O senhor Prefeito
do Município de São Paulo enviou, recentemente, à Câmara Municipal, o Projeto
de Lei nº 01-0087/2009, dispondo sobre a concessão urbanística e autorizando,
desde logo, o Executivo a promover sua aplicação na reurbanização da área
conhecida como a “Nova Luz”.
Nos termos do art.
239 da Lei do Plano Diretor Estratégico da Cidade, Lei nº 13.430, de 13-9-2002,
por meio da concessão urbanística a Prefeitura delega a execução de obras
urbanas a empresas ou consórcios, mediante licitação na modalidade de
concorrência.
Pelo projeto
legislativo sob exame caberá à concessionária, empresa vencedora do certame
licitatório, realizar a requalificação urbana procedendo as desapropriações por
via judicial ou amigável às suas expensas, de imóveis abrangidos pelas obras de
recuperação urbana previamente declarados de utilidade pública pelo Executivo
municipal. Cabe ao Executivo municipal elaborar o respectivo projeto
urbanístico, relacionar as obras e as contrapartidas, bem como assinalar o
prazo de sua execução pela concessionária.
No caso da “Nova
Luz”, primeira área a ser entregue à concessionária, pretende-se incrementar o
aparecimento de estabelecimentos comerciais e residenciais associados aos
equipamentos culturais que já existem, como esclareceu o próprio Prefeito.
Para respaldar as
desapropriações a cargo da concessionária, o projeto legislativo aduz que a
concessão urbanística fica sujeita ao regime jurídico das concessões comuns
regidas pela Lei Federal de nº 8.987, de 13-2-1995 com as complementações
previstas na Lei Municipal nº 14.517, de 16-10-2007 e na Lei Federal nº 11.079,
de 30-12-2004 (art. 4º).
Pretendeu-se, com
esse artifício jurídico, buscar base legal no art. 3º do Decreto-lei nº 3.365/41,
estatuto básico das desapropriações, que assim prescreve:
“Art. 3º Os concessionários de serviços públicos e os
estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas de poder
público poderão promover desapropriação mediante autorização expressa,
constante de lei ou contrato”.
Ora, esse
dispositivo está se referindo às concessionárias de serviços públicos que estão
executando esses serviços cabentes ao poder público sob forma de concessão ou
permissão, mediante licitação, conforme disposto no art. 175 da Constituição
Federal. São os casos de concessionárias de serviços de fornecimento de energia
elétrica, de comunicação, de águas e esgotos, de transportes coletivos urbanos
etc.
Essas
concessionárias prestam o serviço em lugar do poder concedente (União, Estados,
DF ou Município) ficando autorizadas a cobrar diretamente do usuário uma tarifa
justa pelo valor fixado na proposta vencedora, preservado pelas regras de
revisão previstas na lei, no edital e no contrato. Por isso, elas respondem
objetivamente pelos danos que seus agentes causarem a terceiros (art. 37, § 6º
da CF).
Pergunta-se, o que
é que a concessionária de que fala o projeto legislativo tem a ver com a
execução de serviço público mediante cobrança de tarifa?
Existe, ou poderá
existir no sistema jurídico a figura de concessionária de prestação de serviço
público de desapropriação as suas expensas, para execução das obras de
reurbanização, permitindo atividade lucrativa mediante revenda de novas
unidades resultantes dessas obras?
Esse projeto de lei
está criando, na prática, a figura de concessionária de especulação
imobiliária, atividade vedada ao próprio Poder Público.
Como é possível
transferir a particular o poder de desapropriar para fins de revenda, o que é
vedado ao próprio Poder Público?
A desapropriação
por zonas para fins de ulterior revenda, prevista no art. 4º do Decreto-lei nº
3.365/41 tornou-se inconstitucional a partir do advento da Constituição Federal
de 1946, que outorgou ao Poder Público o poder de instituir a contribuição de
melhoria incidente sobre propriedades imobiliárias excessivamente valorizadas
diretamente pela execução de melhoramentos públicos. Consoante já escrevemos, “a desapropriação não pode ser utilizada
fora das hipóteses constitucionais previstas sob pena de ferir direitos e
garantias individuais, que se inserem nas chamadas cláusulas pétreas” (Doutrina e prática da desapropriação, 7ª
ed.. São Paulo: Atlas, 2007, p. 84). Mais
adiante concluímos: “A desapropriação por
zona, por evolver atividade especulativa do Poder Público, como reconhece a boa
doutrina vigorante, não tem enquadramento em quaisquer dos incisos do art. 5º
do Decreto-lei nº 3.365/41, que elenca os casos de utilidade pública.
Outrossim, ausente o interesse público, que não se confunde com o interesse
privado da entidade política (União, Estados, DF e Municípios), falta o
fundamento constitucional que permita a excepcional retirada da propriedade
privada” (Ob. cit., p. 86).
Essa figura de
concessão urbanística em que a concessionária fica incumbida de efetuar a
desapropriação amigável ou judicial, mediante prévia autorização legislativa
não tem previsão na legislação federal.
O que o Estatuto de
Cidade prevê em seu art. 32 são as operações consociadas caracterizadas por
áreas delimitadas pela legislação municipal específica, objeto de um conjunto
de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal com a
participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados, com o objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais,
melhorias sociais e valorização ambiental.
Nessas operações
consorciadas poderão conter entre outras medidas: a) modificação de índices e
características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como
alterações das normas edilícias, considerado o impacto ambiental; b) a
regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo
com a legislação vigente. Não há, nem pode haver, o uso de instrumento
expropriatório, absolutamente incompatível em uma operação urbana onde haja
co-participação de proprietários e moradores locais. Também não pode a
concessionária exercer o direito de preempção como está previsto no projeto
legislativo analisando, pois esse direito é privativo do Poder Público
municipal (art. 25 do Estado da Cidade).
A concessão
urbanística de que cuida a propositura legislativa sob exame é fruto de uma
grande confusão conceitual. Confunde-se concessão de serviço público mediante licitação, hipótese em que pode ser
conferida ao concessionário, por lei específica, a faculdade de desapropriar
para expansão do serviço ou para melhorar o desempenho na execução do serviço
concedido, com a concessão para execução
de obras urbanísticas conferindo ao “concessionário” o poder de expropriar.
Em outras palavras, a desapropriação não é para melhorar o desempenho na
execução do serviço público concedido, mas para executar o plano de
requalificação urbana apresentada pelo Executivo municipal. Ora, esse tipo de
concessionário não existe, nem pode existir juridicamente.
O que é permitido
no sistema jurídico é a concessão de serviço
público seguida de execução de obras, como no caso das rodovias pedagiadas
a cargo de empresas particulares, vencedoras de certames licitatórios.
A reurbanização não
configura serviço público, mas execução de obras, e nem pode o Município
outorgar à vencedora da licitação a “concessão urbanística” atingindo a
propriedade particular, incluindo a superfície, o subsolo e o espaço aéreo
respectivos em profundidade e em altura úteis ao exercício do direito (art.
1.229 do CC). Não se pode pactuar sobre direitos que não lhes pertencem. Isso é
elementar.
Depois de
desapropriado e pago o justo preço, a Prefeitura é livre para executar as obras
necessárias por si ou por terceiros contratados na forma da lei.
Tudo que diz
respeito às restrições ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado
(art. 5º, XXII da CF) deve ser regulado por lei federal. Somente a lei federal
pode legislar sobre o direito de propriedade abrangido pelo direito civil (art.
22, I da CF).
Pode o Município,
por meio de sua Lei do Plano Diretor, dizer quando e como a propriedade urbana
cumpre a função social (art. 182, §§ 1º e 2º da CF). Mas, a legislação sobre
normas gerais de direito urbanístico compete à União nos precisos termos do
art. 3º do Estatuto da Cidade, que guarda harmonia com o estabelecido no § 1º
do art. 24 da CF.
Não há na
legislação federal a faculdade de o Município conferir a particular o encargo
de promover a reurbanização mediante desapropriação dos imóveis abrangidos pela
operação urbana, às suas expensas, para ulterior revenda das novas unidades
surgidas da requalificação urbana, a título de ressarcimento das despesas
feitas e realização de lucros. Isso configura atividade de especulação
imobiliária. Se a Prefeitura não pode realizar a especulação imobiliária, não
pode, também, por via de concessão, transferir essa atividade ao particular.
Não é porque a lei
municipal denomina de concessionário de serviço público que o especulador
imobiliário passa a revestir juridicamente a figura de concessionário prevista
na Lei nº 8.987/95, que tem sua matriz constitucional no art. 175.
O mais estranho é
que no âmbito do Município de São Paulo já existe a EMURB, empresa municipal com
experiência no ramo e que já efetuou as reurbanizações de Santana e Jabaquara,
promovendo a desapropriação com fundamento no art. 5º, letra “i” do Decreto-lei
nº 3.365/41, desapropriação essa respaldada pela Corte Suprema (RE nº82.300,
Rel. Min. Rodrigues Alckmin). Por que a utilização de terceiros para a
reurbanização da “Nova Luz”?
A explicação é
óbvia. O Município simplesmente encontrou um jeito esperto de promover a
requalificação urbana sem nada despender a título de desapropriação, transferindo
o encargo de desapropriar ou de exercer o direito de preempção ao particular
que não tem aptidão jurídica para receber esses poderes inerentes ao Poder
Público.
Tudo fica por conta
do “concessionário”, que investirá seu capital nesse negócio de desapropriar,
construir e revender as unidades não destinadas ao uso especial pela
administração pública. O concessionário poderá, ainda, vender ou locar espaços
não caracterizados como sendo de uso comum do povo ou de uso especial, assim
como promover a incorporação imobiliária. Em resumo, o concessionário terá
direito a um determinado feudo dentro de uma cidade do século XXI.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.