1. A questão do bem jurídico tutelado pelo Direito Penal
O legislador deve ter extrema prudência ao selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados pelo Direito Penal. O princípio da intervenção mínima exige que apenas aqueles bens considerados os mais relevantes pela sociedade sejam protegidos penalmente.
A (trinômia) vida-liberdade-propriedade tem sido reconhecida como o centro das atenções do sistema penal. Qualquer país minimamente civilizado reconhece que esses bens devem ser protegidos. E é significativo que, em nosso Código Penal, as penas mais elevadas são reservadas para os crimes que ofendem esses bens.
A escolha dos outros bens a serem protegidos é bem mais problemática: em cada período histórico, a sociedade decide a respeito da relevância ou não de certos bens. No Brasil do início do século passado, por exemplo, a moral sexual era considerada um bem valiosíssimo, sendo consideradas criminosas condutas como adultério, sedução e rapto. Em pleno século XXI, a importância desse “bem” decaiu significativamente, o que motivou sua revogação pela Lei 11.106/2005. (Por outro lado), não havia grande preocupação com o meio ambiente. Várias espécies de danos ambientais, que eram condutas atípicas em 1940, foram consideradas crimes com a Lei 9.605/98, período em que já havia se tornado evidente a necessidade de proteção à fauna e à flora.
Trata-se do princípio da adequação social, segundo o qual:
“O tipo penal implica uma seleção de comportamentos e, ao mesmo tempo, uma valoração (o típico já é penalmente relevante). Contudo, também é verdade, certos comportamentos em si mesmo típicos carecem de relevância por serem correntes no meio social, pois muitas vezes há um descompasso entre as normas penais incriminadoras e o socialmente permitido ou tolerado” (Bitencourt, 2003, p. 17).
A questão é como selecionar os bens que devem ser protegidos penalmente. Qual é o critério para aferir-se a adequação social de uma conduta?
2. A ponderação de direitos na Constituição
É bem sabido que a Constituição tem uma função básica: proteger os direitos individuais contra o abuso do poder estatal. Para isso, são previstos e garantidos esses direitos no art. 5° da Constituição Federal e são delimitadas as atribuições estatais, de forma que torne ilícita qualquer conduta de agente público que ultrapasse os limites nela estabelecidos.
A Constituição, portanto, tem caráter garantista: cabe-lhe prever e assegurar os direitos individuais. Esse caráter irradia-se para todos os campos do ordenamento jurídico, que, indubitavelmente, devem ter como finalidade última o ser humano e sua incansável busca pela felicidade. É indiferente que o Direito seja Penal, Civil ou Internacional, pois o objetivo é um só: o bem-estar do indivíduo.
Os bens que merecem ser juridicamente protegidos devem estar, portanto, definidos na Constituição. No art. 5°, vemos um extenso rol desses bens: vida, liberdade, propriedade, igualdade, privacidade, imagem, integridade física, etc.
Porém, a aplicação desses direitos nem sempre é fácil para o intérprete: a aplicação absoluta de um direito pode levar à ofensa de outro. Assim, se a liberdade for considerada como um direito absoluto, ou seja, plenamente exercitável em qualquer situação, ter-se-ia que permitir o suicídio e a eutanásia consentida, como abertas ofensas ao direito à vida (que, ressalte-se, não é direito sobre a vida).
A compatibilização de dispositivos que podem ser antagônicos em determinados casos é decorrência do princípio da unidade da Constituição:
“Ora, se a constituição está localizada no ponto mais alto, elevado do ordenamento jurídico, nada mais lógico, curial mesmo, que deve ser interpretada com preservação de sua unidade de sentido, impedindo-se a descoberta de supostas antinomias. É o princípio da unidade da constituição, vertido na atitude do intérprete tendente a analisar as normas constitucionais com postura de preservação de seu caráter unitário, repugnando qualquer probabilidade de se eduzirem idéias contraditórias” (Silva Neto, 2007, p. 108).
Assim, para compatibilizar o direito de propriedade, eminentemente individual, com o interesse público, a Constituição exige que seja obedecida sua função social. Nesse sentido, um direito não pode esmagar o outro, mas ser compatibilizado com ele. Por exemplo, a desapropriação pode ser realizada em vista do interesse coletivo ou da utilidade pública, mas sempre com o pagamento de prévia e justa indenização (exceto nos casos de imóveis rurais utilizados para a plantação de psicotrópicos, que são confiscados).
3. A liberdade de expressão
Liberdade de expressão é o direito de se manifestar opiniões livremente. Trata-se de um direito negativo, de primeira geração, que exige do Estado uma abstenção, ou seja, a ausência de qualquer impedimento à livre circulação de idéias.
Esse direito, como todos os outros, é fruto de lenta evolução histórica e ainda não foi suficientemente implantado na maioria dos países do mundo. Países como Cuba, China e Rússia têm forte controle sobre os meios de comunicação. Países islâmicos, com freqüência, restringem a liberdade de culto (derivada diretamente da liberdade de expressão) dos seguidores de outras religiões.
A liberdade de expressão tem sido repetidamente afirmada nos foros internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969); Declaração de Chapultepec (1994); a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão (2000), etc.
Do último documento, destacam-se os seguintes trechos:
“5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação por meio de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de idéias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão.
(…)
10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas. (grifou-se)
11. Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”
A Constituição Federal de 1988, seguindo a tradição das constituições anteriores, que asseguravam a liberdade de expressão (à exceção das cartas outorgadas de 1937 e 1969), determinou no art. 5°, IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Portanto, a princípio, a Constituição protegeu a liberdade de expressão de modo absoluto: podem ser manifestadas quaisquer idéias, sem a necessidade de concordância (licença) do governo e sem o controle estatal sobre o conteúdo expresso (censura). José Cretella Júnior (1990, p. 256) define a censura como:
“O exame a que determinadas autoridades governamentais, moralistas ou eclesiásticas, submetem os meios de comunicação humana (livros, jornais, discursos, sermões, filmes, teatro, televisão, rádio), conforme padrões discricionários fixados pelo centro ou poder dominante dentro de determinados limites, estabelecidos em lei, podendo ser prévia ou a priori e posterior, depois de concretizada a comunicação. Mediante a censura prévia, impede-se a operação de concretização da transmissão da imagem, mediante censura a posteriori, apreendem-se as publicações já feitas ou aplicam-se sanções aos infratores” (grifou-se).
Portanto, a Constituição vetou qualquer controle prévio sobre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Também teria vetado qualquer controle posterior à manifestação do pensamento. Porém, devem ser analisadas, sobre o prisma do princípio da proporcionalidade, as hipóteses em que o direito à liberdade de expressão deve ser compatibilizado com outros direitos, principalmente os direitos à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade (previstos no art. 5°, X).
4. A amplitude da liberdade de expressão
Sabe-se que os direitos previstos na Constituição não são absolutos: devem ter sua abrangência limitada por outros direitos, de modo que um não seja anulado ou por demais restrito por outro. Trata-se do princípio da proporcionalidade, há muito reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina.
A colisão entre direitos fundamentais pode ser resolvida pela própria Constituição ou por meio da legislação infraconstitucional.
A liberdade de expressão pode atingir, de maneira indireta, outros direitos fundamentais, como vida, liberdade e propriedade: o agente manifesta-se a favor de determinada conduta delituosa (ex.: dizendo que determinada pessoa deve ser morta) e, dessa forma, coloca em risco o bem jurídico protegido. Nosso Código Penal, tradicionalmente, tipifica esse comportamento basicamente de três maneiras:
I) participação (art. 29), que pode ser por induzimento, no qual o agente coloca na mente de outrem a idéia de cometer o crime; ou por instigação, na qual o agente estimula uma idéia criminosa já existente;
II) incitação ao crime (art. 286): estimular pessoas indeterminadas a cometerem crimes; e
III) apologia ao crime (art. 287): referir-se a fato criminoso ou a autor de crime de maneira que os enalteça.
Portanto, essa colisão de direitos constitucionais foi resolvida pelo Código Penal. Ressalte-se, porém, que os crimes dos arts. 286 e 287 são classificados como de perigo abstrato, ou seja, a lei presume que os bens protegidos foram colocados em risco. Essa categoria de crimes é considerada inconstitucional por boa parte da doutrina[i], que acredita ser indispensável à função garantista do Direito Penal a existência ou a ameaça concreta de lesão ao bem jurídico protegido.
A lógica, portanto, é que a liberdade de expressão deve ceder sempre que colocar em risco concreto bens jurídicos mais valiosos, como vida, liberdade e propriedade.
Em muitas ocasiões, o exercício da liberdade de expressão, mesmo que aparentemente abusivo, não afeta de modo algum o exercício de outros direitos. Assim, se algum representante de igreja evangélica disser que os praticantes de umbanda e candomblé são discípulos do diabo, a liberdade de crença dessas pessoas não será atingida. Seus cultos religiosos continuarão sendo realizados da mesma forma. Totalmente diversa é a atitude de quem tumultua um culto, impedindo o livre exercício do direito de crença.
5. A proteção constitucional da honra
A honra é o mais subjetivo dos bens jurídicos. Trata-se de julgamento das qualidades morais e intelectuais da pessoa, cujo juiz é o proprio indivíduo (honra subjetiva) ou esse ente amorfo que chamamos de sociedade (honra objetiva).
Não somos auto-suficientes. Pelo contrário. O lugar comum “ninguém é uma ilha” aplica-se à quase totalidade das pessoas. Pouquíssimos são aqueles que vivem de modo independente da opinião alheia. Nesse sentido, veja-se a explicação fornecida pelo filósofo suíço Alain de Botton:
“Em um mundo ideal, seríamos mais impermeáveis. Não nos abalaríamos sempre que fôssemos ignorados ou notados, elogiados ou zombados. Se alguém nos elogiasse enganosamente, não nos deixaríamos seduzir sem razão. E, se fizéssemos uma auto-avaliação justa de nós e nos convencêssemos de nosso valor, não nos deixaríamos magoar se outra pessoa sugerisse nossa irrelevância. Conheceríamos nosso valor. Em vez disso, parecemos carregar uma gama de visões divergentes quanto ao nosso caráter. Temos provas de inteligência e estupidez, humor e obtusidade, importância e superfluidade. E, nessas condições inconstantes, a atitude da sociedade passa a estabelecer o quanto somos importantes” (Desejo de Status, p. 18-19).
A proteção da honra data de épocas remotas, sendo que várias legislações da Antiguidade já previam punições severas àqueles que atentassem contra a honra alheia. É sintomática a frase latina: “Honoris causa et vita aequiparantur” (“A honra e a vida se equiparam”) – cf. Bessa, 2003, p. 117. Na prática, a dignidade de cada pessoa sempre dependeu do que os outros pensam a esse respeito.
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de novembro de 1969, prescreve, em seu art. 11, que “toda pessoa tem o direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. Tal determinação é reconhecidamente de índole constitucional por força do art. 5°, § 2°[ii], da Constituição Federal.
Pois bem. A Constituição deixou bem clara a importância da honra ao afirmar, de forma inédita na história brasileira, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (art. 5°, X). Ora, tornar a honra um direito inviolável é considerar qualquer ofensa à dignidade alheia como ato ilícito, portanto, passível de sanção.
6. A ponderação constitucional entre a honra e a liberdade de expressão
Sabe-se que não há direitos absolutos. Como visto, na maioria das vezes em que um direito é exercido, outro deve ser restringido ou mesmo suprimido. Caso se trate de um direito previsto na Constituição e, outro, na legislação ordinária, a solução é simples: aplica-se o direito resguardado pela Constituição. A questão torna-se mais complexa na situação em que os direitos conflitantes situam-se no mesmo patamar, no caso, ambos são direitos previstos constitucionalmente.
Torna-se inevitável que, nessa ponderação, algum dos direitos prevaleça, mas, quando se trata de direitos constitucionais, não pode haver supressão, mas apenas uma restrição que preserve seu núcleo essencial. Assim, é possível a desapropriação de imóvel rural para reforma agrária, mas com o pagamento de indenização a quem perdeu a propriedade do bem.
A compatibilização entre direitos constitucionais pode ser realizada em três níveis: na própria Constituição, na legislação ordinária ou no processo. Obviamente, há uma precedência do primeiro nível sobre o segundo e o terceiro.
Nesse contexto, insere-se a problemática compatibilização entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão. A própria Constituição define os limites de ambos ao dispor que é inviolável o direito à honra, sendo “assegurado o direito a (sic) indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5°, X).
Isso significa que a honra é realmente inviolável e qualquer ofensa deve ser sancionada com o pagamento de indenização por danos morais ou materiais. Ora, a Constituição permitiu apenas uma sanção pecuniária de natureza civil. Em nenhum momento considerou que a ofensa à honra pode ser sancionada penalmente. A omissão, nesse caso, deve ser interpretada negativamente, ou seja: a Constituição, ao deixar de referir-se às penas criminais, implicitamente, vedou-as.
Portanto, o abuso do direito à liberdade de expressão, como qualquer abuso de direito, deve ser sancionado, mas somente na seara civil. A sanção penal foi implicitamente proibida pela Constituição, pois afetaria o núcleo essencial do direito à liberdade de expressão.
A conseqüência inevitável é a revogação, por ausência de recepção constitucional, dos crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria e desacato) previstos no Código Penal[iii] e na Lei de Imprensa. Há muito, já se sabia que o interesse predominante nesses casos não é da sociedade, mas do indivíduo, quanto mais porque a honra é considerada um bem disponível. Geralmente, esses crimes são processados por meio de ação penal privada (privativa do ofendido). O que a Constituição de 1988 fez foi retirar as ofensas contra a honra de modo definitivo do campo público para o privado. E o fez exatamente para proteger um bem maior: a liberdade de expressão[iv].
Nesse sentido, é o magistério de Luiz Carlos Rodrigues Duarte (1998, p. 8):
“Na realidade, o Direito criminal foi alijado da disciplinação dessa matéria, a qual foi transferida para a égide do Direito Civil. O moderno Constituinte Brasileiro decidiu eliminar as Ciências Penais desse campo, por entender que as violações à honra pessoal possuem natureza privada, consistindo em ultrajes personalíssimos que só interessam aos titulares da honra subjetiva ou objetiva ultrajada. (…) Por isso, houve evidente transformação dos ilícitos penais em ilícitos civis”.
7. A título de conclusão
Norberto Bobbio leciona, em “A Era dos Direitos”, que os direitos hoje reconhecidos por tratados internacionais e pelas constituições nacionais são fruto de intensa luta histórica. Direitos considerados bastante normais, hoje em dia. só foram conquistados depois de guerras e revoluções. Nas tribos primitivas, ao contrário da visão idealizada, não havia liberdade alguma para o ser humano.
Um desses direitos é exatamente a liberdade de expressão, que foi se firmando paulatinamente no decorrer dos últimos séculos. Nas palavras de John Stuart Mill (1859, p. 35), reprimir a liberdade de manifestação do pensamento é conveniente apenas para governos tirânicos e corruptos.
A evolução, porém, não decorre necessariamente da história. Comumente, vê-se a regressão da proteção dos direitos individuais[v]. Portanto, a luta pela garantia desses direitos deve ser constante, pois a ameaça a eles também é constante. Todo poder estatal é um risco para a liberdade individual.
Mais do que um Estado Democrático de Direito, requer-se hoje, no Brasil, um Estado Constitucionalista de Direito, em que as restrições aos direitos fundamentais somente serão aquelas permitidas pela Constituição e pelos Tratados de Direitos Humanos, que têm força constitucional. Nesse Estado, cujo centro é o ser humano e seus direitos, não há espaço para os crimes contra a honra.
Bibliografia:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista