Introdução
“Há mais de duas décadas que empreendi
desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia
política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica
consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do
seu objeto.” Assim HANS KELSEN começa o clássico Teoria Pura do Direito,
em que procura escoimar o Direito de toda e qualquer influência de
elementos que lhe são estranhos. Durante algum tempo a neutralidade do jurista
foi apontada como uma virtude. De algum tempo para cá a neutralidade tem sido
questionada e até por muitos tida como inexistente,
conforme porteriormente se demonstrará.1
A regra jurídica não aparece sem causa.
Um certo número de dados profundos são a verdadeira
origem e explicam suas gêneses. Contudo, como explicar se tradicionalmete o nascimento de determinada regra de Direito ? Não se estuda o fenômeno social que deu origem à
regra. Vai-se dizer que “a idéia de Direito” é que se exteriorizou, e não o
fenômeno social que fez surgir a regra.
Assim a ciência jurídica tradicioal é “representação”, e não “explicação”. Ou seja,
estudam-se as instituições e a noção destas instituições como necessárias ao
funcionamento social, mas não se explica o fenômeno, a raiz. Sobre imagens
retiradas da existência e do desenvolvimento da organização da vida social (e
não da explicação) que vai se fundar a ciência jurídica tradicional, criando-se
condições para o idealismo. 2
Nesta visão, cria-se espaço para
admitir (a inadmissível) neutralidade do legislador na feitura das leis, sendo
estas abstratas e impessoais, do magistrado, na aplicação da lei ao caso
concreto, e, também do doutrinador, no estudo do direito.
A realidade jurídica passa a ser
dissociada da sociedade onde se dão as relações sociais e por
conseguinte, as relações jurídicas. Ora, sendo a sociedade um complexo
de interesses e relações, por muitas vezes estes se apresentam de forma
conflitante e antagônica entre si, veja-se, por exemplo, o interesse nas
relações trabalhistas entre patrões e empregados, nas relações de consumo –
vendedor e consumidor -, a necessidade de estabelecer regramentos para disciplinar interesses opostos, assumindo-se muitas vezes
uma postura legal de proteção, a fim de tutelar uma das partes tida como mais
fraca. Através da lei, por vezes, busca-se o equilibrio
entre os contendores. Nesse contexto, não se pode pretender o Direito como
ciência neutra, uma vez que ela nasce no seio da sociedade e a ela se volta,
quando surgem os conflitos. Outras vezes, estes conteúdo
protetivo não fica tão evidente, mas nem por isso,
pode-se dizer que a lei por ser genérica é neutra, que a decisão do juiz não é
resultado de suas condicionantes sociais, intelectuais e ideológicas, que o
estudioso do Direito não sofre as influências do meio no qual está inserido.
Dessarte, sendo o pesquisador ( ou o operador do direito) inserido em determinado
meio social, com determinados postulados ideológicos, como fazer para que a
pesquisa (poder-se-a falar em parceres,
sentenças …), não seja influenciado por este condicionates.
Existe neutralidade ? Visando responder a estas
indagações, formula-se o presente trabalho.
Parte I.
A neutralidade da pesquisa nas ciências
sociais.
Considerando que o Direito situa-se
dentre as ciências sociais, a questão da neutralidade na pesquisa jurídica é
controvérsia que inicialmente remete a uma problemática maior, qual seja: a
neutralidade nas ciências sociais.
É importante que o pesquisador mesmo assumindo compromissos político-ideológicos, que seria desde
já assumir uma postura de não neutralidade, vise desenvolver um conhecimento
objetivo da realidade concreta. 3
TÂNIA STERN 4, diz que a reflexão sobre a construção do
conhecimento científico, leva-nos ao exame dos elementos constitutivos do
conhecimento, da problemática neutralidade-objetividade e a questão da
totalidade, uma vez que o pesquisador deve estar voltado para o poder
explicativo de suas interpretações e conclusões.
A autora citada ao discorrer sobre a
relação entre sujeito-objeto de o conhecimento, assinala que o conhecimento,
tal como a realidade não é algo estático, mas dinâmico, e assim deve ser
entendido como entidade dialética e contraditória em seu processo de
transformação.
O processo da investigação nas ciências
sociais pode ser entendido como um ato de conhecimento sobre a realidade
social, orientado por uma fecunda relação entre a teoria, a
observação e a interpretação. Tal processo é acompanhado, necessariamente, por
uma vigilância epistemológica de todos os elementos de pesquisa. 5
Esta operação supõe o exercício da
vigilância epistemológica em seus três graus: atenção sobre os fatos e
acontecimentos relevantes para o objeto científico; o cuidado com a aplicação
rigorosa dos métodos de investigação e de interpretação e a vigilância
reaparece quando ela julga os métodos em si mesmos, como um momento de seu
próprio procedimento e apreensão do real. 6
O conjunto de operações intelectuais
assim desenvolvidas permitirá o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos presentes nas teorias disponíveis, sobre um
determinado objeto científico, sejam obstáculos provenientes do senso comum, ou
advindos de um antigo conhecimento científico vulgarizado.
O cientista social não tem somente o
papel de descrever a realidade, empírica, a pesquisa participativa deveria
partir do estudo de uma determinada comunidade e a ela voltar-se como forma de
discussão e ação transformadora desta mesma realidade.
Nesta perspectiva, a sociologia crítica
desde a década de 60 tem se preocupado com os conceitos de compromisso e
transformação, gerando muita controvérsia entre o limite entre ciência e
ideologia. 7
Cabe ressaltar, por derradeiro, a
questão da totalidade. Hodiernamente, com as crescentes especializações, os
trabalhos científicos têm sido cada vez mais fragmentados. É importante
destacar que a totalidade não será alcançada através de resultados parciais.
Ressalte-se que a crítica ao mito da
neutralidade não significa que se queira transformar o trabalho científico em
uma opinião subjetiva do pesquisador, mas a partir do conhecimento dos diversos
fatores que a este influenciam, ressaltar o ideal
objetivo a ser perseguido.
Parte II.
A questão da neutralidade na pesquisa
jurídica.
Observa-se que as faculdades de Direito
atualmente são mera reprodução de uma sabedoria codificada, que nasceu na
segunda metade do século XVIII e é repetida até hoje, geração após geração,
aula após aula.
As faculdades de Direito, neste
sentido, integram-se nas estruturas, à perfeição. Os técnicos do Direito,
formados pelas Faculdades, são meros repetidores das estruturas jurídicas
subservientes ao sistema. Não interessa a formação do jurista crítico, pois ele
é naturalmente desobediente. Interessa o jurista formal, eficiente manipulador
das leis. No treinamento da obediência supramencionado, o ensino jurídico é
instrumento dos mais característicos e eficientes. Com mais razão, por ser a
ponta de lança do sistema encarregado do controle final da sua eficiência, o
Poder Judiciário é extensão agravada do ensino jurídico, eis que para ele
converge a atuação de todos os profissionais do Direito, gerados por tal
ensino. 8
A pesquisa jurídica é uma pesquisa
eminentemente bibliográfica, sem se preocupar com os dados concretos da
realidade social. Assim, por exemplo, na questão do acesso a justição não há preocupação em saber o número de conflitos
que são levados ao Judiciário, e se não estariam os que não são levados, devido
a descrença neste Poder, a superá-los. A preocupação
destacada por MAURO CAPELLETTI, com sendo com a justiça social, isto é,
“com a busca de procedimentos que sejam conducentes à proteção dos
direitos das pessoas comuns”. No Brasil, praticamente, inexistem estudos a
respeito destas questões, de acesso a justiça, efetividade das decisões judiciais,
etc. 9
A pesquisa, como foi dito, é
bibliográfica, a jurisprudência legalista e bibliográfica e os professores
tendem a reduzir as suas aulas às práticas forenses pessoais. Assim
desenvolve-se um processo de não criação e reprodução da estrutura vigente que
leva a sua própria manutenção. É a autopoiese do
ensino jurídico.
As escolas de direito foram reduzidas a
meras escolas de legalidade, com a desvalorização total de disciplinas
fundamentais
A questão da totalidade foi abordada na
primeira parte do trabalho e, agora, retoma-se a idéia. PLAUTO
FARACO DE AZEVEDO10 ao tratar da
limitação positivista e a cisão do discurso jurídico, reflexos na concepção do
direito e no processo hermeneutico, o positivismo
tecnocrático e a morte da cultura jurídica, assinala que o conhecimento do
direito é compartimentado, dividindo-se em duas partes estanques, uma lógica,
ocupando-se da ciência das normas, e, outra axiológica, a que incumbiria o
trato dos valores tanto subjacentes quanto buscados pela ordem jurídica.
“(…) Com o advento do positivismo,
essa cisão procura assegurar-se foros de cientificidade, ao mesmo tempo em que
se aprofunda, transmudando-se em dissenção ou
oposição, na medida que declara-se incientífica
com toda a contemplação valorativa e os espíritos procuram, conscientemente,
limitar-se à investigação empírica do direito existente. O lugar da Filosofia
do Direito passa a ser ocupado pela Teoria Gerla do
Direito (Allgemeine Rechtslehre)
e esta passa a representar o andar mais elevado e o mais recentemente
construído da Ciência positiva do Direito.(…)”
Pode-se afirmar, em síntese, que a
redução gnoseológica resultou na elaboração de um
discurso jurídico flagrantemente ideológico, cuja premissa fundamental consiste
justamente na pretensão de conhecimento do direito separado de toda e qualquer
ideologia. Nessas condições, o estudo e a investigação do direito se
realizam em um sistema fechado, cujos pressupostos são aprioristicamente
tidos como verdadeiros e cujo objeto mostra-se imune à crítica e distante dos
problemas sociais e reais.” 11
Essa postura de neutralidade confera ao jurista aquilo que PLAUTO FARACO DE AZEVEDO
denominou “um lugar seguro no condomínio do poder”.
Cria-se com esta estrutura uma forma
condicionada de reflexo no jurista, obrigando-os em nome de uma curiosa
“cientificidade do direito”, a operar com se fossem máquinas, articulando
conceitos, encadeando-os, estudando-os, estudando as leis do ponto de vista
lógico-formal, ordenando-as, classificando-as sob diversas rúbricas
e parâmetros, aferindo sua validade formal em face dos dispositivos
constitucionais, conduzindo-os, afinal, em nome da neutralidade de seu labor
científico, a omitir os juízos feitos a propósito de todo esse labor
“científico”, a omitir os juízos feitos a propósito de todo esse labor ou de
qualquer uma das partes. O trabalho do jurista esgotar-se-ia na análise das estruturas do
direito positivo mediante um pensar circunscrito às categorias do direito
positivo. Além, seria o trabalho dos filósofos ou sociólogos do direito que, a
bem diser, não fariam parte da comunidade dos
juristas. 12
Amilton Bueno de Carvalho, eminente Juiz
de Direito gaúcho, escreve: “Parece-me claro que inexiste justiça neutra. A
cegueira ou neutralidade só favorece aos fortes. Quem é cego ou “neutro” na
disputa entre o opressor e o oprimido é alienado daquele” Vê-se, neste texto, a
quem serve o mito da neutralidade política. Mais adiante, o articulista refere:
‘… no que atine ao Judiciário, que aprecia questões
já ocorridas entre os litigantes, que está vinculado ao caso concreto, é na concretude que deve verificar se ocorre ou não a justiça. Do cotejo entre as classes em luta, das necessidades pessoais e
objetivas dos litigantes, até das psicológicas, é que deve emergir ou não o
justo” 13
No encerramento do artigo já mencionado
de Amilton Bueno de Carvalho, ele denuncia: ‘Mas
sub-repticiamente isso quer dizer que o magistrado (acrescentamos, o
pesquisador, isolado na sua torre de marfim, de que nos fala Carlile), ao ser só, deve ficar distanciado do povo, o Juiz
(pesquisador) perceberá com clareza a angústia popular e ficará contaminado por
ela. E perto do oprimido, contagiado pelo seu sofrimento, evidente que tomará
opção por ele. A solução encontrada é deixar o Juiz (pesquisador) só, fora do
mundo, distante dos conflitos sociais, para não se dar conta do que acontece na
história. Um juiz (pesquisador) desse tipo será, evidentemente, um frio
aplicador da lei. A quem ele servirá ? 14
Seria ingenuidade achar que o sistema
fosse descurar do pesquisador do Direito. O Direito, como fenômeno social,
insere-se no contexto das oligarquias sociais, e, em conseqüencia,
padece dos mesmos vícios que caracterizam a hipertrofia da tendência
integrativa e a conseqüente atrofia da liberdade. Não é nenhuma novidade que o
Direito visa à preservação das estruturas de poder. Toda e qualquer tentativa
de questionar estas estruturas choca-se com o jurídico. 15 Se as oligarquias sociais superiores visam, ao longo da
história do homem, à obediência das oligarquias sociais inferiores, é o Direito
um dos seus instrumentos de manutenção de poder.
Revelada a ideologia subjacente ao
modelo tradicional, resta revelada a necessidade urgente de dotar o
profissional do Direito em geral de conhecimentos culturais atualizados. Tal
atualização é indispensável ao jurista, a fim de que este esteja
ciente “sobre suas próprias opções pessoais e sobre o significado
político do corpo profissional a que pertencem, com vistas a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico (verdadeira eqüidistância) e
uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício de suas funções numa
sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.” 16
Denunciar as estruturas de alienação é
somar-se a tarefa mágica de despertar da consciências:
é dever primordial do jurista e pesquisador crítico. Fazer do seu trabalho um
ato de recriação do Direito e do Jusito, é afirmar
que a liberdade é um sonho possível e a justiça uma utopia factível em cada
opção, como ato de construção de uma nova sociedade.
Notas
1 Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à Dogmática e hermeneutica jurídica, Fabris, Porto Alegre, 1989, José
Eduardo Faria, A reforma do Ensino Jurídico, Fabris, Porto Alegre, 1987,
Márcio Oliveira Pugina, Deontologia,
Magistratura e Alienação, Revista Ajuris, 59/167. Rui Portanova,
Motivações Ideológicas da Sentença. 3º edição, Livraria do Advogado,
Porto Alegre.
2 Rui Portanova, opus cit, pág. 53 /54.
3 Linberger, Temis, A questão da
Neutralidade na Pesquisa Juridica, (monografia).
4 Strern, Tânia, Cadernos de Sociologia, Porto Alegre,
Vol. 3, nº 3, jan/julho,
1991, pág. 34.
5 Dos Santos,
José Vicente Tavares., A construção da viagem
inversa – ensaio sobre a investigação nas ciências sociais. Cadernos de
Sociologia, Porto Alegre, Vol. 3, pág. 57, jan/jul, 1991.
6 Bourdieu, P. & Camboredon, J.
Le métier de Sociologue. Paris, Mouton,
1973, pág. 117. Citado por José Vicente Tavares dos Santos, opus cit., pág. 56.
7 Nesse
sentido, vale a pena consultar José Eduardo Faria, A
Reforma do Ensino Jurídico, Fabris, Porto Alegre, 1987,
8 Pugina, Márcio Oliveira, opus cit.
pág. 175
9 O problema é
muito bem lembrado por Temis Limberguer.
A questão da neutralidade na pesquisa jurídica (monografia).
10 Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e Hermeneutica Jurídica, Fabris, Porto Alegre, 1989, pág.
18.
11 Plauto Faraco de Azevedo, opus cit., pág. 20
12 Plauto Faraco de Azevedo, opus cit., pág. 20.
13 Amilton Bueno de Carvalho, Revista Ajuris 39/146.
14 Amilton Bueno de Carvalho, Revista Ajuris, 39/150.
15 Márcio
Oliveira Pugina, opus cit., pág. 194.
16 Boaventura de Souza Santos, Introdução à sociologia da
administração da Justiça. In: Direito e Justiça. A função social do Judiciário
(org. José Eduardo Faria). São Paulo, Ática, 1989, pág. 53.
Informações Sobre o Autor
Maurício Lindenmeyer Barbieri
Advogado em Porto Alegre/RS
Mestre em Direito Processual