Resumo: Trata-se de artigo que objetiva traçar um paralelo entre as atividades de ocupação de terra realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e os atos de desobediência civil, que representa uma forma legítima de reação da sociedade face às injustiças sociais.
O embrião do Movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST) surge em 07 de outubro de 1979, ocasião em que agricultores sem terra do Rio Grande do Sul ocupam a gleba Macali, em Ronda Alta. As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da década de sessenta, quando o MASTER[1] (Movimento dos agricultores sem terra) organizara os acampamentos na região. Simultaneamente, surgiam ocupações de trabalhadores rurais nos demais estados do Sul, Mato Grosso e em São Paulo[2].
Neste período histórico, isto é, no final dos anos 70, a inflação chegava a 94,7% ao ano. Em 1980 bateu 110% e, em 1983, 200%. O Brasil entrou numa recessão cuja principal conseqüência foi o desemprego. Em agosto de 1981, havia 900 mil desempregados somente nas regiões metropolitanas. Para completar o quadro de falências sociais, em 1980, o analfabetismo ainda atingia 25% dos habitantes[3]. A busca por soluções a estes problemas constituía algumas das reivindicações dos movimentos sociais da época.
O MST nasce oficialmente em 1984 durante o 1º Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), sendo, no ano seguinte, organizado nacionalmente, momento em que se realizou o 1º Congresso Nacional dos Sem Terra, realizado de 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, com 1500 delegados representando 23 estados brasileiros.
De acordo com o próprio Movimento (1996), pode-se dividir a sua história em três fases:
1. Período de 1979 a 1988: Trazia por lema “terra para quem nela trabalha” e coincidia a luta pela terra com a luta pela reforma agrária;
2. Período de 1988 a 1995: Neste momento, a reforma agrária passou a ser vista de forma mais ampla, isto é, além da conquista da terra, passando a referir-se a um complexo de políticas e medidas governamentais, destinadas a alterar a estrutura fundiária do país[4]. Identifica-se com a luta pelo socialismo e definiu-se, a partir deste momento, a disposição de resistir às ordens de desocupação da terra, trazia o lema “ocupar, resistir, produzir”, sendo justificadas as ocupações pelo Movimento da seguinte forma: “Ocupar era a reafirmação da forma de luta, resistir era devido à repressão, e produzir era a contestação à UDR[5]; que chamava os sem-terras de ‘preguiçosos e vagabundos’ ” (MST, 1996:12).
3. Período de 1995 até os diais atuais: Trouxe o lema “reforma agrária, uma luta de todos”, elaborado no III Congresso Nacional do MST, que tinha por eixo central a união dos trabalhadores rurais e urbanos, bem como a redefinição do perfil da política de reforma agrária de distribuição de terra e financiamentos, baseada na implantação da agroindústria, por meio de cooperativas.
Assim, verifica-se uma mudança de paradigma, pois o Movimento não só ocupa latifúndios, como forma de pressão política, mas também contribui com a luta de outras categorias, como operários, petroleiros, professores etc. Esta mudança deveu-se ao desenvolvimento tecnológico ocorrido na contemporaneidade não alcançar os trabalhadores rurais, trazendo por conseqüência o êxodo no campo[6], gerando também um agravamento nos problemas sociais das cidades.
“Haverá, porém, que se acrescentar como parte da reforma agrária, todas as condições de desenvolvimento social, cultural e humano, para que os assentados e trabalhadores agrícolas possam ser beneficiados pelas descobertas cientificas em todas as áreas. Com isso, deverá haver melhorias na educação, na cultura, na arte, no lazer etc.
Estes elementos complementares à distribuição de terra e de créditos é que motivarão os trabalhadores em grande parte a retornarem e permanecerem na agricultura.
O caminho mais seguro para se resolver os problemas sociais do país é realizando a reforma agrária, implantando indústrias no campo, para que se possa integrar a mão-de-obra excedente na transformação da matéria-prima em produtos industrializados”. (MST, 1996:22).
É muito comum ouvirmos falar em quanto os atos do Movimento são violentos e ilegais, identificando-se, não raras vezes, seus integrantes como baderneiros, desordeiros e, principalmente, criminosos. Tendo por base as formulações de Foucault (1988), verifica-se que a estratégia da criminalização é simples e facilmente formulada na teoria geral do contrato, pois o “criminoso” ao romper o pacto social, torna-se inimigo de toda a sociedade, não obstante se torne co-partícipe da punição que se exerce sobre ele. A infração lança o indivíduo contra todo o corpo social, formando-se, assim, um formidável direito de punir. Verifica-se também, por parte da imprensa uma colaboração neste quadro, um preconceito que se amplia discriminando os movimentos sociais, por meio de preconceitos e de enorme carga imagética contra as lutas e revoltas justas do povo brasileiro.
Historicamente, sempre houve muita violência contra as populações, seja contra os nativos, contra os escravos, depois contra as “pessoas livres” em suas relações de trabalho, reforçando-se contra os movimentos organizados, de revoltas populares, camponesas ou urbanas. Basta verificarmos na história a perseguição aos quilombos, as lutas de Canudos, entre tantos outros. Todas tomadas como perseguições políticas pelos críticos da hegemonia do capital. Intenta-se criminalizar os membros do MST, especialmente suas lideranças, para assim conseguirem engessar o Movimento, pois sua luta em nada interessa à classe hegemônica, detentora do poder. Desta forma, pretendo neste artigo apresentar uma das teses levantadas para se assegurar a legitimidade das ocupações realizadas pelo MST, qual seja a desobediência civil.
A desobediência civil é prática antiga, encontrando-se notícias já no direito romano, aparecendo também no direito de resistência previsto por John Locke[7]. Contemporaneamente, podemos citar três grandes nomes, sendo eles os responsáveis pelo conceito moderno de desobediência civil: Henry David Thoreau[8], Mohandas Karamchad Gandhi[9] e Martin Luther King[10].
Garcia (2000) afirma que, apesar de haver controvérsia, pode-se verificar três características principais acerca da desobediência civil, quais sejam:
a) Aparência de Ilegalidade: A princípio, todo ato de desobediência é ilegal, posto que visa denunciar o caráter injusto de uma norma legal ou política governamental (p.35). Cohen e Arato reforçam que qualquer base legal para a desobediência civil seria contraditória em si mesma, acarretando na impossibilidade de sua institucionalização[11]. Entretanto, este caráter ilegal é bastante relativo, visto haver autores que sustentam que a desobediência civil é juridicamente justificável em um Estado Democrático de Direito, razão pela qual acima se mencionou que o ato é ilegal a princípio, pois, na verdade, não o é, visto que o objetivo da desobediência é a demonstração da legalidade da conduta ou da ilegalidade da comandada (2000:35).
b) Publicidade: de acordo com esta característica, nenhum ato de desobediência pode ser sigiloso. Muito pelo contrário. Os desobedientes querem sempre dar maior visibilidade às suas atividade, via de regra noticiando o acontecimento à imprensa e às autoridades. Os desobedientes, pretendendo a alteração da lei ou da política oficial, servem-se da desobediência como último recurso e mantém permanentemente abertos os canais de negociação com as autoridades (2000:36).
c) Não-violência: A estratégia da não-violência visaria expor o vigor moral daqueles que sofrem a agressão e o preconceito, demonstrando que são tão merecedores de respeito e dignidade quanto seriam os agressores (2000:36). Assim, somente restaria a estes reconhecer aqueles como iguais. Outro aspecto importante desta característica, principalmente em países que possuem imprensa relativamente livre, é que ao se divulgar imagens em que os manifestantes são agredidos covardemente sem qualquer resistência, há uma exposição da brutalidade e assim mobiliza-se a opinião pública a favor dos desobedientes.
Com base nestas características, Garcia (2000) conceitua desobediência civil como o ato a princípio ilegal, público e não-violento praticado por uma pessoa ou grupo de pessoas, com o objetivo de provocar a alteração de lei, política governamental ou prática social e/ou de obter o apoio ativo da opinião pública para a sua causa. (p.38)
A afirmação supra de que a desobediência civil somente tem aparência de ilegal deflui em três linhas básicas de argumentação:
a) Estado de necessidade: a conduta não seria ilegal visto conter no ordenamento jurídico dispositivos que retirariam seu caráter ilícito. No caso das excludentes de ilicitude, como o próprio nome indica, inexiste conduta-tipo, não há crime, respondendo o agente apenas pelo excesso, doloso ou culposo.
b) Teste de constitucionalidade: Esta tese é defendida, por Dworkin (1995) ao colocar que apesar de o ato de desobediência parecer ilegal, ele, na verdade, representa um teste de constitucionalidade da norma, objeto de questionamento ou mesmo sobre a legalidade do modo de aplicação da mesma.
c) Exercício de direitos fundamentais: os que defendem este argumento entendem que todos os atos de desobediência civil encontram-se acobertados por direitos fundamentais, tais como liberdade de expressão, de reunião ou de manifestação, respeito à dignidade, cidadania, igualdade etc., e ainda estes estariam coadunados com o princípio da proporcionalidade, que requer para sua verificação um processo de ponderação entre o bem jurídico protegido pela norma violada e o direito fundamental exercido através de sua prática.
Boaventura Sousa Santos, ao abordar a questão democrática, afirma haver quatro espaços estruturais nas sociedades capitalistas: o doméstico, o da produção, o mundial e o da cidadania. Segundo o autor, apesar de em todos se poder identificar relações de poder, somente este último espaço, constituído pelas relações sociais da esfera pública entre cidadãos e o Estado, é aceito como espaço propriamente político pela teoria política liberal. No mesmo passo, todas as outras dimensões da prática social foram despolitizadas e, com isso, mantidas imunes ao exercício da cidadania. (1995:270).
Há nos atos praticados pelo MST medidas de desobediência civil e de resistência ao poder instituído colocados no âmbito da cidadania, espaço público por excelência, desta forma ficando legitimada sua presença no cenário nacional em conformidade com o Estado Democrático de Direito e as modernas concepções da democracia[12].
Não se pode confundir a desobediência civil com a desobediência comum, em sentido estrito. Segundo Bobbio[13], aquela é uma forma particular desta, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la. Assim, o desobediente civil entende suas ações não apenas como lícitas, mas também obrigatórias, devendo ser tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada, a desobediência civil é um ato que visa mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor. Precisamente pelo seu caráter demonstrativo e por seu fim inovador, o ato de Desobediência civil tende a ganhar o máximo de publicidade, servindo este caráter publicitário para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só expondo-se ao público pode esperar alcançar seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas metas.
Os atos praticados pelo MST provocam forte tensão sobre as estruturas do poder, na medida em que as ocupações de terras e de prédios públicos ou particulares abertos ao público são sempre manchete de jornal, sendo comumente apontadas como antidemocráticas e ilegais. Entretanto, deve-se ter em mente que o que o MST critica é o latifúndio improdutivo e a propriedade rural especulativa[14], ressaltando-se que tais discursos trazem por fundamento menos a organização dos assentamentos por parte do MST e mais, muito mais, os não ditos que aí se escondem, isto é a priorização que conferem à posse e à utilização coletiva da terra, bem como a insistência pelo financiamento aos insumos, questão que se inscreve no campo da utilização democrática dos espaços públicos.
A nossa Constituição Federal, em seu art. 5º, XXIII, determina que a propriedade atenderá a sua função social, bem como os artigos 184 a 191, da Carta Magna. Enfim, conclui-se que o que o Movimento pleiteia nada mais é do que o cumprimento efetivo da nossa Lei Maior, em atenção, ainda, aos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, que são os fundamentos da República, conforme o art. 1º, II e III, da CF/88, sem falar ainda dos seus objetivos fundamentais, previstos no art. 3º, I, III e IV, da Constituição Federal.
As ocupações realizadas pelo MST possuem somente aparência de ilegalidade, tanto que há inúmeras decisões de primeira e de segunda instâncias, e mesmo de tribunais superiores, reconhecendo a inexistência de crime[15]. Neste mesmo sentido, a ocupação de prédios públicos ou privados constituem uma tradição na história da desobediência civil, como se pode lembrar das condutas observadas, por exemplo, em Martin Luther King, bem como em nossa atualidade por militantes ecológicos e manifestantes civis ao protestarem ativamente contra a política nuclear, ou a poluição do meio ambiente, provocando incidentes considerados fora das leis vigentes. Deste modo, tomando os discursos em relação ao MST, não há como comparar, como já foi feito pelo ex-presidente Fernando Henrique, os militantes e a militância popular à assaltantes comuns, pois estas ações são realizadas em protesto contra ausências de políticas para financiamento à pequena propriedade rural e aos assentamentos.
Outro ponto em comum entre as atividades do Movimento e os elementos que caracterizam a desobediência civil, é a publicidade de seus atos, observando que os mesmos sempre são amplamente divulgados pela Mídia antes de sua ocorrência[16], podendo-se facilmente identificar suas lideranças, até mesmo, porque são conhecidas, não existindo qualquer tentativa de ocultamento nem evasão.
Quanto ao elemento da não-violência, Garcia (2000) afirma corretamente que não se deve levar em conta ações específicas, mas sim a definição geral e abstrata das formas de atuação do Movimento. O MST já verificou na prática que as negociações com o Governo, sem as ocupações, passeatas e atos públicos realizadas para pressionar, não chegam a lugar algum[17], ou seja, sem radicalizar nada têm conquistado.
Deve-se ter em mente que a resistência dos membros do MST liga-se à violência praticada por parte dos fazendeiros, proprietários das terras ocupadas, tanto que nos confrontos, grande saldo de mortos e feridos encontra-se entre os trabalhadores sem-terra sendo irrisório o número de vitimados do lado dos jagunços e policiais, até mesmo pelo tipo de armamento que estes últimos vêm utilizam para massacrar os manifestantes. Pode-se constatar com este dado, mais um resquício de nossa história de violência contra os movimentos sociais, à semelhança do ocorrido em Canudos e, até mesmo, em Eldorado dos Carajás.
Esteves (1989) argumenta que os atos violentos são contraproducentes nos sistemas representativos ocidentais, mas que no caso dos sistemas políticos autoritários, nos quais uma pequena minoria submete pela força a maioria da população, há que se questionar sobre a eficácia da não-violência e se sua defesa não redundaria em involuntária colaboração com a injustiça[18]. Em defesa do MST, Garcia reafirma que os membros do MST não devem pretender ser mártires, mas suas condutas devem atentar para duas exigências: que eles não tomem a iniciativa do confronto violento; e de que, quando agredidos, limitem sua eventual reação de forma proporcional e moderada[19], levando os atos violentos para uma alegação de legítima defesa. Esposa, assim, que os atos do MST são tendencialmente não violentos ou, se utilizada a violência, esta é sempre em caráter reativo e moderado se comparados aos empregados pelos agressores.
Bobbio entende também que um ato de desobediência civil, que é coletivo, se distingue de uma outra espécie de direito de resistência, qual seja a individual. Afirma ele que a resistência individual em regra é não violenta, enquanto a desobediência civil deu lugar a manifestações de violência.
Baldez constata que o MST, consciente de que a reforma agrária não se dará sem efetiva luta pela conquista e democratização da terra, criou o fenômeno das ocupações coletivas[20]. Trata-se, no dizer de Baldez, de instrumento de correção da propriedade injusta. É através das ocupações que o MST consegue maior reflexo, ser visto, conforme o lema “incomodar para mudar” e por meio das quais os espaços de luta e resistência são materializados. No dizer de Fernandes (2000), se as autoridades públicas agem de alguma forma no caminho da reforma agrária o fazem por pressão, em razão das atividades de luta dos movimentos sociais:
“A política de assentamentos do governo federal e de alguns governos estaduais é apenas uma resposta às ações dos sem-terra. Essa política não existiria sem as ocupações.
Os espaços de luta e resistência são materializados na ocupação da terra. A ocupação é condição da territorialização. A terra conquistada é uma fração do território, onde os sem-terra se organizam para promoverem um novo grupo de famílias que irá realizar uma nova ocupação, conquistando outra fração do território. Assim, a luta se renova e se amplia, territorializando-se. Dessa forma, os sem-terra migram por todo o território nacional, plantando as raízes da luta e minando a concentrada estrutura fundiária”. (Fernandes, 2000: 07)
O MST exerce, na verdade, segundo Pinto (1992), um controle informal de constitucionalidade, pois atua com base nos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro com o fim de lhes dar efetividade. O que o MST exige é o cumprimento da lei, afirmando Andrade (2003) que o Estado não tem legitimidade para acusar o descumprimento da lei e muito menos para, em nome dela, erguer o braço armado do controle penal (punir).A atividade de ocupação realizada pelo MST aparentemente denota ilegalidade, mas na verdade é realizada com o fim de levantar o debate, de publicizar e politizar o problema que o campo enfrenta, pressionando a União para que concretize a reforma agrária.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Cristiane de Souza Reis
advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)