O efeito prospectivo das decisões em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental

1. Introdução

A Lei n 9.882/99, regulamentando o art. 102, § 1°,
da Constituição Federal, trouxe uma novidade ao controle de constitucionalidade
brasileiro, qual seja, a previsão, no seu art. 11, dos efeitos prospectivos das
decisões proferidas em controle de constitucionalidade, in verbis:

”Art.
11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de
argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo
Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os
efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Ressalte-se que a Corte Maior, com fundamento no
princípio da supremacia da Constituição, até então, adotava o entendimento de
que, sendo as leis inconstitucionais nulas desde o seu nascedouro, as decisões
proferidas em sede de controle de constitucionalidade sempre teriam efeitos ex tunc. Fundamentava a sua posição no postulado
da nulidade das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade,
o qual não admitia relativizações. A despeito disso, a legislação de alguns
países, bem como um número considerável de juristas brasileiros, já admitiam a
modulação dos efeitos das decisões proferidas no controle concentrado.

Tudo nos faz crer que, a manipulação dos efeitos da
decisão, desde que realizada com cuidado, se mostra mais eficaz à defesa dos
direitos e garantias fundamentais e à sociedade. Com o intuito de esclarecer o
dissídio doutrinário, apresentamos, a seguir, de modo mais detalhado, os
argumentos defendidos pelas duas correntes e os ensinamentos do direito
comparado.

2. O
dogma da nulidade da lei inconstitucional, com efeitos ex tunc

Segundo Mendes (1996, p. 249), pertence à tradição
do direito brasileiro o dogma da nulidade da lei inconstitucional. Embora não
haja na Constituição Federal nenhum dispositivo atribuindo expressamente
eficácia ex tunc às decisões proferidas
em sede de constitucionalidade das leis, predomina na doutrina e jurisprudência
pátrias o entendimento quanto ao caráter declaratório [declara um estado
preexistente] e retroativo das referidas decisões, nele vislumbrando um
verdadeiro princípio constitucional implícito[1].

Neste ponto, o direito pátrio filiou-se à doutrina
norte-americana da judicial review,
adotada pelo juiz John Marshall desde o julgamento do caso Marbury versus Madison. Esta doutrina tem como
fundamento o princípio da supremacia da constituição sobre as demais leis, de
forma que se uma lei inferior contrariar uma norma constitucional, ela será
nula desde o seu nascimento, já que o reconhecimento de qualquer efeito a uma
lei inconstitucional – ainda que por tempo limitado – importaria na suspensão
provisória ou parcial da Constituição[2].

Veremos, porém, que a nulidade não é o único meio
de preservação da supremacia da Constituição, possuindo em certos casos, a
anulabilidade esse mesmo caráter protetor, como acontece na Áustria e em Portugal.
É certo que merece aplausos a tese sustentada pelo Juiz Marshall, a partir do
momento que enunciou com clareza o princípio da supremacia da Constituição, o
qual garante o sistema de constituições rígidas como o nosso. O problema está
em se tratar o princípio da nulidade como um verdadeiro dogma, colocando-o com
hierarquia superior aos demais princípios e regras constitucionais, o que não
se afigura correto em Constituições como as nossas, que, no dizer de Canotilho,
são caracterizadas como sistemas abertos de normas e princípios.

Isso porque, segundo o autor português, um sistema
constituído exclusivamente por regras conduziria a uma limitada racionalidade
prática, já que exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa, com
um legalismo exacerbado. Conseqüentemente, teríamos um “sistema de segurança”,
mas não haveria espaço para sua complementação e desenvolvimento. Por outro
lado, um sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a
conseqüências igualmente inaceitáveis, tendo em vista que, a inexistência de
regras precisas, a coexistência de princípios conflitantes e a dependência do
“possível” fático e jurídico, levariam a um sistema falho de segurança jurídica
e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema.

Sendo a Constituição, como já se disse, considerada
um sistema aberto de regras e princípios, podem existir tensões entre os vários
preceitos nela contidos, de modo que para que um Estado obtenha “coerência
narrativa” do sistema jurídico, valorando o princípio da unidade da
Constituição, deve ser afastada a transformação de qualquer princípio em
verdadeiro dogma constitucional. Destarte, diante do caso concreto, a aplicação
incondicionada do dogma da nulidade das leis inconstitucionais suscita questões
de difícil equacionamento.

Com efeito, destaca Sarmento (2001, p. 11):

”(…)
a eliminação retroativa de normas vigentes no ordenamento pode gerar situações
de verdadeiro ‘caos’ jurídico, ocasionando tremenda insegurança para aqueles
que pautaram seus atos pela lei inconstitucional. Tal problema se agrava, tendo
em vista a imprescritibilidade do vício de ilegitimidade constitucional. Nada
obsta que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só seja reconhecida
muitos anos depois da sua edição. Nestes casos, a supressão retroativa da lei
contrária pode acarretar tremendas injustiças, constituindo o abrandamento dos
efeitos solução mais razoável e consentânea com o conjunto de interesses e
valores tutelados pela Constituição”.

Vejamos, no próximo tópico, a tendência
contemporânea de temperamento ou relativização dos efeitos da decisão de
inconstitucionalidade, que vem sendo aplicado no direito comparado com bastante
êxito.

3. Direito comparado

A maior parte dos países que adotaram o controle
jurisdicional de constitucionalidade optaram, no que tange aos efeitos
temporais da decisão, pelo modelo norte-americano, em que a decretação da
inconstitucionalidade produz efeitos retroativos ab initio.

A principal exceção a esta regra deu-se na Áustria,
onde se adotou a natureza constitutivo-negativa da decisão que pronuncia a
inconstitucionalidade de uma lei. Em Portugal, o art. 282, n. 4, de sua
Constituição, previu por razões de eqüidade, segurança jurídica ou interesse
público de excepcional relevo, o qual deverá ser fundamentado, a fixação dos
efeitos da inconstitucionalidade com alcance retroativo mais restrito.

Ao comentar o referido dispositivo da Constituição
Portuguesa, expressou-se Miranda (1988, p. 389-390):

 “Trata-se de um mecanismo criado para adequar os efeitos
da inconstitucionalidade às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a
mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; em última análise,
destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da
declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela existência de
inconstitucionalidade”.

Nos demais países, a exemplo da Itália, Alemanha,
Espanha, a regra em vigor é a que considera nula ex tunc a norma inconstitucional. Entretanto, tais países, já vêm
admitindo, tal como o Brasil, a flexibilização dessa regra. Tem contribuído
para isso, a adoção de outras técnicas para modular os efeitos temporais das
decisões proferidas no controle de constitucionalidade, tais como declaração de
inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade[3]; apelo
ao legislador[4];
interpretação conforme à Constituição, dentre outras.

Registre-se, inclusive, que o berço da doutrina da nulidade – Estados
Unidos – já admitiu o abrandamento dos efeitos retroativos. Nesse sentido,
expressou-se Clève (2001, nota de rodapé das páginas 243-244):

“(…)Sempre se entendeu
entre nós, de conformidade com a lição dos constitucionalistas
norte-americanos, que toda lei, adversa à Constituição, é absolutamente nula;
não simplesmente anulável. É preciso lembrar, entretanto, que a partir de 1965,
com a decisão prolatada no caso Linkletter, a Suprema Corte americana
passou a admitir, em certas situações, a declaração de inconstitucionalidade
com efeitos meramente prospectivos (sem a produção de efeitos retroativos, portanto).
A respeito, ver Eduardo García de Enterría, Justicia constitucional, la
doctrina prospectiva em la declaración de ineficácia de las leyes
inconstitucionales, RDP 92:06”.

Como visto, a tendência contemporânea está em
relativizar os efeitos retroativos da lei declarada inconstitucional.

4. Princípio da proporcionalidade e a relativização
dos efeitos retroativos na jurisprudência nacional

Não se discute que o princípio da nulidade das leis
inconstitucionais tem hierarquia constitucional. Entretanto, também, deve ser
ressaltado que não há princípios absolutos, todos tem a mesma hierarquia, o que
faz incorreto o tratamento do princípio da nulidade como um dogma
inquestionável, que não pode ser objeto de ponderação com outros princípios.

Sendo assim, o princípio da nulidade também deve
ser submetido ao juízo de ponderação, quando no caso concreto, entrar em
conflito com outro princípio da mesma hierarquia, a fim de ser estabelecido
pelo Tribunal qual dos princípios deverá prevalecer na questão sub judice.

O eminente Sarmento (1998, p. 27-40), em seu artigo
“Eficácia temporal do controle de constitucionalidade (o princípio da
proporcionalidade e a ponderação de interesses) das leis”, dá-nos uma
verdadeira aula sobre a colisão de princípios constitucionais e o juízo de
ponderação de interesses, verbis:

“Beira
o truísmo a afirmação de que, no exercício da jurisdição constitucional, não
pode o Judiciário desconsiderar os efeitos concretos que suas decisões
produzem. Como poder político, o Judiciário não pode furtar-se à
responsabilidade sobre as conseqüências dos seus julgados, invocando o mote
ultrapassado do fiat justitia et pereat mundus.

Com
isso, não se pretende advogar que seja lícito ao juiz decidir conflitos
constitucionais através de valorações políticas discricionárias,
desconsiderando o método jurídico, mas sim que o método jurídico, sobretudo no
campo constitucional, envolve também, necessariamente, a consideração acerca
dos resultados práticos das decisões.

Com
efeito, é muito distante da realidade a crença de que o labor de interpretação
e aplicação da Constituição se esgote num simples processo lógico-subsuntivo. A
natureza aberta e principiológica das normas constitucionais, e o seu acentuado
conteúdo político, reclamam, no mais das vezes, valorações por parte do
intérprete, onde inevitavelmente considerações de cunho metajurídico acabam
aflorando.

Esta
complexidade da hermenêutica constitucional se acentua nos países que, como o
Brasil, adotaram constituições compromissória. Estas são cartas nas quais o
processo constituinte não se desenvolveu sob o signo do consenso, traduzindo,
ao revés, um compromisso entre forças políticas díspares. Assim, tais
constituições acabam abrigando normas e valores derivados de matrizes
ideológicas antagônicas, o que tende a gerar a eclosão de tensões e impasses na
solução de controvérsias concretas.

Ocorre
que, no exercício do controle de constitucionalidade, surge muitas vezes a
necessidade de proteger interesses contrapostos, ambos tutelados
constitucionalmente. Pode ser que determinada norma infraconstitucional viole
algum ditame da Lei Maior, mas que a sua supressão retroativa do ordenamento
ocasione, da mesma forma, a lesão a outro bem ou valor salvaguardado
constitucionalmente.(…)

Em
casos desta espécie, parece-nos que deve ser concedida certa ‘margem de
manobra’ ao Judiciário, para que possa buscar, e vista das peculiaridades da
situação concreta, uma solução que acomode, na medida do possível, os
interesses em disputa, sem ter de sacrificar integralmente algum deles em
detrimento do outro. Trata-se da aplicação do método da ponderação de
interesses, que exige, por parte do operador do direito, um labor de
otimização, de modo que a compreensão a cada interesse constitucional em jogo
seja a mínima necessária para a salvaguarda do interesse antagônico.

Sob
este prisma, entendemos que o fundamento para o Judiciário proceder à
ponderação de interesses no controle de constitucionalidade radica no princípio
da proporcionalidade, cuja vigência em nosso ordenamento constitucional a
jurisprudência mais atual vem reconhecendo.

Tal
princípio desempenha um papel extremamente relevante no controle de
constitucionalidade dos atos do poder público, na medida em que ele permite de
certa forma a penetração no mérito do ato normativo, para aferição da sua
razoabilidade e racionalidade, através da verificação da relação
custo-benefício da norma jurídica, e da análise da adequação entre o seu
conteúdo e a finalidade por ela perseguida.

Conforme
a doutrina mais autorizada, o princípio da proporcionalidade é passível de
divisão em três subprincípios: (a) da adequação, que exige que as medidas
adotadas tenham aptidão para conduzir aos resultados almejados pelo legislador;
b) da necessidade, que impõe ao legislador que, entre vários meios aptos ao
atingimento de determinados fins, opte sempre pelo menos gravoso; c) da
proporcionalidade em sentido estrito, que preconiza a ponderação entre os
efeitos positivos da norma e os ônus que ela acarreta aos seus destinatários. (…)

Assim,
entendemos que o princípio da proporcionalidade autoriza uma restrição à
eficácia ex nunc da decisão proferida no controle de
inconstitucionalidade, sempre que esta restrição: (a) mostrar-se apta a
garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos
gravosa para proteger o referido interesse, e (c) o benefício logrado com a
restrição à eficácia retroativa da decisão compensar o grau de sacrifício
imposto ao interesse que seria integralmente prestigiado, caso a decisão
surtisse seus efeitos naturais.(…)

É
evidente que a solução ideal viria se o constituinte derivado disciplinasse a
matéria, introduzindo na Lei Fundamental uma autorização expressa para o
Judiciário temperar, em casos excepcionais, o princípio da nulidade ab
initio
da lei inconstitucional, tal como ocorre em Portugal. Isso
evitaria ociosas polêmicas jurisprudenciais, e daria maior segurança à
sociedade. Porém, a inexistência de norma expressa neste sentido não inibe o
juiz de calibrar os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, sempre que tal
medida se revele a melhor solução para o equacionamento da tensão entre
interesses constitucionais contrapostos”.

No Brasil, não obstante o Supremo Tribunal Federal
tenha permanecido na linha de entendimento tradicionalmente norte-americana,
mesmo antes da edição da Lei nº 9.882/99, a Corte tem admitido alguns
temperamentos, principalmente, reconhecendo a aplicação dos seguintes
princípios: a) presunção de constitucionalidade das leis; b) coisa julgada; c)
enriquecimento sem causa; d) irrepetibilidade de verba alimentar; e) teoria da
aparência ou do funcionário de fato para proteção de terceiros de boa-fé[5]; f)
princípio da segurança jurídica, dentre outros.

 O princípio
da segurança jurídica é derivado da adoção pelo Brasil do Estado de Direito, no
qual se protege o indivíduo de mudanças inesperadas em posições consolidadas no
tempo, dando preferência à edição de leis claras e tendencialmente estáveis
para aumentar a confiança dos cidadãos na força normativa do ordenamento
positivado e favorecer a calculabilidade e a previsibilidade dos efeitos dos
atos realizados, prevenindo-se situações de perplexidade.

Em relação ao princípio da coisa julgada, Mendes
(1998, p. 44), ilustrou com brilhantismo que o sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro pareceu contemplar uma ressalva expressa à
rigorosa doutrina da retroatividade (CF, art. 153, § 3º), a saber, a coisa
julgada, ressaltando que ainda que se não possa cogitar de direito adquirido ou
de ato jurídico perfeito, fundado em lei inconstitucional, afigura-se evidente
que a nulidade ex tunc não afeta a
norma concreta contida na sentença ou acórdão.

Nesse sentido, já decidiu o STF: “A suspensão da
vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos
praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da
decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação
rescisória”[6].

Na esfera penal, tal limitação não se aplica em
desfavor do réu, uma vez que a lei não assinala nenhum prazo fatal para a
propositura da revisão criminal.

Merece destaque, ainda, que no direito brasileiro,
a presunção de constitucionalidade das leis é admitida sem contestação, de
forma que mesmo que uma lei seja aparentemente inconstitucional, antes de ser
declarada como tal, goza de presunção de validade, sendo fato que adentra no
ordenamento jurídico, produzindo efeitos jurídicos e devendo ser obedecida por
todos, até a posterior declaração de sua inconstitucionalidade pelo Poder
Judiciário, o que pode ocorrer apenas muitos anos depois, quando inúmeras
situações já foram consolidadas sob a vigência da lei tida por inconstitucional
ou nem ocorrer.

Nesse contexto, importante, portanto, a lembrança
de que o direito não é um fim em si mesmo, mas um meio para garantia da vida
harmônica da sociedade. E para não se distanciar dela, os juízes apesar de
estarem vinculados às normas jurídicas, dentro de certos limites, possuem um
certo espaço para buscar a solução mais justa para o caso concreto,
concretizando dessa forma, o postulado de que o direito possui uma visão
tríplice, composto por fato, valor e norma, tal como expôs brilhantemente
Miguel Reale Júnior em sua Teoria Tridimensional do Direito.

Essa valoração, inclusive, dada à abertura da
Constituição, o seu caráter eminentemente político e a abstração de suas
normas, faz com que sua interpretação não se esgote em um simples silogismo,
onde a conclusão é deduzida a partir de um raciocínio matemático e lógico,
ainda mais em constituições compromissórias, como é o caso da brasileira, fato
que a leva a possuir normas potencialmente conflitantes, que podem
entrechocar-se[7]. Aqui é
que entra o papel do Poder Judiciário que, diante de um caso concreto submetido
a exame, deve solucionar o conflito, utilizando de técnicas de ponderação, pois
de um lado, encontrará o dogma da nulidade que o impulsionará a declarar a
inconstitucionalidade ab initio da
norma e, do outro lado, deparar-se-á com princípios de presunção de
constitucionalidade, boa-fé, irrepetibilidade de verba alimentar, que clamarão
pelo aplicação do efeito prospectivo ou ex
nunc
.

Deve-se ter cuidado é para que, sob o manto de uma
disfarçável ponderação, o Poder Judiciário não invada a competência do Poder
Legislativo, infringindo o princípio da separação dos poderes. Sobre a matéria,
escreveu Sarmento (2002, p. 113-114):

“A
ponderação de interesses pode ser realizada pelo Poder Judiciário basicamente
em duas hipóteses: (a) quando inexistir regra legislativa específica resolvendo
determinado conflito entre princípios constitucionais surgido em um caso
concreto, ou (b) quando a regra legislativa em questão tiver a sua
constitucionalidade questionada, pela via incidental ou principal.

No
primeiro caso, o Poder Judiciário terá, forçosamente, de proceder à ponderação,
uma vez que não poderá furtar-se ao seu dever de resolver a lide, e a colisão
entre princípios constitucionais não tem como ser equacionada senão através do
emprego do método da ponderação de interesses. No segundo caso, porém, a
questão torna-se um tanto mais delicada.

De
fato, a necessidade de ponderação de interesses na aplicação das normas
constitucionais exacerba o risco de invasão, pelo Poder Judiciário, do campo de
discricionariedade inerente à atividade legislativa. Através da ponderação, os
juízes, que não são eleitos, podem tentar impor as suas opções políticas e
ideológicas em detrimento daquelas realizadas pelos representantes do povo.

Porém,
é evidente que, em uma democracia, a escolha dos valores e interesses
prevalecentes em cada caso deve, a princípio, ser da responsabilidade de
autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular. Por isso, o Judiciário
tem, em linha geral, de acatar as ponderações de interesses realizadas pelo
legislador, só as desconsiderando ou invalidando quanto elas se revelarem
manifestamente desarrazoadas ou quanto contrariarem a pauta axiológica
subjacente ao texto constitucional”.

Dessa forma, o Poder Judiciário tem que agir com
bom senso e cautela quando se deparar com uma falta de precisão das normas
constitucionais. Registre-se que além da coisa julgada e do princípio da
segurança jurídica, outro exemplo de temperamento deve ser invocado no caso de
aumento concedido a servidores públicos, com base em lei inconstitucional. Em
decisão proferida em 1994, relatada pelo Ministro Francisco Rezek, o STF
entendeu que “retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no
período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional – mas
tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade”[8].

Aplicando a teoria do funcionário de fato, o
Supremo não invalidou os atos praticados pelo funcionário investido, por força
de lei inconstitucional, em cargo público. Inexistido prejuízo, protegeu a
aparência de legalidade dos atos em favor da boa-fé de terceiros[9].

Assim, o STF, embora tenha se mantido fiel ao dogma
da nulidade ab initio da lei
inconstitucional, em casos excepcionais, já vem ponderando os interesses
constitucionais em conflito, contornando a rigidez do princípio da nulidade,
aproximando suas decisões à dinâmica dos fatos.

5.
Análise da adoção pela lei nº 9.882/99 da doutrina prospectiva

O art. 11 da Lei n. 9.882/99, ao autorizar no
processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, que o Supremo
Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, poderá restringir
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha
eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a
ser fixado, previu a adoção expressa no direito constitucional brasileiro dos
efeitos prospectivos da decisão de inconstitucionalidade das leis, permitindo
que, em casos excepcionais, referida decisão tenha eficácia ex nunc ou pro futuro.

Ressalte-se
que esta manipulação dos efeitos da decisão proferida em controle de constitucionalidade,
como já visto acima, surgiu com o fim de mitigar os choques de princípios: uns
determinando a ineficácia ex tunc do
ato, outros determinando a preservação da eficácia dos mesmos atos devido à
aplicação de princípios como o da segurança jurídica, da irrepetibilidade dos
alimentos, do não-enriquecimento sem causa, da teoria da aparência ou do
funcionário de fato, da teoria da presunção de boa-fé dos atos administrativos,
entre outros.

Entendeu,
portanto, a Comissão que elaborou a Lei 9.882/99, que ao lado da ortodoxa
declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo
Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois
terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade,
proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro,
especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre
inadequada (v.g.: choque de princípios) ou nas hipóteses em que a lacuna
resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma
situação ainda mais afastada da vontade constitucional.

Sem embargo
de todas as opiniões favoráveis à adoção do referido dispositivo, respaldadas
inclusive na falta de previsão na Constituição Federal de 1988 da eficácia ex
tunc às decisões proferidas no
controle jurisdicional de constitucionalidade de leis, não faltam doutrinadores
que defendam a inconstitucionalidade ou o possível casuísmo da previsão da
manipulação dos efeitos da decisão. Dentre eles, merece destaque o entendimento
do constitucionalista Ferreira Filho (1996, p. 14):

“Seria
preciso não conhecer o Brasil para supor motivada por questões de alta
indagação científica essa proposta. Conhecendo-o, fácil é descobrir o que têm
em mente os proponentes dessa ‘nulidade’ ou ‘anulação’ diferida. É sempre o
ângulo governamental. Com base nessa regra, toda vez que um tributo correr o
risco de ser julgado inconstitucional – e essas coisas se sabem com
antecedência em Brasília – invocando o pesado ônus da devolução do já recebido,
o Poder Público pleiteará que a eficácia da decisão seja a partir do trânsito em julgado. Assim, não
terá de devolver o já recebido(…)”.

Apesar disso, em que pesem as distorções que possam
vir a ocorrer na aplicação dos efeitos prospectivos à decisão de
inconstitucionalidade das leis, não se pode elevar o efeito ex tunc a patamar de regra absoluta,
pois na prática, diante da multiplicidade do número de normas jurídicas
editadas casuisticamente pelo legislador associado à imprescritibilidade do
vício de ilegitimidade constitucional e aos princípios da segurança jurídica e
da presunção de constitucionalidade das leis, o Supremo Tribunal Federal, ao
tentar aplicar indiscriminadamente o princípio da nulidade ab initio, pode correr o risco de acabar, ele mesmo, indo contra os
desejos da Constituição, provocando, nos dizeres de CLÈVE (2000, p. 251)
“tremendas injustiças, lesionando outros interesses e valores também tuteladas
pela ordem constitucional”.

Nesse mesmo sentido, já se manifestou Greco Filho
(1991, p. 178) ao ponderar sobre a aplicação do princípio da razoabilidade no
Processo Penal:

“O texto constitucional parece, contudo, jamais
admitir qualquer prova cuja obtenção tenha sido ilícita. Entendo, porém, que a
regra não seja absoluta, porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma
vez que tem de conviver com outras regras ou princípios também constitucionais.
Assim, continuará a ser necessário o confronto ou peso entre os bens jurídicos,
desde que constitucionalmente garantidos, a fim de se admitir, ou não, a prova
obtida por meio ilícito”.

Acrescente-se, ainda, que nos moldes como está
redigido o art. 11 da Lei nº 9.882/99, apenas excepcionalmente é admitido ao
STF deixar de aplicar o efeito ex tunc
às decisões que proferirem a inconstitucionalidade das leis. Para tanto, seria
necessário a demonstração de ocorrência de três pressupostos, a saber: razões
de segurança jurídica, de excepcional interesse social e, por fim, decisão por
maioria de dois terços dos membros do STF.

6. Conclusão

Desse
modo, o artigo 11 da Lei n.° 9.882/99 deve ser interpretado teleologicamente no
sentido de se permitir a garantia do fiel cumprimento do texto constitucional,
na medida em que, conferindo-se ao órgão julgador maior flexibilidade na
determinação dos efeitos às decisões proferidas em controle concentrado de
constitucionalidade, torna-se possível a declaração de inconstitucionalidade de
norma com efeitos ex nunc ou pro futuro, sem que tal declaração cause
danos irreparáveis aos jurisdicionados e ao País.

Assim,
não vejo sinais de inconstitucionalidade material nem formal na delimitação dos
efeitos da decisão de mérito na argüição de descumprimento de preceito
fundamental com o objetivo de se evitar o que muitas vezes ocorre nas demais
espécies de controle concentrado, em que se deixa de declarar a
inconstitucionalidade de norma inconstitucional para se evitar um mal maior.

Registre-se,
por fim, que para se adequar melhor aos anseios da sociedade, seria preferível
que a margem de liberdade conferida ao Pretório Excelso, para deliberar sobre a
retroatividade ou não dos efeitos de sua decisão, não fosse tão ampla, pois da
forma em que está redigido, se não for aplicado com cautelas e bom senso, pode
inviabilizar a possibilidade de previsão, pelos interessados, dos efeitos a
serem aplicados, o que prejudicaria a certeza do direito e a estabilidade das
relações jurídicas, infringindo o princípio da segurança jurídica.

Registre-se,
ainda, que se conformaria muito mais com o princípio constitucional o estabelecimento
de parâmetros objetivos para a adoção da doutrina prospectiva no Direito
brasileiro, pois, não se pode adiar, por tempo ilimitado, a retirada do
ordenamento jurídico de uma norma já declarada inconstitucional.

 

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Notas:

[1] RTJ 82:791, Adin 1434-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU
22.11.1996. No AGR 195.513 (Rel. Min. Carlos Veloso, DJU 06.02.1998), o
Supremo Tribunal Federal reafirmou sua posição: a medida liminar, nas ações
diretas de inconstitucionalidade, tem, via de regra, efeito ex nunc. A decisão final de mérito,
entretanto, tem efeito ex tunc.

[2] Rp. 980, Relator: Ministro
Moreira Alves, RTJ n. 96, p. 496  (508).

[3] Segundo as lições de Gilmar
Ferreira Mendes, Jurisdição
Constitucional
, p. 204, esta modalidade é utilizada sobretudo no caso de
normas que atribuem benefícios incompatíveis com o princípio da isonomia, de
omissões inconstitucionais parciais ou quando a supressão da norma
inconstitucional geraria uma situação de caos normativo. Consiste em reconhecer
a ilegitimidade constitucional da norma, mas deixar de declara-la nula, gerando
para o legislador o dever jurídico de empreender as medidas necessárias para
suprimir o estado de inconstitucionalidade.

[4] Nesse caso, o Tribunal reconhece
a constitucionalidade da norma, mas alerta para o fato de que, em razão de
mudanças das relações fáticas ou jurídicas, a mesma se encontra em trânsito
para a inconstitucionalidade. Cf. id. ibidem, p. 229-230.

[5] RTJ 100/1.086 e RTJ 71/570.

[6] RMS 17.076, Rel. Min. Amaral
Santos, RTJ 55/744.

[7] A propósito, merece-se destacar que a possibilidade de
conflito de normas não desmerece o caráter sistemático da Constituição, pois a
sua unidade não significa a inexistência de tensões, mas sim a possibilidade de
resolução destas tensões a partir de critérios e instrumentos inferidos da
própria Constituição.

[8] RE 122.202, Rel. Min. Francisco
Rezek, DJ de 8-04-1994.

[9]  Conferir RTJ 100:1.086. Consultar
também RE 122.202, Rel. Min. Francisco Rezek, j. 10.08.1993.


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Braulio Vitor da Silva Fernandes


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