Sumário: 1. Introdução – 2. A súmula vinculante e os pressupostos para sua edição – 3. O salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal imediatamente anterior ao advento da Súmula Vinculante nº 4 – 4. Do contexto em que ocorreu a edição da Súmula Vinculante nº 4 do STF – 5. Não recepção da base de cálculo do art. 192 da CLT. Lacuna no ordenamento jurídico trabalhista. Integração por meio da analogia. Incidência do art. 8º da CLT – 6. Conclusão.
1. Introdução
A pletora de processos em curso nos tribunais constitui um tema recorrente no meio jurídico nacional, que permanece à busca de soluções para o estado de permanente congestionamento da máquina judiciária. Além de ser um fator de inegável desgaste da imagem do Poder Judiciário perante a sociedade, o assoberbamento dos tribunais revela-se um importante obstáculo a ser superado no caminho da instituição de um processo célere e efetivo e que atenda aos objetivos de pacificação social e afirmação da autoridade do ordenamento jurídico estatal.
No que tange especificamente às Cortes Superiores, diversos fatores podem ser apontados como causadores desse cenário de sobrecarga de trabalho: a infidelidade dos demais órgãos do Poder Judiciário em relação à sua jurisprudência; a elevação, daí decorrente, do contingente recursal e a repetição de processos idênticos, que aparecem de maneira seriada nos tribunais.
De modo a fazer frente a esses fatores, a súmula foi inserida no sistema processual brasileiro no início da década de 1960, mediante iniciativa do Ministro Victor Nunes Leal, do Supremo Tribunal Federal (STF), que a idealizou como um método de trabalho destinado a permitir não só o julgamento seguro e rápido dos processos rotineiros e que se multiplicam em série, mas também a viabilizar a própria divulgação da jurisprudência firme da Suprema Corte.[1]
A partir de sua instituição, a súmula ultrapassou as fronteiras do STF e passou a ser utilizada nos demais tribunais do país. Sofreu, outrossim, um gradativo processo de transformação, que traz como nota marcante o progressivo aumento de seu valor no sistema jurídico-processual brasileiro.
Com efeito, outrora realizada de forma autônoma pelos Tribunais, a elaboração das súmulas passou a ser o resultado de procedimento de uniformização de jurisprudência, estabelecido no vigente Código de Processo Civil (CPC)[2] em substituição ao antigo prejulgado do CPC de 1939[3], fato que inegavelmente contribuiu para o incremento de sua importância na praxe forense, onde a consulta aos precedentes e orientações jurisprudenciais agrega relevantes subsídios ao exercício da advocacia e da atividade jurisdicional, tornando, em certa medida, previsível o desfecho do processo.
Adicione-se a isso, a prerrogativa conferida ao relator dos recursos, que pode liminarmente provê-los ou obstar-lhes o seguimento, conforme esteja a decisão recorrida em dissonância ou harmonia com súmula do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior (CPC, arts. 544, 557 e CLT, art. 896).
Com o advento da Emenda Constitucional nº 45, que introduziu a chamada reforma do Poder Judiciário, esse processo evolutivo alcançou o seu ápice, mediante a concessão de efeito vinculante à súmula de jurisprudência uniforme do STF, alçando o instituto ao seu mais elevado patamar.
É importante observar que a introdução da súmula vinculante no ordenamento constitucional brasileiro teve por objetivo concretizar os princípios da isonomia e da segurança jurídica. Realmente, por seu intermédio o Supremo Tribunal Federal promove a pacificação da jurisprudência constitucional, e sinaliza aos jurisdicionados, advogados e demais segmentos do Poder Judiciário a interpretação a ser conferida a casos análogos, contribuindo, assim, para a consecução de uma ordem jurídica justa e isonômica, por meio da qual casos semelhantes recebam respostas judiciárias uniformes[4].
É conclusivo, pois, que a súmula vinculante possui, entre outras, a finalidade de tornar previsível a atividade jurisdicional. E assim o é porque, conforme o magistério de Geraldo Ataliba, “o Estado não surpreende seus cidadãos; não adota decisões inopinadas que o aflijam. A previsibilidade da ação estatal é magno desígnio que ressuma de todo o contexto de preceitos orgânicos e funcionais postos no âmago do sistema constitucional“[5]. Não por outra razão, aliás, afirma o saudoso e renomado jurista paulista: “O Judiciário aplicará a lei, em processos contenciosos, sem discrição e na conformidade de padrões técnicos perfeitamente previsíveis“[6].
A despeito de tão relevante finalidade, o STF, ao editar a Súmula Vinculante nº 4, referente à base de cálculo do adicional de insalubridade, instituiu um verdadeiro estado de insegurança no Judiciário Trabalhista. E isso porque deixou de observar os parâmetros constitucionais necessários à edição do verbete sumular que, assim, consolidou uma diretriz divorciada da pacífica jurisprudência da Suprema Corte sobre a matéria.
Por meio do presente trabalho, pretende-se demonstrar esse desvio de rota em que incorreu o STF, além de promover o aporte de elementos destinados à revisão a Súmula Vinculante nº 4, de modo a adequá-la aos parâmetros constitucionais que deixaram de ser observados por ocasião de sua edição.
2. A súmula vinculante e os pressupostos para sua edição
A Emenda Constitucional nº 45/2004, ao balizar os contornos da denominada “reforma do Poder Judiciário”, introduziu no ordenamento constitucional o instituto da súmula vinculante, cuja aplicação encontra seu regramento matriz no artigo 103-A da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.”
Nesse contexto, defrontando-se com a existência de controvérsia atual acerca de determinada matéria constitucional, poderá o Supremo Tribunal Federal, com vistas a sanar o estado de insegurança jurídica decorrente da proliferação de demandas judiciais, editar enunciado de súmula vinculante, desde que precedido da prolação de reiteradas decisões sobre o tema constitucional controvertido.
Realmente, por se tratar de um ato judicial dotado de grande alcance, na medida em que sintetiza a jurisprudência consolidada em processos judiciais concretos, em um enunciado abstrato, revestido de efeito vinculante e de eficácia erga omnes, a edição de verbete da súmula vinculante pressupõe já esteja a matéria devidamente maturada no âmbito da Suprema Corte. Advém daí a exigência de reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, já que a súmula vinculante a ser editada, não poderá representar, em nenhuma hipótese, o pensamento imediato e isolado do Supremo Tribunal Federal.[7] Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes:
“Outro requisito para edição da súmula vinculante diz respeito à preexistência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Exige-se aqui que a matéria a ser versada na súmula tenha sido objeto de debate e discussão no Supremo Tribunal Federal. Busca-se obter a maturação da questão controvertida com a reiteração de decisões. Veda-se, deste modo, a possibilidade da edição de uma súmula vinculante com fundamento em decisão judicial isolada. É necessário que ela reflita uma jurisprudência do Tribunal, ou seja, reiterados julgados no mesmo sentido, é dizer, com a mesma interpretação”.[8]
Nesse mesmo sentido, a Lei nº 11.417, de 19/12/2006, ao regulamentar a aplicação do instituto, foi enfática ao proclamar em seu artigo 2º que:
“Art. 2º. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.”.
Ante o exposto, para que possa ocorrer a edição de súmula vinculante, além de estar instaurada controvérsia atual acerca da matéria constitucional, materializando um estado de insegurança jurídica decorrente da proliferação de demandas judiciais, é preciso que a jurisprudência do STF em torno do tema a ser sumulado esteja madura, de sorte que a edição da súmula seja o reflexo do entendimento consolidado em reiteradas decisões acerca da matéria constitucional.
3. O salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal imediatamente anterior ao advento da Súmula Vinculante nº 4
Dispõe a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 192:
“Art.192. O exercício do trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo.”.
Com o advento da Constituição de 1988, cujo artigo 7º, inciso IV veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, instaurou-se no âmbito do Judiciário trabalhista relevante controvérsia em torno da base de cálculo do adicional de insalubridade. Realmente, ainda hoje são vários os processos judiciais em tramitação, onde se discute a recepção do artigo 192 da CLT, na parte em que vincula o cálculo da parcela ao valor do salário mínimo.
Após debruçar-se sobre o tema, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) houve por bem sedimentar sua jurisprudência no sentido da recepção do artigo 192 da CLT pela nova ordem constitucional. Essa orientação redundou na edição da Súmula nº 228 daquela Corte, lastreada no seguinte teor: “O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário mínimo de que cogita o art. 76 da CLT, salvo as hipóteses previstas no Enunciado nº 17”.[9]
Em razão da natureza eminentemente constitucional da matéria, o debate chegou ao âmbito do Supremo Tribunal Federal que, por meio de reiteradas decisões, proclamou a não-recepção do artigo 192 da CLT, na parte em que vinculava a base de cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo, determinando, porém, o retorno dos autos às instâncias ordinárias, com vistas à fixação de nova base de incidência para a parcela, quando esta, por óbvio, já não houvesse sido fixada. Nesse sentido, cabe reproduzir os seguintes precedentes:
“EMENTA – Agravo regimental contra despacho que afastou a incidência do adicional de insalubridade sobre o salário mínimo e determinou a baixa dos autos ao TRT para que ali se decida qual critério legal substitutivo do adotado é aplicável. I – Improcedência da alegação de julgamento extra petita: a decisão agravada se limitou a afastar a vinculação ao salário mínimo, nos termos do pedido formulado no RE; seja como for, o direito ao adicional de insalubridade – reconhecido pelas instâncias ordinárias e não contestado pelo empregador – não pode ser inviabilizado pela proibição de vinculação ao salário mínimo. II – Impossibilidade da fixação de parâmetros a serem observados pelas instâncias ordinárias na substituição do critério afastado, para evitar possível reformatio in pejus: não deve o STF prevenir a ocorrência de evento futuro, incerto e inteiramente situado no plano da legislação ordinária, escancarando para as partes a via expressa da reclamação. III – Improcedência da alegação de que os autos deveriam retornar à primeira instância: a questão é de mérito, e não de validade das decisões ordinárias. Segue-se que, ao negar provimento ao recurso ordinário, o acórdão do TRT substituiu a sentença de primeiro grau: se, fazendo-o indevidamente a manteve e contrariou a Constituição, esse o error in judicando a corrigir.” (Processo nº RE-233.271/MG; Rel.: Min. Sepúlveda Pertence; 1ª Turma; DJ de 29/10/99).
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MÍNIMO. Embargos declaratórios recebidos, para se determinar o retorno do feito às instâncias ordinárias, a fim de ser consignada outra base de cálculo para o adicional de insalubridade.” (Processo nº RE-ED-351.611/RS; Rel.: Min. Ellen Gracie; 1ª Turma; DJ de 24/10/2003).
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MÍNIMO. Verificada contrariedade ao atual texto constitucional (art. 7º, IV), os efeitos da decisão impugnada, por certo, não abarcam o período anterior à sua vigência. A aplicação do Piso Nacional de Salários instituído pelo Decreto-lei 2.351/87 não foi matéria suscitada no apelo extremo, tampouco nas contra-razões, inexistindo, neste ponto, omissão a ser suprida. Embargos declaratórios recebidos, apenas para se determinar o retorno do feito às instâncias ordinárias, a fim de ser consignada outra base de cálculo para o adicional de insalubridade.” (Processo nº RE-ED-227.442/SP; Rel.: Min. Ellen Gracie; 2ª Turma; DJ de 1º/8/2003).
“Recurso extraordinário. 2. Adicional de insalubridade. Base de cálculo. 3. Vedação de vinculação ao salário mínimo. Posicionamento da 1a Turma. Adesão. 4. Restabelecimento do critério estabelecido pelo Tribunal de origem para fixação da base de cálculo. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (Processo nº RE-439.035/ES; Rel.: Min. Gilmar Mendes; 2ª Turma; DJe de 27/3/2008).
Importante observar que o entendimento acima, já objeto de reiteradas decisões da Suprema Corte, foi alvo de expressa referência por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 565.714 (Relatora: Exma. Min. Cármen Lúcia), cujo transcurso ocorreu sob o pálio do instituto da repercussão geral e redundou na edição da Súmula Vinculante nº 4/STF.
Com efeito, conquanto o referido recurso extraordinário girasse em torno de demanda relacionada a direito de servidores públicos do Estado de São Paulo (policiais militares), o voto prolatado pela Excelentíssima Senhora Ministra Cármen Lúcia (Relatora), no que concerne às lides eminentemente trabalhistas, decorrentes de vínculos contratuais, foi claro ao consignar, a título de ratio decidendi, que:
“Falta ainda definir como será calculado o adicional de insalubridade, pois a conclusão do julgamento deste recurso não pode importar na extinção do benefício pago aos Recorrentes.
O adicional de insalubridade nas relações regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho
Conquanto não seja este o núcleo da questão posta pelos Recorrentes – integrantes do quadro da Polícia Militar do Estado de São Paulo – a aplicação da legislação dita celetista e suas situações funcionais e ao seu regime remuneratório, tal como enfatizado na manifestação da repercussão geral reconhecida, o tema imbrica com o que dispõe o artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho aplicável a outros e numerosíssimos casos de pagamento do adicional de insalubridade.
Reza o artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 192. O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo.”.
E o artigo 7º, inciso XXIII, da Constituição da República determina que:
“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [… ]
XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;”
Não cabe ao Supremo Tribunal interpretar a legislação infraconstitucional em sede de recurso extraordinário. Todavia, cabe-lhe examinar e concluir quanto à validade e eficácia de norma que integre documento legal cuja interpretação prevalecente não seja compatível com a Constituição Brasileira.
Assim, quanto àquela norma constante do artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho, é de se considerar prevalecer a jurisprudência do Supremo, no sentido de que a expressão “salário mínimo da região” não pode ser interpretada de modo a corresponder ao salário mínimo nacional, pois este é o objeto da vedação da indexação constante do inciso IV do artigo 7º da Constituição. Pelo que caberá, em cada caso, à Justiça Trabalhista definir, para os interessados, a base de cálculo do adicional devido nas relações regidas pela CLT, levando em consideração aquela legislação e os acordos e as convenções coletivas de trabalho.
Para o desate específico do presente caso, o que há de prevalecer, é que, nem o artigo 192 da CLT e o 7º, inciso XXIII, da Constituição podem ser invocados para reger as relações estatutárias.”.[10]
Conforme ressaltado pelo excerto acima reproduzido, portanto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no que concerne às lides estritamente trabalhistas, sempre se conduziu no sentido de obstar a vinculação da base de cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo, bem como no sentido de atribuir, à Justiça do Trabalho, a competência para definir, para os interessados, a base de cálculo do adicional devido nas relações regidas pela CLT, levando em consideração aquela legislação e os acordos e as convenções coletivas de trabalho.
Sucede que, ao editar a súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal rompeu com o entendimento jurisprudencial acima, ao proclamar que:
“Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.”.
Realmente, a Súmula Vinculante nº 4, ao obstar, de maneira geral, a fixação de qualquer outra base de cálculo pelo Poder Judiciário, distanciou-se, não só dos fundamentos determinantes[11] que lastrearam a sua edição, mas também das reiteradas decisões sobre a matéria proferidas pelo STF e, com isso, em vez de prestigiar a segurança jurídica, instaurou um estado de surpresa e apreensão, colidindo, assim, com a diretriz constante dos artigos 103-A da Constituição e 2º da Lei nº 11.417/2006.
4. Do contexto em que ocorreu a edição da Súmula Vinculante nº 4 do STF
A edição da Súmula Vinculante nº 4 teve ensejo na Sessão Plenária de 30/4/2008, como decorrência do julgamento proferido no Recurso Extraordinário nº 565.714 (Relatora: Exma. Min. Cármen Lúcia), sob a égide do instituto da repercussão geral.
Naquela assentada, o Supremo Tribunal Federal apreciou demanda relacionada a direito de servidores públicos do Estado de São Paulo (policiais militares). O centro da discussão, vazado na idéia matriz da súmula vinculante, consistia na impossibilidade de adoção do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade e no pedido de adoção de novo parâmetro para cálculo da parcela.
Fundada em copiosa jurisprudência acerca da matéria, a Suprema Corte, de maneira absolutamente acertada e irretocável, adotou a tese de que a previsão legal do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade é incompatível com a Constituição de 1988.
Sucede que, tomando por base a disciplina constitucional pertinente aos servidores públicos, o Supremo Tribunal Federal editou a cláusula restritiva geral constante da parte final da súmula, de modo a obstar a fixação, pelo Poder Judiciário, de nova base de cálculo para a parcela.
E, de fato, partindo-se das normas aplicáveis à relação jurídica titularizada por servidores públicos estaduais estatutários (policiais militares), não se poderia mesmo cogitar da substituição da base de cálculo do adicional de insalubridade pela via judicial. E isso porque o Poder Judiciário, nessa hipótese, não pode atuar como legislador positivo, sob pena de afrontar o ordenamento constitucional, na parte em que consagra os princípios da legalidade (CF, art. 5º, II e 37, caput), da separação dos Poderes (CF, art. 2º), da autonomia federativa dos Estados (CF, art. 25) e da iniciativa do Poder Executivo sobre leis que versem sobre a remuneração dos servidores públicos (CF, art. 61, § 1º, II, “a” e “c”).
Não por outra razão, aliás, é que, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 565.714/SP, foi decidido que:
“A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – (Relatora):[…]
Não há, portanto, parâmetro expresso na Constituição da República para determinar a base de cálculo do adicional de insalubridade dos Recorrentes, o que haverá de constar de lei.[…]
Todavia, o Tribunal a quo já concluiu não haver parâmetro infraconstitucional a ser aplicado ao caso ao afirmar que ‘preceituando a lei que a vantagem incida sobre o salário mínimo, não poderia o Judiciário estabelecer nova base de cálculo para o adicional de insalubridade eis que não pode legislar já que tal competência é privativa do Poder Executivo, sob pena de desrespeitar os artigos 37, caput, e 5º, II, da Constituição Federal.’”.[…]
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Então foi ajuizada ação nesse sentido. Evidentemente não podemos – a mercê até mesmo do que seria a declaração de inconstitucionalidade da norma do Estado de São Paulo, que é de 1985 – substituir, como se legisladores fôssemos, a base de incidência pela remuneração.[…]
Pronuncio-me no sentido de desprover simplesmente o recurso, com as razões lançadas por Sua Excelência – concordo com elas – e, a partir desse desprovimento, editar um verbete no sentido de que não pode haver a vinculação de parcela remuneratória ao salário mínimo, dando, a seguir, a palavra à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo para, quem sabe, vir a alterar a lei.[…]
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – […]
Nisso, fora de dúvida, o salário mínimo assumiu a função de indexador e, portanto, contrário à Constituição, não apenas em relação ao artigo 7º, mas, também, ao artigo 25, § 1º, combinado com o artigo 37, X, que dá ao Estado competência para fixar os critérios e a oportunidade de elevação da remuneração dos seus servidores.
Pela remissão ao salário mínimo, o Estado abdica sua competência exclusiva de iniciativa de lei específica para o aumento de acordo com seus recursos orçamentários, pois essa norma estabelece mecanismo automático pelo qual a remuneração será aumentada de acordo com a legislação federal.”.
Ocorre que, em relação às lides trabalhistas, em que se põe em foco direitos decorrentes de relação jurídica estritamente privada, os óbices acima não têm incidência. Diferentemente do que ocorre em relação a processos envolvendo servidores públicos estatutários, nova base de cálculo para o adicional de insalubridade pode ser fixada pela Justiça do Trabalho, desde que se tenha por base os parâmetros fixados pela própria Consolidação das Leis do Trabalho, ou por acordos e convenções coletivas de trabalho pertinentes ao tema.
Vê-se, portanto, que, ao editar a súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal indevidamente generalizou o âmbito de incidência dos fundamentos do caso em julgamento no Recurso Extraordinário nº 565.714/SP, fazendo repercutir sobre relações jurídicas trabalhistas de caráter privado, óbices pertinentes apenas ao vínculo existente entre a Administração Pública e os servidores públicos estatutários.
5. Não recepção da base de cálculo do art. 192 da CLT. Lacuna no ordenamento jurídico trabalhista. Integração por meio da analogia. Incidência do art. 8º da CLT
Afastada a possibilidade de se utilizar o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, materializa-se uma lacuna no ordenamento jurídico trabalhista, que deve ser preenchida, a fim de se estabelecer a nova base de incidência da parcela. Este procedimento, contudo, nem de longe importará a atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, em afronta ao princípio da separação dos Poderes.
Com efeito, o sistema de separação dos Poderes ganhou sua expressão maior por intermédio do pensamento de Montesquieu, que, no clássico O Espírito das Leis, ao dedicar-se à Constituição Britânica, pontificou que: “Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.”[12].
Montesquieu pautou seu pensamento no sentido da necessidade de se promover um equilíbrio entre as estruturas internas do Estado, mediante um sistema de controle mútuo[13], destinado ao combate do absolutismo, e que deu origem ao posteriormente conhecido sistema de freios e contrapesos (checkes and balances)[14], segundo o qual cada um dos Poderes é dotado de meios de limitar a ação do outro.
O preenchimento da lacuna gerada pela não-recepção do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, contudo, em nenhum momento implicará em invasão da seara constitucionalmente destinada ao Poder Legislativo, por parte do Poder Judiciário. E isso porque ocorrerá mediante a utilização da analogia, processo de auto-integração do ordenamento jurídico e que se encontra legalmente previsto no artigo 8º da CLT, in verbis:
“Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito de trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direto comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.”.
Com efeito, consoante o magistério de Norberto Bobbio, entende-se por analogia o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina legal adotada em relação a um caso regulamentado semelhante. Sua aplicação pressupõe que entre os dois casos exista uma semelhança relevante, isto é, que de ambos se possa extrair uma qualidade comum, que seja, ao mesmo tempo, a razão pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras conseqüências jurídicas (ratio legis).[15]
Nessa mesma linha discorre Larenz, ao definir a analogia como:
“a transposição de uma regra, dada na lei para a hipótese legal (A), ou para várias hipóteses semelhantes, numa outra hipótese B, não regulada na lei, «semelhante» àquela. A transposição funda-se em que, devido à sua semelhança, ambas as hipóteses legais hão de ser identicamente valoradas nos aspectos decisivos para a valoração legal; funda-se na exigência da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual.”.[16]
É importante observar que a analogia não se contrapõe ao princípio da separação dos Poderes, que, em nenhum momento, restará afrontado com a sua utilização. E isso porque, além de a sua utilização estar expressamente assegurada em lei (CLT, art. 8º), por seu intermédio, não se procede à criação de uma nova norma jurídica. Nas palavras de Maria Helena Diniz:
“a analogia […] simplesmente desvenda, ou descobre, a norma implícita existente. Serve à expansão lógica das leis, mas nunca elabora direito novo; é um veículo de explicitação de norma latente, revelando o já, virtualmente, contido na norma jurídica, que possui a potencialidade de adaptar-se ao caso não previsto pelo seu elaborador.”.[17]
Frente a essa perspectiva, pode-se perfeitamente adotar como base de cálculo do adicional de insalubridade, o salário básico, mediante aplicação analógica do artigo 193, § 1º, da CLT, que estabelece os parâmetros destinados ao cálculo do adicional de periculosidade.
Realmente, o adicional de insalubridade tem seu regramento ditado pelos artigos 189 a 192 da CLT. Seu pagamento é devido sempre que o empregado, em razão da natureza, condições ou métodos de trabalho, seja exposto a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância estabelecidos em norma editada pelo Ministério do Trabalho. Sua finalidade, assim, consiste em estimular o empregador a suprimir o agente insalubre, já que o direito à parcela cessa com a eliminação do risco (CLT, art. 194), e a compensar financeiramente o trabalhador pelo perigo de dano à sua saúde existente no local de trabalho.
Já o adicional de periculosidade é regulado preponderantemente pelo artigo 193 da CLT. Seu pagamento é devido sempre que o empregado, em razão da natureza, condições ou métodos de trabalho, seja posto em contato permanente com inflamáveis ou explosivos, em situações de risco acentuado. Sua finalidade, assim, consiste em estimular o empregador a suprimir o agente perigoso, já que o direito à parcela cessa com a eliminação do risco à integridade física (CLT, art. 194), e a compensar financeiramente o trabalhador pela exposição de sua vida ao risco no ambiente de trabalho.
Estando ambos os adicionais revestidos da mesma finalidade (ratio legis) protetiva do trabalho executado em condições adversas à vida, mediante tutela da integridade física e saúde do trabalhador, nada mais razoável que tenham idêntica base de cálculo, até mesmo de modo a conferir coerência interna ao sistema legislativo no qual se inserem.
Esta, por sinal, foi a linha adotada pelo TST, ao reformular a redação de sua Súmula nº 228, cujo teor atualmente é o seguinte:
“ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO (redação alterada na sessão do Tribunal Pleno em 26.06.2008) Res. 148/2008, DJ 4 e 7.7.2008 – Republicada DJ 8, 9 e 10.7.2008 – A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo.”.[18]
Acrescente-se a isso a circunstância de que ambos os adicionais têm por finalidade concretizar o direito fundamental social inscrito no artigo 7º, inciso XXIII, da Lei Magna, expresso ao assegurar a todos os trabalhadores urbanos e rurais a percepção de “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”.
E, presente essa circunstância, ganha relevo o princípio da proibição de retrocesso social, apto a justificar a utilização, in casu, da analogia.
Realmente, os direitos fundamentais, uma vez concretizados pela via legislativa, saem da esfera de disponibilidade do Estado, que não pode mais reduzi-los ou suprimi-los[19], sob pena de promover o retorno a um cenário de inconstitucionalidade por omissão parcial ou total, que deve ser repelido, por impedir a aplicação dos postulados e princípios constantes da Lei Fundamental.
Nesse sentido, conduz-se o magistério de Canotilho, materializado na citação de paradigmático julgado do Tribunal Constitucional de Portugal, in verbis: “a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social”.[20]
Frente a essa perspectiva, revela-se constitucionalmente adequada a utilização da analogia, como recurso apto a suprir a lacuna legislativa criada com a não-recepção do salário mínimo, na condição de base de cálculo do adicional de insalubridade. Por seu intermédio, além de se preservar o princípio da separação dos Poderes, já que não se terá qualquer atuação do Poder Judiciário na condição de legislador positivo, igualmente estará prestigiado o direito fundamental social inscrito no artigo 7º, inciso XXIII, da Lei Magna.
6. Conclusão
Conforme ficou demonstrado, a edição de súmula vinculante pressupõe que a jurisprudência do STF em torno do tema a ser sumulado esteja madura, de sorte que a edição da súmula seja o reflexo do entendimento consolidado em reiteradas decisões acerca da matéria constitucional.
A jurisprudência do STF anterior ao advento da Súmula Vinculante nº 4 sempre proclamou a não-recepção do artigo 192 da CLT, na parte em que vinculava a base de cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo, determinando, porém, o retorno dos autos às instâncias ordinárias, com vistas à fixação de nova base de incidência para a parcela, quando esta, por óbvio, já não houvesse sido fixada.
Referida circunstância foi objeto de expressa menção por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 565.714 (Relatora: Exma. Min. Cármen Lúcia), cujo transcurso ocorreu sob o pálio do instituto da repercussão geral e redundou na edição da Súmula Vinculante nº 4/STF.
Sucede que, ao editar a súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal rompeu com esse entendimento jurisprudencial ao obstar, de maneira geral, a fixação de qualquer outra base de cálculo pelo Poder Judiciário. Com isso, em vez de prestigiar a segurança jurídica, instaurou um estado de surpresa e apreensão, colidindo, assim, com a diretriz constante dos artigos 103-A da Constituição e 2º da Lei nº 11.417/2006.
E isso ocorreu, porque ao editar o verbete sumular, o Supremo Tribunal Federal imprimiu caráter geral ao julgamento proferido no Recurso Extraordinário nº 565.714/SP, fazendo repercutir sobre relações jurídicas trabalhistas de caráter privado, óbices pertinentes apenas ao vínculo existente entre a Administração Pública e os servidores públicos estatutários. Daí emergiu a parte final da súmula, expressa ao obstar a fixação de qualquer outra base de cálculo para o adicional de insalubridade pelo Poder Judiciário, em atenção ao princípio da separação dos Poderes.
É de se ver, porém, que, uma vez afastada a possibilidade de se utilizar o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, materializa-se uma lacuna no ordenamento jurídico trabalhista, que deve ser preenchida, a fim de se estabelecer a nova base de incidência da parcela. Este procedimento, contudo, nem de longe importará a atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, em afronta ao princípio da separação dos Poderes. E isso porque ocorrerá mediante a utilização da analogia, processo de auto-integração do ordenamento jurídico e que se encontra legalmente previsto no artigo 8º da CLT.
Assim, pode-se perfeitamente adotar como base de cálculo do adicional de insalubridade, o salário básico, mediante aplicação analógica do artigo 193, § 1º, da CLT, que estabelece os parâmetros destinados ao cálculo do adicional de periculosidade. Realmente, estando ambos os adicionais revestidos da mesma finalidade (ratio legis) protetiva do trabalho executado em condições adversas à vida, mediante tutela da integridade física e saúde do trabalhador, nada mais razoável que tenham idêntica base de cálculo, até mesmo de modo a conferir coerência interna ao sistema legislativo no qual se inserem.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Simões Lindoso
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em Brasília perante os Tribunais Superiores.