Resumo: O presente artigo traz uma abordagem sobre os aspectos jurídicos constitucionais da criopreservação extracorpórea de células embrionárias humanas, buscando demonstrar os principais pontos controvertidos sobre a utilização das células embrionárias humanas nas pesquisas com células-tronco, contudo, faz-se necessário tecer sobre as principais correntes doutrinárias referentes ao inicio da vida humana, sobre conceito do que é pré-embrião e seus questionamentos, sobre o destino dos pré-embriões excedentes na reprodução humana assistida – in vitro e, por fim, sobre os aspectos constitucionais da Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/05), trabalhando com uma abordagem focada na justificativa da utilização da criopreservação como método essencial para a manutenção da vida humana, levando em consideração a dignidade da pessoal humana, o direito à vida e a teoria do direito de existir com dignidade e, por fim, uma abordagem volta aos pensamentos sobre o prisma da bioética.
palavras-chave: criopreservação, biotecnologia, células-tronco, embrião, in vitro, personalidade, biossegurança, reprodução, FIV e bioética.
1. Introdução
Com os recentes avanços da biotecnologia, observa-se uma real necessidade de um acompanhamento jurídico com a finalidade de legitimar ou limitar as suas atuações, pois, nem sempre a ciência consegue caminha em paralelo com a norma jurídica, surgindo daí vários pontos controvertidos em relação a sua atuação. A ciência aplica um princípio basilar do direito que diz que “tudo o que não é proibido, é permitido”, deixando apenas a ética como o principal elemento limitador de conduta humana.
No contexto ético, como elemento limitador, surgiu a resolução de número 1.358/92 da CFM, Conselho Federal de Medicina, que no uso das suas atribuições legais dada pela Lei de nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto 44.045, de 19 de julho de 1958, buscou como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos, as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, que no presente artigo é de grande valia, pois na falta de uma legislação específica o conselho buscou disciplinar a matéria motivado pelas grandes polêmicas ocasionadas dos avanços tecnológico da ciência, e em específico, na área da reprodução assistida.
As polêmicas vêm das grandes discussões sobre a criopreservação de células embrionárias humanas, a utilização de células-tronco dos embriões criopreservados para pesquisas científicas e a destinação dos seus excedentes nos processos de fertilização in vitro, ou seja, técnica usada para auxiliar na concepção e geração de embriões viáveis fora do ambiente uterino com o intuito da fertilização da mulher.
A Lei de Biossegurança (Lei º 11.105, de 24 de Março de 2005) surge no ordenamento jurídico influenciando diretamente as clínicas de fertilização in vitro, pois desta técnica é gerada uma grande quantidade de excedente embrionário que são obrigados a permanecerem congelados, por mais que os seus genitores não tenham mais interesse em mantê-los conservados. A lei dar uma destinação lógica ao excedente inviável ou conservado por mais de três anos, destinação essa voltada para a pesquisa com células-tronco com fins terapêuticos. A grande questão sobre usar ou não o embrião diz respeito ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana e é neste presente momento que se justifica o estudo dirigido deste artigo, pois os pontos polêmicos e fundamentais para a manutenção da vida necessitam de uma maior atenção da comunidade acadêmica.
Entorno dessas considerações será necessário tecer sobre as teorias acerca da origem da vida humana, diferenciando vida humana em sentido estrito da palavra para vida em sentido lato, ressaltando o conceito do que é pré-embrião. Não menos importante é o entendimento do que é criopreservação e qual a sua motivação para existir, observando os aspectos que justificam a utilização de tal procedimento.
2. Conceito de Criopreservação
Criopreservação, também chamado de crioconservação ou criobiologia, é uma técnica aplicada no congelamento de material orgânico, células, tecidos e, não muito distante, sistemas mais complexos como um órgão, em baixa temperatura, em média de cento e noventa e seis graus Celsius negativos (-196º), muito usado nas clínicas de reprodução humana, com a finalidade de preservar o material coletado viável para a utilização posterior, sem perder as propriedades biológicas, estrutura e funcionalidade, após o descongelamento. Essa técnica já é usada há quase cinqüenta anos pelas clínicas de reprodução humana assistida e na reprodução animal.
Conforme o entendimento de Maria Helena Diniz[1], reprodução humana assistida, fertilização humana assistida ou até mesmo concepção assistida são procedimentos que tem por finalidade unir, artificialmente, o gameta feminino com o gameta masculino, que, por sua vez, acontece na maioria dos casos de forma extracorpórea dando origem a um novo ser humano dotado de personalidade, sendo essa técnica usada para auxiliar na resolução dos problemas da infertilidade humana ou para futuros tratamentos gênicos.
O público deste procedimento é dos mais variados possíveis, tais como: pessoas que buscam apenas coletar material genético para uma possível necessidade de algum tratamento futuro, atualmente o material mais coletado é o cordão umbilical; pessoas que irão se submeter a tratamento de quimioterapia ou radioterapia devido à neoplasia maligna, tratamento esse que destrói os tecidos dos órgãos reprodutores comprometendo a fertilidade; pessoas que já apresentam problema de fertilidade e desejam através das técnicas de reprodução assistida a concepção de uma ser humano e também os doadores de banco de sêmen.
Com o avanço da biotecnologia e a utilização da criopreservação surgiu um novo dilema a ser discutido, pois, no processo de reprodução humana assistida é dado origem a dezenas de células embrionárias, que por sua vez não irão ser usado em todo o tratamento. As células são geradas em maior quantidade, justamente para aumentar à probabilidade de se conseguir células embrionárias viáveis a concepção uterina, contudo, em média, apenas três a quatro embriões precoces ou pré-embrião serão implantados[2].
Sobre a criopreservação de células embrionárias temos o trecho da resolução de número 1.358/92, da CFM, que autoriza a criopreservação e proíbe o descarte ou a destruição das células. Vale lembrar que essa mesma resolução preocupada com alguma lide futura, solicita de forma expressa um posicionamento dos cônjuges ou companheiros sobre o destino em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
“V – CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES
1 – As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões.
2 – O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.
3 – No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los[3]”.
Os pré-embriões excedentes ou excedentários gerado pela técnica de fertilização in vitro (FIV)[4], são em sua maioria, os grandes volumes de material orgânico destinado aos centros de criopreservação. Isso dado a resolução supracitado da CFM que em sua Sessão V – Criopreservação de Gametas ou Pré-Embriões – nº 2, determina que os excedentes devam ser criopreservado, não podendo ser descartados ou destruídos. Vale lembrar que a Lei de nº 11.105, de 24 de Março de 2005, Lei de Biossegurança, deu uma destinação científica para os pré-embriões, surgindo daí a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de nº 3510, impetrado pelo Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, contra o artigo 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança, com fundamentos no direito à vida e não sobre a vida.
Em resumo, o processo de criopreservação de células embrionárias humana, levou ao surgimento de novos questionamentos sobre o seu uso e descarte, sobre o inicio efetivo da vida humana e em qual momento o novo ser humano adquire personalidade jurídica dotada de direitos e garantias, ou pelo menos, em qual momento a ciência jurídica pode tutelar as expectativas de direito, já que o cultivo do embrião de forma extracorpóreo abre espaço para a teoria do pré-embrião no qual relativiza o estatuto da vida.
3. Teoria do Pré-Embrião
Essa teoria busca relativizar o estatuto da vida humana ao classificar que a união dos gametas sexuais ou qualquer outro método de clonagem, fora do ambiente corpóreo feminino, com o intuito de criar uma célula zigoto humano para a geração de uma nova espécie, não seria considerado um embrião na sua definição mais pura, e sim, um pré-embrião ou um embrião precoce, pois não seria considerando um individuo humano, mas apenas uma célula ou conjunto pequeno de células dotadas de características progenitoras humana, capazes de gerar um ou mais individuo da espécie humana, deste que colocada em ambiente propicio para o seu desenvolvimento[5].
Esse critério não está presente em nenhum tratado de biologia, e sim, em alguns documentos, tais como: Informe Warnock sobre Fertilização e Embriologia (Inquiry Warnock into Human Fertilisation and Bryology), publicado no Reino Unido em 1984; Relatório Walter, publicado do Estado de Vitória, na Austrália, também de 1984 e no Informe Palacios, publicado na Espanha em 1986[6].
Essa teoria, se adotada e reconhecida no âmbito jurídico, pode por fim a uma celeuma sobre a vida humana, pois a grande discussão a cerca das células-embrionárias, seria o seu uso nas pesquisas com células-tronco ou o seu descarte pelas clínicas de criopreservação. Será possível adotar que vida humana, dotada de expectativas de direitos e garantias, só irá surgir quando o embrião assim fosse possível a sua continuidade em meio corpóreo (útero) ou não, podendo transmutar do estado de embrião para feto e por fim no novo ser humano. Entende-se meio não corpóreo qualquer forma artificial que por ventura possa gerar um ser humano de forma artificial.
Por fim, vida passa a ser qualquer manifestação biológica da natureza, como por exemplo, uma única célula de hemácia no sangue é vida, e vida humana passa a ser apenas a manifestação de um complexo biológico que uma vez iniciado dará origem a um novo ser humano dotado de personalidade. Neste caso, essa mesma teoria adota o critério do décimo quarto dia, para diferencia o sentido de vida em seu sentido lato e da vida humana em seu sentido estrito, pois é no décimo quarto dia do desenvolvimento do zigoto que não é possível mais a formação de gêmeos monozigotos, o concepto perde a qualidade de totipotência e aparece as primeiras linhas primitiva de um novo ser humano.
Totipotente é o termo que define que uma célula não especializada tem grande capacidade de multiplicação e especialização, ou seja, uma capacidade funcional de gerar um indivíduo após o processo de desenvolvimento normal[7]. Essas células são capazes de se diferenciar em qualquer outra célula de um organismo mais complexo. As células-tronco podem ser encontradas em diversas fases do desenvolvimento humano, tais como: as células-tronco embrionárias, ditas como a principal célula de estudo para a compreensão e manipulação da diferenciação celular; as células-tronco umbilicais, retirada do feto; células-tronco adultas retiradas de diversos pontos do organismo adulto, como por exemplo, a medula óssea. E sobre essa capacidade funcional, totipotência, é que surgem novos questionamentos sobre a origem da vida.
4. Teorias Sobre a Origem da Vida Humana
Atualmente são três as teorias a cerca da origem da vida humana, são elas: Teoria Concepcionista, na qual entende que a vida humana se dar no momento da concepção entre os gametas; Teoria Genético-Desenvolvimentista, que compreende uma análise diferenciada de proteção entre as etapas de desenvolvimento de um novo ser humano e, por fim, a Teoria da Potencialidade do Embrião, que declara que a vida humana só existe depois de uma clara caracterização de signos humanos[8]. Faz-se necessário detalhar algumas informações sobre as etapas do desenvolvimento embrionário humano, pois todas as teorias partem de um marco embrionário.
“as etapas de desenvolvimento celular embrionário humano são: 1) fusão do ovócito com o espermatozóide, criando uma célula diplóide, dotada da capacidade de subdividi-se reiteradamente; 2) inicio da divisão célular (2-4 em 30 horas, 8 em 60 horas); 3) aparecimento da blástula e depois da mórula; 4) nidação ou fixação por meio de enzimas e diminutos prologamentos tentaculares no útero; 5) atividade contrátil (15 a 25 dias); 6) começo do sistema nervoso (30 dias); 7) córtex cerebral (aos três meses)[9]”.
4.1 Teoria Concepcionista
Para alguns doutrinadores a palavra fertilização e concepção expressam o mesmo sentido, contudo, é importante salientar que elas possuem significados e momentos distintos no processo da reprodução humana. Fertilização é o momento exato em que o espermatozóide ultrapassa a barreira do óvulo, momento esse anterior a fusão nuclear, pois a concepção se dar exatamente após esta, sendo a concepção etapa posterior a fertilização. É na concepção em que a célula passa a possuir características genéticas distintas dos seus progenitores e é neste momento em que a célula passa a possuir um único núcleo diplóide.
“Para otros autores, el embrión tiene la dignidad de cualquier ser humano completamente desarrollado. Defienden que la fecundación establece um nuevo individuo genético y un nuevo destino humano que a partir de ese momento comienza a expresarse a si mismo em sucesivas y graduales etapas de un proceso continuo[10].”
Em decorrência do processo de fertilização surgiu a Teoria da Singamia, que defende que antes da concepção já existem inúmeras reações químicas e que nesse momento o processo de individualização é iniciado, logo, é necessário a tutela deste a fertilização. Já no processo da concepção surgiu a Teoria da Cariogamia, que, por sua vez, relaciona o inicio da vida ao momento exato da fusão do gameta masculino com o feminino, pois, nesse estágio, já é possível identificar características genéticas que o diferencia de qualquer um dos seus progenitores e de qualquer outro ser humano existente, com ressalva para gêmeos fraternos, que possuem a mesma carga genética.
4.2 Teoria Genético-Desenvolvimentista
“[…]enquanto não for atingindo o estágio de desenvolvimento de oito células não é licito falar-se da existência de individualidade humana. Até que ocorra esse estágio, as divisões executadas nas células (clonagem) têm como resultado a geração de diversos indivíduos dotados de identificar características[11].”
As teorias genético-desenvolvimentistas relacionam o inicio da vida às diferentes etapas do desenvolvimento embrionário, adquirindo status jurídico à medida que o seu desenvolvimento transcorre no tempo observando alguns fatores capazes de individualizar a existência humana. Essa teoria evoluiu e ramificou em diversas outras teorias, tais como: a Teoria da Nidação, a Teoria da Formação Rudimentar do Sistema Nervoso Central, Teoria do Pré-Embrião, a Teoria da Gastrulação, Teoria da Viabilidade[12] dentre outras, contudo com menos repercussão no mundo acadêmico.
Importante adentrar sobre os aspectos mais relevantes a cerca das Teorias Genético-Desenvolvimentistas. Na Teoria da Nidação o marco para o inicio da vida humana é a fixação do embrião na parede uterina. Essa fixação se dar na fase do desenvolvimento do blastocisto, entre o quinto a sexto dia após a fecundação. Para essa teoria o embrião não teria condições de se desenvolver fora do útero materno, contudo é previsível que com o avanço da biotecnologia seja possível a continuidade da vida fora da cavidade uterina.
Para a Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso, a vida humana se origina no primeiro sinais de formação do córtex central, o que ocorre entre o décimo quinto dia e o quadragésimo dia da evolução embrionária, ou no primeiro sinal de atividade elétrica no cérebro, o que só ocorre a partir da oitava semana. Neste sentido tanto a Medicina quanto o Direito reconhecem de forma pacifica o fim da vida com base no término das atividades neurais, então, de forma análoga, é possível conceber o inicio da vida com o surgimento das atividades neurais pondo um fim nas discussões jurídicas a cerca da vida.
Na Teoria do Pré-Embrião não existe ser humano propriamente dito até o décimo quarto dia após a concepção, existindo apenas um conjunto de células com predisposição para gerar um ou mais indivíduos, não discutindo a origem da vida em sua essência, e logo após esse período surgem os primeiros traços primitivos de um novo ser humano. Não muito distante, existe a Teoria da Gastrulação, processo de desenvolvimento embrionário da gástrula até a néurula, na qual usa as características fisiológicas do embrião para designar um marco inicial da vida como um ser humano. Não menos importante a Teoria da Viabilidade tutela apenas os indivíduos que alcança uma maturidade para viver fora do útero materno.
4.3 Teoria da Pessoa Humana em Potencial
“Sob a ótica da teoria da pessoa humana em potencial, não é possível identificar totalmente o embrião humano com a pessoa humana, uma vez que ainda não é dotado de personalidade e, para tanto, o embrião teria que ser capaz de exercer direito e de contrair obrigações. Por outro lado, também não admite reduzir seu status a um mero aglomerado de células, uma vez que seu desenvolvimento destina-se, inelutavelmente, à formação de um ente humano[13].”
Essa teoria advoga que o embrião é uma pessoa em potencial, surgindo como alternativa para os dois grupos de teorias anteriormente citados, Teoria da Concepção e a Teoria Genético-Desenvolvimentista, mas é necessário criar um estatuto próprio e progressivo para tutelar as etapas do desenvolvimento embrionário concebendo direito e garantias proporcionais a etapa embrionária que o mesmo se encontra.
Considerações são feitas aos adeptos da teoria da pessoa humana em potencial, pois não parece ser uma solução original, e sim, uma mescla das teorias já abordadas nos capítulos anteriores, e, além disso, de nada adianta pregar uma ideologia nova sem antes mesmo ser classificado as fases embrionária à sua correspondente garantia e direito no âmbito jurídico, tornando assim, ineficaz e ineficiente para a solução das controvérsias a cerca da origem da vida humana, salvo se o legislador resolver preencher a lacuna da lei abrindo nova discussão a cerca desta teoria.
Transpassado os conceitos das teorias sobre a origem da vida humana, vale frisar que para o melhor entendimento dos aspectos jurídicos o termo pré-embrião (extracorpóreo) e embrião (corpóreo) terão igual valor, pois a diferenciação levaria a questionamento mais pormenorizado do tema, elevando o grau de artigo para um trabalho do escopo de monografia.
5. Aspectos Constitucionais da Criopreservação
Para adentrar sobre os aspectos jurídicos constitucionais da criopreservação extracorpóreos de células embrionárias, faz-se necessário tecer sobre alguns aspectos dos direitos fundamentais, dentre eles o respeito ao direito à vida e o direito à dignidade da pessoa humana. Importante frisar que a Carta Magna impõe proteção ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana e não “sobre” a vida ou “sobre” a dignidade. Lembrando que direitos fundamentais são elementos indispensáveis à pessoa humana, necessário para assegurar o mínimo possível para a sua existência de forma digna e igual.
Os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República do Brasil, de 1988, eu seu artigo 5º, protege o direito à vida sobre dois prismas importantes: uma corrente que defende a existência de uma posição jusnaturalista e outra que acredita apenas na evolução histórica da norma. Contudo, é importante ressaltar que a vida surge de uma ordem superior incontestável e inerente a vontade do ser humano, logo por mais que exista uma evolução histórica da norma, nada pode ser contra ao posicionamento da norma natural e superior, e com esse sentido o Poder Originário dotado de poder absoluto resolveu consagrá-la.
O direito à vida está relacionado diretamente à dignidade da pessoa humana, como a própria dignidade da pessoa humana está relacionada à vida, pois, não raro são as discussões se é possível reconhecer ou não a existência da vida sem dignidade, sendo em sua essência uma forma de relativizar a vida humana em função dos aspectos inerente à personalidade humana. Alexandre de Moraes cita em seus ensinamentos que:
“a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direito e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalista de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoal, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas constituindo-se no mínimo invulnerável que tudo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direito fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[14].”
E ainda:
“O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisitos à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-la em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de ser ter vida digna quando à subsistência[15]”.
Já para José Afonso da Silva, o direito à vida coexiste com o direito à existência, contudo, tal direito não foi consagrado de forma expressa na Carta Maior. Direito à existência é:
“Direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria[16].”
Não foram poucas as tentativas de incluir na Constituição o direito a uma existência digna, devido aos aspectos generosos da natureza moral e material ao redor desse conceito. É compreensivo a tentativa, já que serviria de fundamento, por exemplo, para o desligamento de aparelhos médicos que prolongasse a vida indigna de uma pessoa humana, contudo, em paralelo ao novo direito surgiria um processo discriminatório a todo ser humano que por ventura fosse concebido com alguma deficiência, por mais simples que fosse.
A grande questão em criopreservar o embrião é saber em qual momento será possível identificar a devida tutela à vida nas etapas do seu desenvolvimento como futura pessoa dotada de direito e deveres. A dignidade da pessoa humana como valor fundamental para o ordenamento jurídico faz com que todos os ramos do direito não apenas reconheça o direto à vida, mas necessariamente a reconheça com dignidade. Não ficando distante desse pensamento é que Cristiano Chaves frisa:
“Nesta trilha de raciocínio, importa destacar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988, foi a dignidade da pessoa humana, que como consectário, impões a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentas que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade[17].”
Correlacionando os princípios constitucionais à técnica da criopreservação é que se pode notar a importância da definição do início da vida humana no âmbito jurídico, pois, no âmbito biológico, a vida em sua essência mais pura é de tamanha complexidade que torna inviável a aplicabilidade de normas sem o uso de algum tipo de ficção jurídica, pois, a técnica da criopreservação mantém um pré-embrião conservado por um lapso temporal indeterminado, fazendo necessário um suporte nas normas infraconstitucionais para consubstanciar e diluir as controvérsias do tema.
6. Lei de Biossegurança (Lei º 11.105, de 24 de Março de 2005) versus Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de nº 3510
No dia 16 de Maio de 2005, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, materialmente manifestou um pedido de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, entendendo que a Lei ia de encontro a normas prevista na Constituição Federal e a princípios fundamentais para o ordenamento jurídico, impugnando a materialidade da lei em questão.
Do preceito normativo impugnado por Fonteles sobre a Lei de Biossegurança:
“Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997[18].”
De acordo com Fonteles, segue os textos constitucionais inobservados pelos preceitos retro transcritos:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
Fonteles defendeu em sua tese, para fundamentar a ADI, que a vida humana se dar na fertilização, teoria da fertilização, contudo, em um segundo momento das suas razões, ele faz menção a Teoria Concepcionista, demonstrando uma pequena confusão do momento exato da vida humana para a tutela no mundo jurídico brasileiro, exemplo disso temos em suas palavras: “que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação: o zigoto, gerado pelo encontro dos 23 cromossomos masculinos com os 23 cromossomos femininos; ”. Por sua vez, para minimizar interpretações errôneas sobre o seu ponto de vista, é que ele cita o Doutor Dalton Luiz de Paula Ramos[19] em sua fala:
“Os biólogos empregam diferentes termos – como por exemplo zigoto, embrião, feto, etc., para caracterizar diferentes etapas da evolução do óvulo fecundado. Todavia esses diferentes nomes não conferem diferentes dignidades a essas diversas etapas.
Mesmo não sendo possível distinguir nas fases iniciais os formatos humanos, nessa nova vida se encontra todas as informações, que se chama “código genético”, suficiente para que o embrião saiba como fazer para se desenvolver. Ninguém mais, nem mesmo a mãe, vai interferir nesse processo de ampliação do novo ser. A mãe por meio do seu corpo, vai oferecer a essa nova vida o ambiente adequado (o útero) e os nutrientes necessário. Mas é o embrião que administra a construção e administra a obra. Logo o embrião não é “da mãe”; ele tem vida própria. O embrião “está na mãe”, que o acolhe pois o ama.
Não se trata, então, de um simples amontoando de células, o embrião é vida humana.
A partir do momento que, alcançado maior tamanho e desenvolvimento físico, passamos a reconhecer aqueles formatos humanos (cabeça, tronco, mãos e braços, pernas e pés, etc), podemos chamar essa nova vida de “feto”. [20].”
Embora o Procurador-Geral da República tenha feito considerações sobre o inicio da vida humana e a importância de proteger um direito dito fundamental na ótica da Constituição da República, o mesmo abre espaço para reafirmar a importância do estudo de células embrionária humana gerada pelas técnicas de fertilização in vitro, pois de acordo com a citação do Doutor Herberte Praxedes as células embrionária mãe tem por natureza a capacidade de se diferenciar e especializar para qualquer outra célula do organismo humana, não acontecendo de forma natural com as células embrionárias adultas, conforme o texto abaixo:
“As células de células de um embrião humano de poucos dias são todas células-tronco (CTE), são pluripotenciais, tendo a capacidade de se auto-renovarem e de se diferenciarem em qualquer dos tecidos do corpo. As células-tronco adultas (CTA) são multipotenciais e têm também capacidade de se auto-renovarem e de se diferenciarem em vários, mas aparente não em todos, os tecidos do organismo. As CTA existem no organismo adulto em vários tecidos como a medula óssea, pele, tecido nervoso, e outros, e também são encontrado em grande concentração no sangue e no cordão umbilical[21].”
É notório que o material coletado, embriões excedentes ou excedentários, perderão em algum momento as suas características biológicas que lhe propiciam uma viabilidade para a procriação, logo, não existem justificativas plausíveis para manter o custo de um laboratório de fertilização obrigando a criopreservar o material que não terá mais nenhuma finalidade prática para a procriação, sendo que inúmeras vidas necessitam diretamente da evolução da ciência, em particular da biotecnologia, pois se essas células (células-tronco mãe) fossem doadas para pesquisa, é claro, de acordo com a Lei de Biossegurança, as chances de se obter um tratamento terapêutico é promissor. A lei, em uma interpretação positiva, busca de forma indireta garantir o direito à vida de forma digna como defende a nossa Carta Maior.
A ADIN 3510 obrigou o Supremo Tribunal Federal (STF) a se manifestar contra ou a favor da procedência da ação impetrada pelo Procurador-Geral da Republica, e junto com o STF a Advocacia Geral da Unidão (AGU) também declarou o seu posicionamento. De acordo com o advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, as pesquisas com células-tronco embrionárias devem ser defendidas devido aos seus promissores benefícios e que o Estado deve sempre agir sob a ótica prática para melhor atender a sociedade brasileira. “Temos que julgar [essa ação] do ponto de vista jurídico, a partir de uma ética da responsabilidade, analisando as conseqüências da decisão para a sociedade brasileira”, ressaltou.
Segundo Toffoli, nenhum direito é absoluto, muito menos os princípios constitucionais, em especifico o direito à vida. Toffoli questiona de forma inteligente que se embrião congelado tivesse direito à vida, o Estado teria que obrigar a mulher a conceber o embrião. Violando o direito ao planejamento familiar e, além disso, seria uma agressão a individualidade da mulher.
Por fim, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou a ADI de nº 3510, no dia 29 de Maio de 2008, julgando constitucional o artigo 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) que permite a realização pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. Votaram pela improcedência da ação os ministros Carlos Ayres Britto (relator), Ellen Gracie, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello. Igualmente favoráveis às pesquisas, porém com restrições, em diferentes níveis, votaram os ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Gilmar Mendes[22].
7. Conclusão
Este trabalho teve a pretensão de demonstrar os aspectos polêmicos e jurídicos, em especifico, os aspectos constitucionais sobre a criopreservação de células embrionárias humana, e em que momento se dar a tutela da vida respeitando a dignidade da pessoa humana, de acordo com a observância dos textos normativos para se manterem protegidas.
É de grande valia a autorização dada pelo Brasil para o uso de células embrionárias criopreservadas para serem usadas nas pesquisas e terapias com células-tronco. O Brasil passa a integrar o grupo seleto de países com capacidade de obter retorno cientifico e financeiro do advento dessas pesquisas. O sucesso da engenharia genética será a grande nova evolução da humanidade, pois dela será possível obter a cura de males que até então não são possíveis.
O legislador ao autorizar que as clínicas de fertilização in vitro doem as células embrionárias criopreservadas para pesquisas científicas com células-tronco, deu-lhe uma destinação mais nobre, pois, poderia o legislador, autorizar o descarte ou a destruição deste material. Desta forma contribuindo com o avanço da biotecnologia na busca de curas ou terapias para males que afligem a humanidade.
Todas as questões que envolvem embriões humanos são muito complexas e serão cada vez mais comuns as discussões sobre este, dado ao grande avanço da Medicina e da Biotecnologia, cabendo ao Direito limitar, reconhecer ou regular tais avanços. Tema esse que não será esgotado mesmo com a nova decisão da Suprema Corte sobre a improcedência da ADI de nº 3510.
O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisitos à existência, contudo, é de extrema valia que ele caminhe junto com a Dignidade da pessoal humana, princípios este de fundamental destaque em nossa Carta Maior, pois dele é possível garantir que o ser humano tenha o seu bem maior, a vida, com dignidade. De nada adianta ter vida sem o mínimo de dignidade, pois do contrário a vida não teria um mínimo de sentido.
Informações Sobre os Autores
Michel Clei Farias Silva
Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, Pós-Graduando em Processo Civil pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, Bacharel em Ciência da Computação com Ênfase em Análise de Sistema pela Universidade Salvador – UNIFACS
Bruna Christiane Dantas Campos
Docente do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Tecnologia e Ciências. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIFACS. Orientadora deste trabalho.