão a orientar-se por um único – mas já agora diferente – paradigma”.34
Informações Sobre os Autores
Antonio Marcelo Pacheco
Advogado criminalista do Escritório Amadeu Weinmann. Professor de Direito Penal e Processo Penal de cursos preparatórios para concursos públicos e seleção para OAB, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciatura e bacharelado em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS.
Cidade de domicílio do autor: Porto Alegre/RS.
Emanuel B. Almeida
Advogado especializado em Direito Civil; Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre/RS.