Toda a Lei pode ter efeitos colaterais, como quase todos os remédios, inclusive, as próprias leis são chamadas de “remédios jurídicos”. Esses efeitos pelo menos em parte, poderiam ser pensados pelo legislador, já que a dinâmica dos fatos a que a lei pretende regrar sempre esta a sua frente, é impossível prever todos os efeitos colaterais.
A conciliação prévia obriga o trabalhador a se dirigir a uma “comissão” à qual a empresa não esta obrigada a comparecer, inexistindo sanção contra a empresa ausente, tão somente é lavrado um termo. Obriga a um, mas não obriga ao outro!
Desde Aristóteles, entende-se que tratar de forma igual os desiguais é injustiça. A CLT e praticamente todo o ordenamento jurídico, mais recentemente o código de defesa do consumidor, bem como as inúmeras decisões do Poder Judiciário contêm o princípio de que a lei deve tratar as partes desiguais, desigualmente, só que, desta vez, contrariando toda a tradição do Direito Brasileiro, a “conciliação prévia” favorece o empregador e penaliza o empregado.
Obriga-se o empregado a comparecer na conciliação se quiser pleitear o que entende devido, na Justiça do Trabalho, constituindo um entrave que dificulta o livre acesso ao Poder Judiciário, embora a lei não impeça o direito de ação que fica contudo, condicionado a uma suposta “tentativa de conciliação” que na pratica, é um obstáculo a mais para impedí-lo de acessar a Justiça.
A lei é paradoxal, porque se há intenção em conciliar, a empresa faria a conciliação logo na 1ª audiência, em Juízo, e não praticaria todos os atos procrastinatórios que retardam a definitiva entrega da prestação jurisdicional, utilizando-se indiscriminadamente de todos os recursos disponíveis para retardar o andamento da ação e é justamente por isso também, que a Justiça do Trabalho se encontra com volume tão grande de ações em andamento, que deliberadamente não saem do sistema, por iniciativa dos empregadores e seus defensores. A morosidade é provocada justamente por aqueles que agora, defendem a conciliação prévia.
Quem pretende fazer acordo, efetivamente faz na 1ª audiência e não se pode creditar a uma “conciliação prévia”, que só obriga uma das partes a comparecer, uma mudança de mentalidade, como se essa imposição, a comissão de conciliação, fosse mudar o destino do conflito e estimular a sua composição. Na verdade constitui um engôdo.
A Justiça do Trabalho não estaria tão sobrecarregada de ações se houvesse prévia intenção do empregador em se compôr. De fato não há intenção. E, se houvesse intenção e vontade de prevenir o conflito, a empresa cumpriria a legislação, as ações trabalhistas seriam julgadas improcedentes, desestimulando o conflito pela prevenção. E por que não cumprem a legislação? Por diversas razões, dentre elas, porque nas mais das vezes, sai mais barato (econômico) deixar de pagar o devido e aguardar uma ação trabalhista, já que nem todos os empregados reclamam o que entende devido.
Prevenir consiste em cumprir o regramento jurídico, pagando o que é devido e não criar leis que perpetuem o ciclo vicioso de fraude as leis, hipocrisia generalizada: fraudem e deixem fraudar. A Lei 9958/2000 é farisáica no sentido de normatizar uma hipocrisia, além disso, o artigo 625-D é INCONSTITUCIONAL.
Mais um empecilho para o empregado que deve se deslocar ao órgão “conciliatório” por pelo menos duas vezes, uma para registrar seu requerimento e outra para esperar a empresa que pode não comparecer, e receber um termo que daí sim, lhe permite procurar o Judiciário. O empregado perde dois dias em que poderia estar trabalhando e dispende às suas expensas o transporte inutilmente.
Por outro lado, há empresas que têm interesse em comparecer à comissão de conciliação que se transforma em órgão homologatório, substituindo o sindicato e as DRT’s e incentivando conflito, de iniciativa do empregador, porque é mais “econômico”, “lucrativo”, e a “mão de obra sai mais barata”. Basta dispensar o empregado e resolver a “pendência” em uma conciliação prévia, encerrando o contrato definitivamente e impedindo-o de reclamar o que REALMENTE é devido na JUSTIÇA DO TRABALHO, não havendo ressalvas no termo de conciliação.
Sem a conciliação prévia, a rescisão de contrato com mais de um ano deveria ser homologada, e o empregador que desrespeitava a legislação, sempre corria o risco de ser demandado pelo seu ex-empregado. Agora, a conciliação prévia, se constitui em um mecanismo de GARANTIA DE PROTEÇÃO AO EMPREGADOR, inexistindo ressalvas não poderá reclamar diferenças e se aceito um acordo vil, será executado tão somente por esse valor. Para que servirá a multa do artigo 477 da CLT?. Acaba sendo mais um “jeitinho brasileiro” “de levar vantagem em tudo”.
Por isso essa lei é festejada pelos empresários e seus teóricos defensores. Grandes grupos econômicos aplaudem a criação dessa lei e procuram contribuir para o seu sucesso, já que constitue um preâmbulo para “flexibilização” que pretende afastar qualquer intervenção do Estado nas relações entre empregador e empregado. A intervenção já é mínima porque não há fiscalização adequada. A única instituição investida de poder e independência para interfirir na proteção dos direitos trabalhistas ainda é a Justiça do Trabalho.
A flexibilização pretende excluir as normas jurídicas de ordem pública da relação de emprego, justamente as que tem por escôpo a proteção do trabalhador, em flagrante desvantagem em relação ao empregador; criando-se assim um “laisses-faire tropical”, moderno, onde as normas de proteção contra a fraude ficariam ab-rogadas, prevalecendo as regras que as próprias partes estabelecerem entre em si. O que seria ideal, se as partes não fossem tão diferentes, separadas por um abismo sócio-econômico, tão desiguais. E é por conhecer a natureza humana que Lacordaire formulou não só uma frase de efeito, mas um pensamento que sempre merece reflexão: “Entre o forte e o fraco a liberdade oprime; é a lei que salva.”
Por isso, o legislador fixou o prazo prescricional para ajuizamento da demanda trabalhista em DOIS ANOS. Prazo razoável que permite ao empregado obter nova colocação no mercado e não sofrer represálias por ter ajuizado uma reclamação trabalhista!
Por que precisamos de leis trabalhistas no Brasil? Porque como muito bem expressou Ihering: “o direito deve procurar disciplinar o egoísmo humano”“.
Por que precisamos do Poder Judiciário? Porque o uso arbitrário das próprias razões e a justiça pelas próprias mãos constituem a negação da existência humana, um retrocesso à barbarie.
Toda a lei que procura atender aos fins sociais e as exigências do bem comum deveria resultar de uma reflexão histórica, sociológica, política e de todas as ciências afins porque não se pode prescindir na sua elaboração da interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade.
A lei que instituiu a comissão prévia é de “gabinete”, um instrumento técnico com o cego desejo de dificultar o acesso ao Poder Judiciário, deixando inalteradas as possibilidades de fraude à legislação. O Direito é uma ciência humana e como tal, sujeita às injunções ideológicas criadas para satisfazer os interesses dos grupos dominantes que detêm o poder político e economico, embora possa se fazer valer de princípios técnicos e lógicos que lhe dá aparência de legitimidade.
A relação entre capital e trabalho no Brasil, historicamente sempre foi marcada por perversidades e atrocidades, ainda hoje, enquanto o Ministério Público Brasileiro combate o trabalho escravo e de crianças menores, tal como nos primórdios da revolução industrial, o Governo Federal edita leis que não atacam e combatem as causas das fraudes mas dificultam o acesso a Justiça. A flexibilização nada mais é do que a pretensão de diminuir os custos da mão de obra e favorecer a concentração do capital com lucros maiores. Enquanto todos os índices sociais apontam exarcebada concentração de riqueza o governo federal acena a pretensão de flexibilizar, perpetuando a ordem social injusta.
Ora, é elementar que não se acaba com a doença dificultando ou impedindo o acesso do doente aos hospitais. Não se diminui o número de conflitos trabalhistas impedindo-os que cheguem ao Judiciário!
O desiderato da Lei 9958/2000, “ultima ratio”, é proibir que as lesões de direito sofridas pelos trabalhadores cheguem ao Judiciário porque já se encontra abarrotado de ações, diminuindo os custos da empresa. Dessa forma, constitui mais uma proteção ao empregador, contra o empregado, que aceita a proposta conciliatória por encontrar-se em flagrante desvantagem econômica, privando-o depois da oportunidade de REPARAR O DANO A QUE segundo a lei, voluntariamente aceitou.
Não se pode privar os trablhadores do direito de procurar livremente a Justiça do Trabalho, obrigando-os a se sujeitarem a uma conciliação, feita em condições DESFAVORÁVEIS que, se aceita, IMPEDE-OS DEFINITIVAMENTE DE AJUIZAR AÇÃO! Alijando o princípio da irrenunciabilidade de direitos que é pedra angular do Direito do Trabalho. Tudo em nome da solução do problema chamado: “passivo trabalhista” que consideram os mentores intelectuais da lei aumentar o “custo Brasil”.
As condições são desfavoráveis porque no momento exato em que é demitido, o empregado já sofre o amedontrador espectro do desemprego, bem como é notória a volatilidade das empresas que vão à falência ou “desaparecem” deixando-os privados de seus haveres. A necessidade de sobrevivência é ameaçada, principalmente numa sociedade de consumo que fomenta o crédito, sociedade da ditadura do crediário, que quase só permite ao trabalhador a aquisição de bens de consumo através do parcelamento do preço; sociedade do consórcio em que o preço do bem triplica em razão dos custos de admistração, já que o preço só pode ser pago parceladamente; o trabalhador nas mais das vezes esta preso a um crediário, paga aluguel, tem filhos, a presença social do Estado é pífia na saúde, educação, lazer…. A Caixa Econômica Federal vez por outra divulga que milhares de empresas não recolhem o FGTS.
Ora, é imoral a idéia de que o trabalhador médio brasileiro no momento de sua dispensa tem liberdade de decisão, higidez, como se nesse momento atroz de sua vida, tivesse independência e total autonomia de vontade!
No momento da dispensa aceita as imposições do empregador, não porque as entenda corretas ou equilibradas mas porque não tem opção de escolha. O trabalhor só dispõe da sua força de trabalho, seja braçal ou intelectual e o rompimento do contrato de trabalho lhe dá mais insegurança, faltam perspectivas; fragilizado, capitula facilmente, renunciando ao todo (de Direito) a favor da parte, que de imediato, lhe é imprescindível para a sobrevivência.
Acordo, nas mais das vezes, é a capitulação da parte mais fraca, em desvantagem que, sem opções, premida pela necessidade de sobreivivência e ciente da morosidade da Justiça, abre mão da totalidade de seu direito e aceita a parte que lhe é proposta.
Essa lei estimula a luta de classes na medida em que fortalece a cultura do conflito que não existiria se houvesse o hábito de cumprimento da lei, se o Judiciário fosse melhor aparelhado para punir a fraude com medidas que pedagogicamente desencorajassem a pratica de atos ilícitos. Essa lei é um estímulo à fraude.
Deveriam entender seus propositores que o “volume exagerado de ações trabalhista” que chega ao Judiciário decorre e é precedido pela “indústria da fraude às leis”, “da cultura da esperteza”, do “egoísmo humano”, tal como a discussão em saber quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha? Quem nasceu primeiro a fraude à lei ou a reclamação trabalhista?
A conciliação prévia serviria para a prevenção de conflitos? Já foi dito anonimamente que “As mais torpes injustiças podem ser cometidas sem que nenhuma lei seja violada.” A criatividade para fraudar as leis é muito fértil e tem uma relação diretamente proporcional com a impunidade.
A lei da conciliação prévia não impede a fraude mas dificulta o acesso a Justiça, justamente o lugar onde constitucionalmente a fraude deve ser provada para ser reparada a lesão. De uma certa ótica é a lei do menor esforço, porque se houvesse uma política de enfrentamento da fraude, consequentemente o Judiciário seria menos requisitado. Da mesma forma que não se consegue acabar defintivamente com a doença, não se acaba com as fraudes, mas se controla o seu aparecimento com medidas que as impeçam de visejar.
Essa Lei é iníqua, tem por escôpo resolver o problema de interesse exclusivo do Judiciário: o excesso de reclamações trabalhistas (o passivo trabalhista) e não o problema do trabalhador: vítima do descumprimento contumaz das leis trabalhistas, da cultura da impunidade que paulatinamente vem sendo demolida com o afastamento de um Presidente da República, a cassação de deputados e um senador.
A fraude e a corrupção são chagas que podem acomenter toda a sociedade, todas as instituições, seja no âmbito público ou privado e são necessários mecanismos de controle eficazes que as combatam e pedagogicamente reverter a cultura do “certo é levar vantagem tudo” pela cultura de respeito aos semelhantes. Porque como muito bem pensou o historiador inglês do século XIX, Lord Acton: “todo o poder corrompe e todo poder absoluto, corrompe absolutamente”. Todo poder precisa de limites claros e definidos, inclusive o poder patronal que precisa de fiscalização constante. O legislador nacional sempre soube disso e criou mecanismos de controle na CLT e em todo o ordenamento jurídico; a lei da conciliação prévia não, é uma exceção, é uma aberração jurídica procura mitigar a jurisdição.
Essa lei foi concebida com o propósito de conter o volume crescente de reclamações trabalhistas, é uma réplica aperfeiçoada do Enunciado 330 criado pelo TST a mais de 5 anos atrás que foi um desastre, pela imprecisão e insegurança, trouxe mais transtornos do que soluções, em debates inúteis nos autos das reclamações trabalhistas, remédio inadequado que foi na prática sistematicamente repelido por todo o Judiciário.
Preoculpam-se tanto com o “passivo trabalhista” que é o efeito; a causa, sequer é mencionada. O acirramento dos conflitos trabalhistas decorre da falta de cumprimento das LEIS que resulta da mentalidade coletiva de sempre “levar vantagem” e, inexistindo um sistema repressor das infrações legais e ausência de fiscalização, a impunidade reforça a sensação geral de que vale a pena “levar a melhor”, costurando a “cultura da esperteza”.
O Poder Judiciário não estaria abarrotado de ações se a legislação trabalhista fosse cumprida por um número maior de empresas, se existissem medidas profilácticas que desencorajassem o descumprimento da lei. Se a impunidade fosse combatida com sanção exemplar e não ficasse mais “barato” transgredir à cumprir a legislação. O Ministério do Trabalho e o governo em geral jamais propuseram a “tolerância zero” contra a fraude trabalhista! A presença de fiscalização é insignificante, fomentando a fraude as leis.
O Poder Judiciário não tem um fim em si mesmo, existe para atender uma necessidade humana. A lei deve atender a uma necessidade universal, coletiva e é inadmissível que seja criada exclusivamente para satisfazer interesses corporativos ou de uma instituição assoberbada de ações.
A lei da conciliação prévia joga a “sujeira” debaixo do tapete, transferindo o papel da Justiça do Trabalho, artigo 114 da Constituição à uma conciliação que tem por atribuição “tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho”. A lei é conivente com as mazelas culturais que vão perpetuar a condição de subdesenvolvimento do Brasil.
Ora “tentar”? Essas tentativas já são feitas todos os dias em audiência, na presença de juiz togado e experiente e se a empresa não tem o objetivo de conciliar, não será a conciliação prévia o instrumento mágico que persuadirá a empresa a se conciliar. A cultura da conciliação pressupõe a existência anterior da cultura do mínimo respeito às leis.
Somente o Poder Judiciário dispõe de jurisdição e o Brasil não tem nenhuma tradição em conciliar conflitos fora dele; sempre foram sufocados com violência. Nenhuma experiência histórica aponta por esse caminho, pelo contrário, os sindicatos livres foram sufocados e combatidos por governos ditadoriais que estimularam o “peleguismo”, sindicatos atrelados aos interesses do governo, o sidicato nasce como um braço do governo e dos empresários, essa é herança sindical brasileira, salvo raras exceções.
Historicamente, como os conflitos sociais brasileiros eram resolvidos? Havia o “pelourinho” e depois o “pau-de-arara” e tantas outras atrocidades ou a célebre concepção de Washington Luis que questões sociais eram “caso de polícia”? Ainda hoje, qualquer manifestação contra os interesses das classes dominantes é tida como manifestação contra o Brasil, como se essa classe sozinha, representasse e fosse o Brasil!
A Justiça do Trabalho é a única instituição que já provou ser capaz de desempenhar esse papel e que apesar das dificuldades o desempenhou com denôdo nos últimos 60 anos. Justiça do povo, que comprovadamente, se houver interesse e empenho de seus agentes, funciona satisfatoriamente atendendo sua finalidade constitucional e uma necessidade humana.
Em momento algum houve preocupação em se criar comissões para EVITAR E COMBATER AS CAUSAS DOS CONFLITOS INDIVIDUAIS DO TRABALHO em sua gênese, o que se faz incentivando o cumprimento das leis, fiscalizando o seu cumprimento através de mecanismos que dêm eficácia à lei para produzir o resultado esperado. Essa lei procura reprimir o ajuizamento da ação sem qualquer outra medida acessória que REPRIMA AS CAUSAS que geram essas ações trabalhistas. Essa lei é flagrantemente inconstitucional, contraria princípios elementares como o da isonomia, da ampla defesa com os meios técnicos a ela inerentes, fere o princípio do juiz natural, institui tribunal de exceção.
Essa lei então, tolera a fraude, mas não tolera o direito de ação que procura reparar a fraude, já que é inconveniente ao Judidiciário ter muitas ações. Seus criadores não têm em mente e jamais pretenderam a implantação de políticas públicas que ataquem os mecanismos perversos que geram o conflito, ou o Estado-gendarme ainda não foi substituido pelo Estado do Bem-Estar Social (“Welfare State”)?.
Nem os ditadores que governaram o Brasil tiveram o desplante de criar uma lei tão onerosa ao empregado, pois se cabe a comissão “tentar conciliar os conflitos” à Justiça cabe solucionar os conflitos.
Evidentemente, a Constituição Federal é uma carta política e a sua interpretação não é tão somente lógico-formal, mas política e ideológica na medida em que manipulada para atender os interesses de grupos dominantes. Por isso é fundamental que o Supremo Tribunal Federal julgue pela inconstitucionalidade do artigo 625-D incorporado à CLT.
Informações Sobre o Autor
Carlos Augusto Galan Kalybatas
Advogado em São Paulo/SP