“EMENTA: VINCULO DE EMPREGO. ESTAGIÁRIO. LEI 6.494/77. Estágio profissional celebrado sem a estrita observância aos ditames da Lei 6.494/77, consubstanciados na inexistência de experiência prática na linha de formação do estagiário e na ausência de complementação do ensino e da aprendizagem, mediante acompanhamento e avaliação, de acordo com os currículos, programas e calendários escolares, revela vínculo de emprego entre prestador e tomador do serviço. (…)” (TRT 4ª Região. 4ª Turma (Processo nº 02061-2005-733-04-00-0 RO). Relator o Exmo. Juiz Milton Varela Dutra. Publ. DOE-RS: 28.03.2007.)
COMENTÁRIO
A jurisprudência ora comentada trata da descaracterização do contrato de estágio e o conseqüente reconhecimento do vínculo empregatício do suposto estagiário. A lei de estágio como bem asseverou Valentin Carrion é uma porta aberta para a fraude, que o judiciário coibirá quando necessário[1].
O estagiário é o aluno/estudante devidamente matriculado em cursos de nível superior, profissionalizantes, escolas de educação especial, ensino médio e de educação profissional que efetivamente os freqüente e que seja admitido na condição de estagiário em órgãos da Administração Pública ou em pessoas jurídicas de direito privado[2]. Este conceito é complementado pelos requisitos[3] para a realização do contrato de estágio, quais sejam: termo de compromisso de estágio firmado entre o estudante e o concedente, salvo se o estágio for comunitário, (art. 3º, parágrafo 2º da Lei 6.494/77) situação em que se dispensa este requisito; seguro de acidentes pessoais para o estagiário, requisito este de índole humanitária, haja vista que o estagiário não é empregado, não fazendo jus, pois, à proteção do acidente de trabalho; encaminhamento pela instituição de ensino à qual o estudante esteja vinculado; efetivo cumprimento do prazo assinalado no termo de compromisso e subscrição da carteira de estagiário[4].
Sérgio Pinto Martins diferenciou[5] o estágio do contrato de trabalho aduzindo que no primeiro o objetivo é a formação profissional do estagiário, tendo, portanto, finalidade pedagógica, embora haja pessoalidade, subordinação, continuidade e uma forma de contraprestação[6]. O mesmo observa Maurício Godinho Delgado, que analisa minuciosamente a similitude entre o estágio e a relação de emprego, sob o ponto de vista dos elementos fático-jurídicos da relação empregatícia[7].
Materialmente, o estágio deve guardar identidade com o aprendizado do estudante, propiciando o acesso ao incremento social, cultural e profissional. Além de ser acompanhado pela instituição de ensino à qual o estudante esteja matriculado. Trata-se, este último requisito material do estágio, de atividade fiscalizatória de apoio ao Ministério do Trabalho, atuando a instituição de ensino como acompanhante e supervisora do estágio desempenhado. Nesta função, cumpre-lhe notificar a fiscalização de eventuais desvios de finalidade e fraudes, zelando para que seus estudantes realizem estágios em conformidade com a lei, sob pena de recair em negligência, na acepção da culpa in vigilando ou in eligendo, a depender do caso concreto.
O estágio é atrativo ao estudante sob vários pontos de vista. Inicialmente pela experiência prática e teórica que propicia e, num segundo momento, pelo incremento curricular, que pode auxiliar o ingresso no competitivo mercado de trabalho. Com o aumento do número de cursos superiores, os estudantes universitários têm encontrado dificuldades em encontrar estágios e posteriormente em entrar no mercado de trabalho, o que os pressiona a aceitar realizar contratos de estágio fraudulentos, que visam, tão-somente, maquiar a relação de emprego existente. Outro fator, não menos relevante, é a necessidade econômica deste estudante universitário, quer para custear a faculdade, quer para sua própria subsistência, que os obriga à submissão a formas precárias e ilegais de contratação.
O Direito do Trabalho e a jurisprudência[8] trabalhista são unânimes em rechaçar a utilização do estágio como meio de fraudar a legislação trabalhista, escondendo a intenção de mascarar a relação empregatícia. Para que se possa averiguar se realmente há desvirtuamento da relação de estágio é preciso distinguir as situações normais daquelas nas quais há deturpação da figura do Estagiário e este não passa de um empregado como os demais, casos em que a relação jurídica é de emprego e não de estágio[9].
O princípio justrabalhista da primazia da realidade é instrumento poderoso de averiguação das reais condições em que o estudante inseriu-se nos quadros da empresa[10]. Na lição valiosa de Américo Plá Rodriguez:
“O significado que atribuímos a este princípio é o da primazia dos fatos sobre as formas, as formalidades ou as aparências. Isto significa que em matéria de trabalho importa o que ocorre na prática, mais do que aquilo que as partes hajam pactuado de forma mais ou menos solene, ou expressa, ou aquilo que conste em documentos, formulários e instrumentos de controle[11].”
Para que atenda a este princípio, o estágio deve, inicialmente, propiciar ganhos educacionais e profissionais, o que se traduz numa contradição quando as atividades desempenhadas pelo suposto estagiário não possuem identidade com sua formação em curso[12]. O objetivo perseguido pelo parágrafo 2º, art. 1º, da Lei 6.494/77 é justamente garantir ao estagiário a complementação do seu aprendizado, o que só pode ser obtido se as funções por ele desempenhadas contribuírem de alguma forma para o seu crescimento cultural, profissional e social na futura profissão para a qual se prepara[13]. Admitir o contrário é transformar o estudante em mão-de-obra barata e prejudicar a inserção de trabalhadores nos postos de trabalho[14], ocupados de maneira ilegal por supostos estagiários. Por isto, o simples fato de a empresa cedente do estágio não propiciar o aprendizado citado é suficiente para a descaracterização da relação jurídico estagiária.
O princípio da primazia da realidade ou contrato realidade afasta, inclusive, a presunção de veracidade absoluta do termo de compromisso, também chamado de contrato de estágio[15], formalidade exigida pela Lei de Estágio e muito utilizada com a finalidade obstativa da relação de emprego. A mera existência de contrato de estágio, em obediência às formalidades legais da Lei 6.494/77, é presunção relativa[16], juristantum da relação jurídica analisada. Este não é a única exigência legal e não se constitui em prova suficiente de que não houve fraude às leis trabalhistas, nos moldes do art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho.
É forçoso reconhecer que a fraude à legislação de estágio muitas vezes ocorre pela omissão das Instituições de Ensino, que não cumprem o dever jurídico de acompanhar e avaliar o estágio concedido e por elas intermediado. Ipso facto, as Instituições de Ensino deveriam ser responsabilizadas juntamente com as empresas cedentes do estágio fraudulento no que pertine às verbas trabalhistas devidas pela configuração da relação de emprego.
Muito comum o recrutamento de universitários pelo seu nível intelectual para realização de atividade de atendimento ao público e serviços de escritório corriqueiros, tal qual dar andamento em contratos, portar documentos de uma empresa para a outra, realizar pagamentos. O estágio maquiado é uma realidade inegável. A mão-de-obra barata e qualificada dos universitários tem sido utilizada para evitar a contratação de funcionário/empregado e burlar a incidência obrigatória da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, Tudo isto, contribuindo para a marginalização do cidadão e precariedade das condições de labor, já tão desfavoráveis num país pobre como o nosso.
O magistrado trabalhista e renomado doutrinador Maurício Godinho Delgado explica que:
“Frustradas, entretanto, a causa e a destinação nobres do vínculo estagiário formado, transmutando-se sua prática real em simples utilização menos onerosa da força de trabalho, sem qualquer efetivo ganho educacional para o estudante, esvai-se o tratamento legal especialíssimo antes conferido, prevalecendo, em todos os seus termos, o reconhecimento do vínculo empregatício”[17].
A jurisprudência analisada está em perfeita consonância com a doutrina e com a posição do Tribunal Superior do Trabalho, ambas unânimes em rechaçar a utilização do estágio como meio fraudulento de impedir a incidência protetiva da relação de emprego.
Informações Sobre o Autor
Dayse Coelho De Almeida
Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe – UFS e do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe – FaSe, advogada cível e trabalhista do escritório Almeida, Araújo e Menezes Advogados Associados – ALMARME, Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ. Co-autora dos livros: Relação de Trabalho: Fundamentos Interpretativos para a Nova Competência da Justiça do Trabalho, LTr, 2005 e 2006; Direito Público: Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Tributário, PUC Minas, 2006 e Roda Mundo 2006, Editora Ottoni, 2006. Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ, da Associação Brasileira de Advogados – ABA e do Instituto Nacional de Estudos Jurídicos – INEJUR.