Resumo: O presente artigo terá por pretensão a abordagem dos institutos afetos ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) e implicações na Lei 10.741 de 2003.
Palavras-chave: Benefício de Prestação Continuada – Lei Orgânica da Assistência Social – Estatuto do Idoso
Sumário: 1. Introdução; 2. Miserabilidade; 3. A solidariedade; 4. Redução da idade e situação dos menores de 65 anos; 5. Aspectos jurídicos e condicionantes; 6. Considerações finais; 7. Bibliografia consultada.
“Não se vive para comer, mas come-se para viver”. Sócrates
1. Introdução:
Um dos desafios da terceira idade está relacionado à integração social. Para se viver socialmente com os pares é necessária a satisfação de necessidades basilares e, dessa forma, ter acesso a uma vida minimamente digna. No entanto, essa não é a realidade vivida por muitos idosos. Mais aguda é a situação dos idosos hipossuficientes, por impossibilidade de prover o próprio sustento e de sua família.
Seguindo uma tendência demográfica contemporânea, é comum observamos famílias chefiadas por idosos[1]. Com a diminuição gradativa dos postos de trabalho, mormente no setor privado, observa-se, principalmente na família de baixa renda, uma contribuição maior de idosos para a formação da economia familiar.
Sensível a uma realidade que cada vez mais se faz presente nos lares brasileiros, o legislador ordinário editou as recomendações dos artigos. 20 e 21 da Lei 8.742 de 1993, sendo depois acrescentadas as disposições do artigo 34 da Lei 10.741 de 2003 (Benefício de Prestação Continuada ou BPC).
2. Miserabilidade:
Para ilustrarmos a miserabilidade, partiremos de sua acepção etimológica, que nada mais é um estado de pobreza extrema, de penúria. Essas noções, por certo abstratas, distam daquilo que realmente pretenderam demonstrar, quer seja, as dificuldades de colocação no mercado, uma estrutura social rígida, problemas de justiça social, ou ainda, direitos de inclusão, por parte de pessoas idosas. Na literatura tupiniquim, quem melhor retratou a miséria foi o autor Aluísio Azevedo, sempre em tonalidade cipreste[2], por vezes trágica.
É bem verdade que uma coisa é a realidade ilustrada por notas taquigráficas; a outra seriam os fatos nus e crus. Por essa razão há uma cisão doutrinária acerca da aplicabilidade do BPC e do conceito de miséria e seus reflexos. Críticos da concessão do BPC (e das interpretações extensivas) poderão levantar suspeições de clientelismo, de servilismo do Poder Público às massas, da mesma forma que o assistencialismo. Da outra face, os entusiastas sustentam o papel do Direito Alternativo, não no sentido antidogmático[3], mas naquele de buscar a interpretação mais conivente com os objetivos perseguidos pelo Constituinte de 1988.
Destacamos que esses posicionamentos extremos são expressões caricatas. Melhor seria retratarmos a questão da miséria longe de romance ou de tragédia e por certo tal acepção encontra dificuldades nas abstrações ou nas generalizações felizes.
No plano pragmático, a miserabilidade pode ser concebida tanto na face legal como na social. Nesta última face, vale destacar as recomendações do IBGE, órgão público sintonizado com a realidade social brasileira, cujas prescrições estão assentadas em dados temporais, sociais e econômicos, o que nem sempre seguem os mesmos destinos do salário-mínimo vigente. Para aquela primeira, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social, são consideradas miseráveis as famílias cuja renda per-capita seja menor do que a fração de um quarto do salário mínimo vigente.
Dessa forma, os critérios aferidores de miserabilidade, contidos no artigo 20 da Lei 8.742/1993, foram objetos de inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais. De um lado, os doutos militavam a possibilidade de comprovação da miserabilidade por meios diversos, bem como interpretavam as prescrições contidas no princípio da dignidade humana, no sentido de imprimir as recomendações do art. 230 da Constituição Federal, o que reproduzimos verbalmente:
Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
De outro, sustentava parte dos operadores do Direito que, de fato, a Constituição Federal garante um salário mínimo em termos de prestação continuada, no entanto, os critérios necessários para a concessão ficavam a cargo do legislador ordinário (podendo em alguns casos prever comprovações “juris et de jure”). Nesse sentido, apontava a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n°1232/DF.
Partindo da celeuma acima, o Estatuto do Idoso evoluiu alguns passos em direção ao bem-estar do idoso, ao consignar a possibilidade da concessão do BPC para mais de um membro da mesma família, o que afastou, parcialmente, as recomendações prescritas na Lei Orgânica da Assistência Social. Seguindo as disposições do Estatuto do Idoso e ao conjugar a possibilidade de aferição da miserabilidade por meio diversos, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
Por igual modo, já sustentou a jurisprudência do Tribunal Federal da Quinta Região:
“PREVIDENCIÁRIO. BENEFICIO ASSISTENCIAL. ART. 20, LEI 8.742/93. CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE. COMPROVAÇÃO. 1 – A renda familiar inferior a 1/4 do salário mínimo não é o único meio de comprovação de miserabilidade para concessão de benefício assistencial previsto na lei 8.742/93. Essa presunção não tem o condão de impedir que o magistrado se utilize de outros meios para aferir a miserabilidade do grupo familiar, ainda que ultrapasse o referido limite. Precedentes do STJ. 2 – Comprovada a miserabilidade do requerente, cabe a concessão do benefício assistencial previsto no artigo 20 da Lei 8.742/93. 3 – Incapacidade para o exercício laboral e atividades da vida diária comprovada por laudo pericial da autarquia previdenciária. 4 – Apelação e remessa oficial improvidas”. (TRF 5ª REGIÃO – SEGUNDA TURMA – REL. CARLOS REBÊLO JÚNIOR – PROC. 2004.05.99.001260-4/RN – AC 347127/RN – DJ 19/08/2005)
Consoante os termos retro, em que pesem as considerações da natureza pública e administrativa do artigo 20 da Lei 8.742/93, os operadores do Direito têm seguido uma interpretação extensiva e teleológica dos critérios aferidores de miserabilidade, mormente por conta da dificuldade de conceituar este termo. Desse modo, é de se ponderar que a miserabilidade não é um termo atemporal nem estanque, mas varia segundo circunstâncias históricas, espaciais e sociais. Por isso se fez forte a aplicação do Direito Alternativo neste dispositivo, não no sentido de malferir o que foi instituído pelo legislador pátrio, mas para atender as determinações e aspirações do Constituinte de 1988. Reportamos, ainda, que a conceituação deve partir de elementos estáticos da realidade, mas nunca de elementos dinâmicos[4].
Oportunamente, destacamos que o próprio Estatuto do Idoso (artigo 34), inovou no critério aferidor de miserabilidade quando se refere à falta de “meios para prover a sua subsistência nem tê-la provida por sua família”, o que afasta abertamente o quantum primitivo. Deve-se, pois, no caso do idoso, ser observada a recomendação contida naquele diploma especial e não a determinação do artigo 20 da Lei 8.742/1993.
3. A solidariedade:
Preliminarmente, a solidariedade teve seu assento em laços de fraternidade, quer seja, a preocupação para com o semelhante. Por séculos, tem esse sentimento sido concebido como uma causa nobre, mas com pouca aplicabilidade concreta. Por ser dotado de natureza principiológica, encontra dificuldade na materialização de seus mandamentos centrais. Nessa tônica, é que se faz necessária a caracterização de princípio que, pelas lições de CARRAZA[5], deve ser entendido como:
“Um enunciado lógico, implícito ou explicito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula de modo inexorável, o entendimento e aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”.
Os princípios, dentre eles o da solidariedade, estão estreitamente ligados aos valores correspondentes, em referência direta. Nas preleções de GUERRA FILHO[6], instamos que os princípios não fundamentam nenhuma ação diretamente, sempre dependendo de uma regra concretizadora e necessitando, portanto, da mediação de alguma outra regra. É, por força de sua abstração e generalidade, que concebemos a dificuldade nas materializações daqueles mandamentos nucelares.
Voltando àquela acepção primitiva, a solidariedade é um mecanismo harmônico, por meio do qual integra os diversos contingentes sociais, independente das diferenças individuais. A solidariedade não é só um princípio constitucional, mas igualmente fim ou objetivo da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo terceiro da Constituição Cidadã. Nestes termos, a solidariedade é concomitantemente princípio e fim, devendo permear toda a atividade legislativa, executiva e jurisdicional.
A solidariedade parte do conceito da convergência de interesses; nunca da discriminação ou da divergência. A solidariedade luta contra a fragmentação bem contra a exclusão de grupos minoritários, que pode ser trazida por objetivos ou metas comuns. No entanto, em que pesem tais considerações, o acepção “solidariedade jurídica” se aproxima mais do conceito social e deve ser entendida como medidas de coesão geradas a partir da divisão social, segundo Durkheim[7].
Mui oportunamente rememora PERES[8] que o princípio da solidariedade teve o seu esboço inicial durante a deflagração da revolução francesa, sendo, portanto, uma evolução jurídica do termo “fraternidade”.
Esforços são medrados no sentido de prevenir uma situação de risco social. Bem reporta FREITAS JÚNIOR[9] que a observância das prescrições contidas no artigo terceiro do Estatuto de Idoso não estão dispostas à sociedade em geral, mas àqueles obrigados por força de lei. Acrescenta, ainda, o referido doutrinador, que:
“Estando o idoso em situação de risco, caberá somente ao garantidor (aquele que tem, efetivamente, o dever jurídico de protegê-lo) adotar todas as medidas necessárias para regularizar a situação de seu protegido”.
Destaca PERES[10] que a solidariedade se fez mais forte a partir dos efeitos nefastos da Segunda Guerra Mundial, dos quais resultou numa maior preocupação do Poder Publico para com as minorias desassistidas. Desenvolve-se, então, a política do Estado Providência como um aliado substituto das famílias. No entanto, como já asseverou a autora, houve uma mudança planar nesse conceito, principalmente pelo aumento da população idosa, pela política de revalorização dos ideais liberais, pelos problemas atuariais, por dentre outros. É, nesse contexto de mudanças no paradigma mundial, que coube à família um papel de revalorização e de responsabilização. Dessa forma e partindo da solidariedade, que é dever basilar da família acolher seus idosos, o Estado assume um papel complementar, mas obrigatório, bem como o de instituir políticas para os idosos, no sentido de resgatar o seu papel social[11].
4. Redução da idade e situação dos menores de 65 anos:
Em termos de concessão do BPC, o Estatuto do Idoso avançou na redução da idade de 70 anos para 65 anos, no entanto, os idosos compreendidos na faixa etária de 60 a 65 anos não foram beneficiados. As prescrições anteriores eram disciplinadas pelo artigo 20 da Lei 8.742/1993, sendo revogadas parcialmente pelo artigo 34 da Lei 10.741/2003.
Por ser uma norma de natureza pública e disposta aos agentes administrativos das entidades federativas, entende-se que a interpretação contida no artigo 34 do Estatuto do Idoso é restritiva.
Reza por um lado, a Constituição Federal (artigo 203, V, CF), a garantia de um salário mínimo a título de benefício ao idoso hipossuficiente. Por outro, nos termos do artigo primeiro da Lei 10.741 de 2003, entende-se por pessoa idosa aquela pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Por fim, consigna o artigo 34 do referido Estatuto, a concessão do BPC aos idosos com idade igual ou superior a 65 anos.
Dessa forma, com base na interpretação sistemática, podemos levantar as seguintes considerações:
O conflito é patente por conta do Constituinte não ter definido a acepção de idoso , mas tendo contemplado o Estatuto aquelas pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo primeiro daquele diploma legal.
Seguindo a concepção acima, trata-se de uma flagrante injustiça por conta do legislador ordinário não ter contemplado uma situação de transição (de progressão) ou ter previsto conforme as disposições prescritas no art. 203 da Constituição Federal (concessão integral). Neste aspecto, a norma foi limítrofe, ao ponderar a idade de 65 anos como ponto divisor e dissonante no que tange a acepção “pessoa idosa”, em descompasso das recomendações do artigo primeiro da Lei 10.741/2003.
Dessa sorte, percebemos uma série de limitações para aquela faixa etária, quando é difícil encontrar emprego, mormente para aqueles idosos que carecem de qualificação profissional[12]. Sabe-se que os programas de qualificação profissional são paliativos da mesma forma que a concessão do referido benefício, e em pouco acresce para o bem-estar do idoso.
No entanto, a depender da filosofia jurisprudencial da Justiça Federal e dos Tribunais Superiores, poderão ser abertos precedentes, no sentido de contemplar aquela faixa etária.
5. Aspectos jurídicos e condicionantes:
Para a concessão do BPC não é necessária a prévia contribuição do potencial beneficiário e desde que não tenha outra fonte de renda. A base do custeio do referido sistema é suportado pela União em detrimento dos menos favorecidos (artigo 12 da Lei 8.742 de 1993).
Nos termos dos artigos 20 e 21 da Lei 8.742 de 1993, o BPC é concedido em caráter personalíssimo, quer dizer, não pode ser transferido a herdeiros nem a dependentes, mesmo que seja cônjuge ou incapazes. Isso significa afirmar que o benefício pode encerrar em duas circunstâncias: uma pela morte do beneficiário; a outra, se os familiares tiverem condições de cuidar da pessoa idosa, já que, nos termos do Estatuto do Idoso, é dever primário da família tal encargo. Há inclusive a hipótese de o idoso passar a ter condições financeiras de auto-sustento, por rendas outras, a saber: pensão alimentícia, pensão previdenciária, etc. neste último caso, pela dicção do artigo 24, § 2º, da Lei 8742 de 1993, a Assistência Social passa a ter o dever de fomentar programas de reabilitação a pessoas idosas. Para a constatação de eventuais irregularidades, a revisão do benefício fica a cargo da Autarquia Previdenciária, bienalmente.
A Constituição Federal garante, em termos de prestação continuada, a quantia referente a um salário mínimo. Isso não significa dizer que o legislador ordinário não possa conceder uma quantia superior à prevista na Constituição Federal. Como bem destaca MARTINS[13], o STF já decidiu que não é inconstitucional a fixação do BPC na quantia mensal equivalente a um salário mínimo. Segundo a orientação mínima do governo, o salário mínimo tem por base a satisfação de necessidades básicas e elementares.
Pelo fato de o BPC não ter natureza salarial, não gera direito ao 13º salário.
6. Considerações finais:
O BPC é um instrumento de justiça social e de distribuição de renda àqueles que se encontrem na periclitante situação de contingência (fome, doença degenerativa, idade avançada etc.). Originalmente, foram definidos critérios frios e objetivos, mas que, segundo a jurisprudência, podem ser previstos outras formas de aferimento da miserabilidade do interessado. Destacamos, inclusive, as determinações previstas no artigo 34 do Estatuto do Idoso.
A política social de concessão do BPC pode ser traduzida como uma das expressões da solidariedade jurídica, que nada mais é uma evolução do termo fraternidade.
De um lado, as prescrições contidas no artigo 34 do Estatuto do Idoso progrediram no sentido de abranger idosos em situação de contingência financeira; do outro, ignorou as recomendações contidas no artigo primeiro da Lei 10.741/2003. Na verdade, de forma parcial, foi acobertada uma proteção atuarial ao já cambaleante sistema da Assistência Social.
Parte do interesse estatal, as recomendações contidas na Carta Política de 1988, mormente no que trata a promoção das metas a serem perseguidas nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Informações Sobre o Autor
Ricardo Régis Oliveira Veras
Advogado. Bacharel em Direito pela Uinversidade de Fortaleza/CE. Pós-graduando em Direito Administrativo do Trabalho e Processo Trabalhista pela Faculdade Ateneu.