Resumo: Este artigo apresenta uma análise geral dos dispositivos constantes na Lei 9.605/98 bem como nos dispositivos constantes no Código Penal e legislações pertinentes. Destaca-se o registro de alguns julgados acerca de questões ligadas diretamente ao tema. Finalmente tece alguns comentários sobre as punições previstas na lei para aqueles que praticam atos ilícitos aos bens de relevância artística e cultural para a humanidade.
Palavras-chave: preservação, patrimônio, cultural.
Abstract: This article presents an overview of the devices contained in Law 9605/98 and the devices contained in the Penal Code and relevant laws. Of note was the record of some judgments about matters directly related to the topic. Finally a number of comments about the punishment prescribed by law for those who practice tort the property of artistic and cultural relevance to humanity.
Keywords: conservation, heritage, cultural.
Sumário: I. Introdução. II. Histórico da preservação do patrimônio cultural. III. Ambiente cultural e sua respectiva proteção penal. IV. Competência para processar e julgar. V. Objetividade jurídica. VI. Cidade de Goiás, patrimônio da humanidade. VII. Ação civil pública. VIII. Considerações finais. . Referências.
I. INTRODUÇÃO
Pode soar com certa estranheza para alguns a inclusão de crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural na Lei 9.605 de 12.02.98, uma vez que esta trata, segundo seu preâmbulo, de “sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”.
Para muitos leigos e até alguns conhecedores do assunto, o meio ambiente diz respeito tão somente à natureza, preferencialmente intocada, e os aglomerados urbanos flagrantes nos dias atuais seriam a sua negação, a sua destruição. Sabemos, portanto que esta afirmação não tem cunho científico e desde longa data o direito positivo brasileiro vem conceituando o meio ambiente de forma bastante abrangente.
Assim pela Lei 6.938/81 que trata diretamente da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, esta afirma em seu art. 3°, inc. I, que o meio ambiente se perfaz como sendo “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as formas.” Pois bem, exatamente por permitir, abrigar e reger a vida em todas as suas formas é que o meio ambiente abrange áreas naturais intocadas ou degradadas, mares e terras, áreas rurais e ainda urbanas, uma vez que em todos esses espaços encontramos formas de vida.
Estudos e estatísticas como o SENSO, nos revelam que cerca de 70% da população brasileira vive e exerce suas atividades no meio urbanístico, sendo assim, sob o ponto de vista humano, especialmente no Brasil, avulta a importância dos estudos do meio ambiente urbano.
Sabemos que as áreas naturais sempre tiveram uma atenção mais centralizada por parte do legislador, havendo inclusive uma maior conscientização da opinião pública a respeito, ficando as áreas urbanas e suas sérias questões de preservação meio que marginalizadas e incompreendidas.
Sendo assim, podemos afirmar que o patrimônio cultural brasileiro, ao contrário dos países mais desenvolvidos, nunca recebeu a atenção devida por parte das políticas públicas de nossos governantes que sempre se interessaram mais pela proteção de ecossistemas naturais, talvez visando mostrar diante da opinião pública internacional que estão realmente protegendo a Amazônia e a Mata Atlântica, mesmo que seja através de unidades de conservação criadas por decreto e que nunca saíram de fato do papel (…), mas este é um outro assunto que se afasta do escopo deste artigo. Na verdade podemos referenciar que o patrimônio cultural é um primo pobre do patrimônio natural, que por sua vez, infelizmente também não figura entre as grandes propriedades estatais.
Por estas e outras razões é que devemos saudar a inclusão de crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural nesta Lei 9.605/98 (arts. 62 a 65). Tal lembrança do legislador contribui em vários aspectos para o fortalecimento da proteção do meio ambiente urbano, especialmente no que tange ao patrimônio cultural, cuja defesa é enfatizada nos dois mencionados artigos que trataremos a seguir.
II – HISTÓRICO DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
O movimento de preservação do patrimônio cultural surgiu do ponto de vista mundial no início do século XIX na França, como fruto da Revolução Francesa, que nos seus momentos mais radicais levou à depredação e destruição de importantes bens arquitetônicos e artísticos ligados à Igreja ou à história do Ancien Regime. Originalmente, a preocupação preservacionista era voltada aos monumentos e objetos artísticos de valor excepcional, às vezes levando até mesmo à destruição de bens também relevantes, porém, de menor importância artística, para destaque daqueles mais notáveis. Isto explica, por exemplo, a situação atual da Catedral de Notre Dame de Paris, totalmente isolada, eis que as edificações de origem medieval que garantiam sua autêntica ambiência foram demolidas para lhe dar destaque no século passado, perdendo-se assim definitivamente um aspecto relevante do patrimônio cultural francês.
Este conceito de excepcionalidade do valor do bem cultural a ser preservado, norteou por longo tempo toda a legislação pertinente, inclusive a brasileira, como adiante veremos.
A Carta de Atenas, resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933 prescreve a salvaguarda de valores arquitetônicos de imóveis não apenas isolados como de conjuntos e também considera inevitável a demolição de casas insalubres ao redor de algum monumento histórico, mesmo com a destruição de uma ambiência secular. Entretanto, não se levanta a possibilidade de recuperação de imóveis antigos deteriorados para novos usos, prevendo tão-somente a sua destruição.
A Carta de Veneza, resultante do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos de 1964, constitui um marco decisivo na substituição do antigo conceito de excepcionalidade. Assim, seu art. 1º expressa que “a noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico”.
Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural; o art. 5º: “a conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é, portanto, desejável; mas não pode nem alterar a disposição ou a decoração dos edifícios (…)”; o art. 6º: “a conservação de um monumento implica a preservação de um esquema em sua escala (…)” e ainda o art. 7º: “o monumento é inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situar. Por isso, o deslocamento de todo o monumento ou de parte dele não pode ser tolerado, exceto quando a salvaguarda do monumento o exigir (…)”.
Atualmente o conceito de patrimônio cultural, que por muito tempo se direcionou apenas a bens móveis e imóveis, passou a expressar também valores imateriais, intangíveis, como formas de expressão, modos de criar, fazer e viver das coletividades humanas. Neste sentido temos a Declaração do México, resultante da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais organizada pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) no México em 1985, em seu item 23 menciona que “o patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas”.
Podemos afirmar que a evolução do conceito de patrimônio cultural deu-se na medida em que a ele foram sendo aplicados, com ênfase diversa no tempo, princípios inerentes a diferentes atividades científico-profissionais.
Sendo assim, no que tange ao conceito de excepcionalidade do valor, podemos vislumbrar uma maior influência da Arquitetura e da Crítica de Arte.
No conceito de valor documental do bem (Carta de Veneza), há uma prevalência da História. E, por fim, quanto à inclusão de bens imateriais, a influência maior é da sociologia e da antropologia.
III – AMBIENTE CULTURAL E SUA RESPECTIVA PROTEÇÃO PENAL
Sabemos a grande importância de se preservar a natureza para toda a humanidade, uma vez que ao longo de vários anos o homem a despreza patrocinando desmatamentos, queimadas, etc., visando tão somente o lucro excessivo, o que nos tempos de hoje já traz graves conseqüências para todos nós que sofremos com o desequilíbrio natural onde nos deparamos com fenômenos díspares como o efeito El Ninho que todo ano assola cidades inteiras em partes do mundo como resposta aos maus tratos que o homem vem semeando há tempos para com a natureza, razão pelo qual organismos Internacionais se reúnem constantemente para tentar frear tamanho abuso que afronta um bem comum.
Como a natureza que recebe grande destaque para manter-se preservada, vemos que é de suma importância também a preservação do patrimônio histórico, cultural, artístico, arqueológico e paisagístico. Neste sentido dispõe a nossa Carta Magna na seção de número II, que trata da cultura, mas precisamente em seu art. 216, que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens culturais imateriais (música, escultura, literatura) e materiais, de propriedade pública ou particular. Esses bens compreendem obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados a manifestações artístico-culturais, bem como conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, paleontológico, ecológico e científico.
A Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, aprovada pelo Dec. Legislativo 74 de 30-06-77 e posteriormente promulgada pelo Dec. 80.978 de 12-12- 1977 considerou como patrimônio cultural: “(a) os monumentos compreendendo as obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas da natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; (b) os conjuntos: compreendendo grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; (c) os lugares notáveis compreendendo as obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico”(art. 1°)
São considerados parte do patrimônio natural: “(a) os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações que tenham valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; (b) as formações geológicas e fisiológicas, bem como áreas nitidamente delimitadas que constituem o habitat de espécies animais e vegetais da ciência, da conservação ou da beleza natural” (art. 2°)
Os chamados bens de valor artístico são aqueles que possuem indubitavelmente tal característica, como quadros e esculturas excepcionais. Os bens de valor arqueológico acham-se mencionados pelo art. 2°da Lei 3.924 de 27-07-61. Podem ser mencionados os sambaquis, jazidas, cemitérios, sepulturas, inscrições rupestres e vestígios de ocupação pelos paleomeríndeos (grutas, abrigos, lapas). Temos por sambaquis os sítios localizados na costa, em lagoas ou rios dos litorais formadas por conchas acumuladas restos de cozinha, sepultamento de mortos e outros artefatos acumulados por povoações indígenas de épocas pré-históricas. Segundo o art. 5° qualquer mutilação ou destruição de tais bens, configura crime contra o patrimônio nacional. Já o art. 29 da referida lei, manda que se apliquem aos infratores os arts. 163 a 167 do Código Penal.
Podemos observar que a redação não é das mais eficientes, conforme nos ensina Ivete Senise Ferreira (Tutela Penal do Patrimônio cultural, p.111.): “com essa técnica confusa o legislador remete a tutela penal do patrimônio cultural para a órbita do Código Penal, onde então deverá ser ela buscada, evidentemente, entre os crimes patrimoniais, à falta de outros especificamente ambientais.” A conduta praticada e configurada como sendo delituosa importará em ofensa ao art. 165 do Código Penal.
É lamentável que as jazidas arqueológicas estejam sendo devastadas por saqueadores e pela ignorância popular, sendo assim, como tentativa de conter tal “desastre”, a Lei n°3.924/61, chamada lei dos sambaquis, procurou reprimir os abusos controlando o comércio e a exportação de objetos arqueológicos, sem muito sucesso.
O parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição Federal intenciona o poder público juntamente com a colaboração da comunidade a promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, fazendo-o por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e qualquer outra forma de acautelamento e devida preservação.
O parágrafo segundo do mesmo artigo da Lei Maior, incumbe à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitarem. Por fim, o parágrafo quarto esclarece que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.
Os bens culturais de grande relevo social como já vimos, mereceram a devida tutela jurídica. O patrimônio cultural nacional compõe-se dos bens culturais, históricos e artísticos, dispondo de um notável interesse, sejam eles produto da natureza ou do engenho humano, vinculado aos processos culturais e evolutivos de um povo.
Neste sentido, dispõe a Constituição Federal no seu art. 216, referindo-se ao fato de tratar-se de patrimônio cultural brasileiro, e conseqüentemente nos artigos 24, incisos VII e VIII, e 30, inciso IX, estes dividindo as atribuições entre a União, Estados e Municípios. Cuida-se, entretanto de campo do meio ambiente em que não há, ainda, por parte da população uma consciência desenvolvida, apurada, o que nos leva a afirmar que a situação ainda está muito distante do ideal a ser alcançado.
Sob o prisma da proteção penal, temos dois artigos que disciplinam diretamente a matéria. Ambos se acham previstos no Código Penal. A priori temos o artigo 165, que prevê o delito de dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico e, por conseguinte temos o artigo 166 que trata de local especialmente protegido.
No que tange ao artigo 165 da lei penal, podemos observar que pressupõe-se o tombamento de determinado bem por meio de ato do Poder Executivo, devendo inclusive ser feita a devida averbação no Registro Imobiliário, conforme dispõe o Dec. Lei 25, de 30-11-37 em seu artigo 13.
De maneira clara e objetiva, pode-se definir o tombamento como sendo um ato administrativo pelo qual o Poder Público declara o valor cultural de coisas móveis ou imóveis, inscrevendo-as no respectivo Livro de Tombo, sujeitando-as a um regime especial que impõe limitações ao exercício de propriedade, com a finalidade de preservá-las. Portanto, trata-se de ato ao mesmo tempo declaratório, já que declara um bem de valor cultural e constitutivo, vez que altera o seu regime jurídico, podendo o referido ato ser feito pelo órgão federal, estadual ou municipal.
Já com relação ao valor histórico, destina-se a norma a tutelar as coisas assim declaradas pelo Poder Público, ressaltando que não se faz necessário que o valor seja de âmbito nacional, uma vez que o mesmo pode ser de importância para o Estado e até mesmo para o Município. Dentre vários exemplos podemos citar o mais comum que é o de construções que retratam a história do Brasil, pouco importando seu atual estado de conservação.
IV – COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR
A competência para processar e julgar o delito em estudo divide-se entre a Justiça dos Estados e a Justiça Federal. Quando o delito atingir um patrimônio arqueológico será sempre da Justiça Federal a competência uma vez que se perfaz como sendo patrimônio da União Federal, conforme discorre o art. 20, X da Lei Maior. Não obstante, o Brasil aderiu à Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e natural, Paris França, aos 23-11-1972, aprovada pelo Decreto 80.978, de 12.12.1977, DO 14-12-1977. Aplica-se ao caso o art. 109, V, da Carta Magna.
Quando se tratar de bens de valor artístico ou histórico será preciso avaliar-se a existência ou não de interesse da União. Por exemplo, dano a construção localizada na região das Missões, no Rio Grande do Sul, de valor histórico nacional e internacional reconhecidos, atinge interesses da União e, por isso, a competência será da Justiça Federal. Já a lesão à coisa tombada por órgão estadual, diretamente relacionada com a história local e sem repercussão nacional, será da competência da Justiça Estadual.
Apesar de ser muito escasso jurisprudências neste tipo de crime, conseguimos ilustrar algumas, vejamos: decidiu o TRF da 4a Região na Ap. Crim. 95.04.17622-4, Rela. Juíza Tânia Escobar, j. 23.05.96, DJU de 05.05.96, que: “1- incabível o reconhecimento de dolo eventual quando o agente desconhecia o bem jurídico protegido, condição que afasta a realização do tipo penal denunciado; 2- O delito de dano exige a consciência e vontade de destruir, restando impunível a conduta culposa; 3- A prova judicializada não contém elementos para demonstrar que o acusado conhecia a existência de sítio arqueológico no local das obras sob sua responsabilidade; 4- A inexistência de marcos virtuais conforta as alegações do réu”.
No que concerne ao tipo previsto no art. 166 do estatuto repressivo, cumpre observar que a prática ilícita se perfaz em modificar o aspecto, a fisionomia, como uma coisa protegida por lei. Neste tipo delitual, a denúncia deve esclarecer qual a lei que protege o local (RT 542/305). A competência fixar-se-á pelas regras gerais de quem figura como sujeito passivo. Tendo em vista a escassez de julgados a respeito, registramos um acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Rel. Dês. Ernani Ribeiro, que diz: “Resta caracterizada a infração ao art. 166 do Diploma Repressivo, quando o agente, desautorizado pela autoridade competente e desrespeitando norma legal que protegia o local tombado pela Municipalidade, in casu, dunas, degenera e desfigura a paisagem, através da remoção de areia, terraplanagem, colocação de britas e construção de barraco”(JC 60/278).
V – OBJETIVIDADE JURÍDICA
Fazendo uma análise perfunctória dos artigos em estudo, podemos afirmar que o artigo 62 da Lei 9.605/98 tutela o ambiente em geral, abrangendo o patrimônio histórico, artístico e arqueológico, especialmente os arquivos, registros, museus, bibliotecas, pinacotecas instalações científicas e outros bens protegidos.
Concluímos que a construção do tipo penal se torna de primordial interesse nessa espécie de normas, como o instrumento necessário p/ assegurar a proteção que se pretende dispensar aos bens devidamente protegidos.
O sujeito apto a praticar o crime descrito é qualquer pessoa física ou jurídica, enquanto que o sujeito passivo será uma pessoa jurídica de direito público (União, Estado ou Município) e secundariamente o proprietário do bem de valor artístico.
Vemos que os verbos constantes do tipo, descritos alternativamente são: destruir, que de maneira minuciosa significa demolir, exterminar, desfazer; inutilizar, que se dá por meio de eliminar a utilidade, tornar imprestável e por fim, deteriorar, com o sentido de desfigurar, estragar, arruinar. Ressalte-se que estas últimas modalidades de conduta poderão ser realizadas de forma comissiva ou omissiva, quando determinado sujeito não preservar como deve o bem tombado.
O inciso I do artigo em comento tem como objetivo material determinado bem protegido por lei, ato administrativo ou por decisão judicial, como é o caso das cidades históricas de Ouro Preto situada no estado de Minas Gerais, São Luis do Paraitinga situada no estado de São Paulo, Parati situada no estado do Rio de Janeiro, Alcântara situada no estado do Maranhão e mais recentemente, a cidade de Goiás que não faz muito tempo foi considerada como sendo Patrimônio da Humanidade e hoje ostenta o referido título com justiça.
Inclui-se também no rol do inciso I, as igrejas barrocas, tais como a de São Francisco em Salvador as de Mariana em Ouro Preto, a igreja de Tiradentes, contendo obras do Aleijadinho e de Mestre Athaíde, e ainda a belíssima igreja situada na cidade de Pirenópolis em nosso estado.
Os bens reconhecidamente valorosos para a sociedade, que detém um valor artístico inestimável poderão e deverão ser expropriados ou tombados, sendo declarado por meio do chamado tombamento o seu devido valor cultural, sendo coisas móveis ou imóveis, inscrevendo-as conseqüentemente no Livro Tombo, sujeitando-as a um regime especial que impõe limitações ao exercício de propriedade, com único objetivo de preservá-las. O ato administrativo realizar-se-á pelo órgão federal (IPHAN) ou outro órgão estadual competente para tal ato.
O inciso II por sua vez especifica aquilo que merece proteção penal, como sendo o arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar.
No arquivo são guardados documentos de grande interesse. O registro se perfaz como sendo o livro onde são inscritas ocorrências públicas ou privadas importantes.
O museu é o local onde se reúnem obras de arte, peças, objetos antigos e outros bens de interesse cultural. A união, os Estados e muitos Municípios são dotados de museus, que servem de grande estímulo para os observadores e admiradores da história societária. Existem diversos tipos de museus, tais como os de quadros, de carros (França), de coches (Portugal), do relógio (Alemanha), de mobiliário e roupas antigas, de jóias, moedas, selos, de dança, dentre outros.
Temos por biblioteca o local onde estão reunidos livros e documentos públicos ou privados destinados à consulta da população em geral.
A chamada Pinacoteca se dá como sendo o museu reservado a exclusiva exposição de quadros.
Por fim, as instalações científicas destinam-se à pesquisa e ao estudo, como é o caso do Instituto Butantã que fora instituído em São Paulo no ano de 1901, especializado em pesquisas e soros contra veneno de cobras, aranhas e escorpiões, e que ao longo das últimas décadas contribui infinitamente para com a sociedade.
Temos aqui uma legítima norma penal em branco uma vez que o modelo legal prescrito será complementado por outra lei, ato administrativo ou decisão judicial que protege o bem tutelado, sempre se atendo a realização de perícias para a prova da materialidade cometida, haja vista que o crime sempre deixa vestígios.
Doutrinadores são unânimes ao afirmar que o crime ora descrito aperfeiçoa-se com a lesão efetiva do bem protegido admitindo-se a tentativa na modalidade dolosa e que o elemento subjetivo é a vontade livre e consciente de produzir dano em qualquer dos bens elencados no tipo penal, protegidos por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
Pois bem, vemos que o presente dispositivo tem por objetividade jurídica preservar o ambiente, sobretudo a integridade do local protegido por lei, que não poderá ser alterado sem autorização da autoridade competente, tendo por sujeito praticante do delito qualquer pessoa, incluindo-se o suposto proprietário do local alterado, e como legítimo sujeito passivo o estado e em um plano acessório, o proprietário do local protegido.
O verbo central do elemento tipificado na lei trata-se de alterar o aspecto ou determinada estrutura do local protegido por lei, ato administrativo ou ainda, decisão judicial.
Via de regra, a edificação ou local poderá ter assegurado sua integridade mediante o tombamento em virtude do seu reconhecido valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou ainda, monumental. Porém “esses locais especialmente protegidos, cuja alteração de aspecto é incriminada, podem ser os bens imóveis tombados, mencionados no Decreto-lei n. 25/37, mas também os sítios arqueológicos ou pré-históricos considerados monumentos pela Lei n. 3.924/61, como também os recursos florestais tutelados pela Lei n. 4.771/65 (Código Florestal)”. (FERREIRA, Ivete Senise. Ob. Cit. P. 113.)
O ato descrito no artigo supra mencionado é classificado como sendo dolo genérico representado pela vontade consciente e livre de alterar o aspecto ou a estrutura da edificação ou local, que sabe protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, sendo que a consumação aperfeiçoa-se do aspecto ou estrutura, da edificação ou local, sendo possível a tentativa de prática do crime.
Assim como no artigo analisado anteriormente, pelo fato de tratar-se de crime que deixa vestígios, faz-se necessário a perícia, podendo ainda ser aproveitado determinado exame realizado na ação civil pública.
VI – CIDADE DE GOIÁS, PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
No dia 27 de Julho do ano de 2001, a diretoria do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em uma rápida reunião na sede do organismo cultural da ONU, na cidade de Paris, referendou a candidatura da nossa prezada Vila Boa a Patrimônio da Humanidade. Quando a tão esperada notícia atravessou o tempo e chegou até aquela cidade, os sinos das igrejas históricas ali estabelecidas tocaram insistentemente dando as boas novas para primeira capital do estado e única cidade de todo o Centro-Oeste a ser tombada.
É de fato um grande feito, tão grande que decretou-se feriado naquele dia, e o melhor ainda estava por vir e veio, no último mês de novembro daquele ano, na cidade de Helsinque, na Finlândia proclamou-se a inclusão da cidade de Goiás no Patrimônio Mundial.
Este título representa grandes esforços por todos aqueles que se preocupam em continuar mantendo acessas as origens da antiguidade em plena modernidade, trazendo por conseqüência daquele reconhecimento, mais turistas e mais investimentos, tanto da iniciativa privada como da Municipal e Estadual.
Para se ter uma idéia do prestígio adquirido com o título de Patrimônio Histórico da Humanidade, a cidade também terá prioridade nos projetos do Ministério da Cultura que têm convênios com vários organismos nacionais e internacionais de financiamento, como o banco Mundial (Bird), dentre outros.
Em Editorial subscrito na revista da OAB de Goiás no mês de junho de 2001 pelo presidente daquela instituição à época, Dr. Felicíssimo Sena, registrou-se o seguinte: “Os becos, os casarões, os botecos, os calçamentos, as igrejas, os museus, os palácios, os chafarizes e até o morro do Canta Galo da nossa querida Goiás, desde 27/06/2001, passaram a integrar o rol das edificações e acidentes naturais mundialmente conhecidos e, conseqüentemente conservados para a posteridade, em face de sua integração no elenco de seis outras cidades brasileiras já consideradas como patrimônio da humanidade. Isso é importante, mas não é tudo. Essa conquista tem sabor maior do que reconhecimento da qualidade de nosso barroco/colonial cabloco ou da benevolência do Criador para com a moldura escultural de nossa Goiás. Ela representa a demonstração de que avançamos no contexto da realidade cultural brasileira, pois, enquanto os valores arquitetônicos reconhecidos e os acidentes geográficos considerados são produto do passado ou da boa vontade divina, o evidenciamento dessa realidade é o produto do trabalho de mulheres e de homens de hoje…” e termina dizendo: “ Vi uma Goiás jovem, de idéias novas, embasada na experiência dos que sabem fazer, na experiência dos que fizeram. Um beijo a minha querida e renovada Goiás.”
VII – AÇÃO CIVIL PÚBLICA
A ação civil pública, nos termos da Lei 7.347, de 24.07.1985, em seu artigo 2o prevê que será proposta no foro do local onde ocorrer o dano, cujo terá competência funcional para processar e julgar a causa.
A regra é bastante simples, não demandando maiores indagações, apenas uma ressalva que devemos nos atentar, pois quando figurar na qualidade de autora, ré, assistente ou opoente, a União Federal, Autarquia Federal ou Empresa Pública Federal, a competência, que é constitucional, sobrepõe-se à fixada pela lei ordinária.
Ressalte-se ainda que as Fundações Públicas Federais, apesar de não terem foro privilegiado na lei Maior, conforme o art. 109, I, também devem ser acionadas na Justiça Federal, uma vez que vem decidindo o STF que são elas verdadeiras autarquias e por isso têm privilégio de foro (RPG-LBA 05/60).
Entretanto, não sendo o local sede de Vara Federal, poderá a ação civil pública ser proposta na Justiça Estadual, com recurso para o Tribunal Federal competente. Tal qual nas Execuções Fiscais propostas pela União e Autarquias nas Comarcas interioranas ou nas ações de cunho previdenciário.
No entanto, essa orientação não pode ser considerada pacífica, pois muitos entendem que a competência da Justiça Federal é constitucional e não pode ser alterada por interpretação do art. 2o da Lei 7.347/85 que, explicitamente nada dispõe a respeito. Já se decidiu que a presença da União no feito e a amplitude regional do pedido impõem a competência da Justiça Federal (RTRF, 4a Reg.,14/280). Por fim, vale registrar que importantes ações civis públicas, envolvendo Estados do norte do país, vêm sendo propostas na Justiça Federal do Distrito Federal, sob o argumento de que a União pode ser acionada na capital federal.
Quanto a legitimidade ativa, dispõe o art. 5o da lei supra mencionada, com as devidas modificações feitas pela Lei 11.448/07, que cabe propor a ação civil pública o Ministério Público, Defensoria Pública, União, Estados, DF e Municípios, Autarquia, Empresas Públicas, Fundação ou Sociedade de Economia Mista, a Associação que concomitantemente: estiver constituída a pelo menos um ano nos termos da lei civil; inclua, entre as suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, político e paisagístico. No que se refere às associações, que também passaram a ter legitimidade, leciona Leme Machado (Ação Civil Pública, p. 27.) que “a sujeitou-as a dois requisitos: a) esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil”; e b) tenha entre suas “finalidades institucionais proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.
Sabemos que a ação civil pública destina-se à tutela de interesses difusos, portanto, de âmbito muito mais largo do que a de interesses individuais, sendo assim, de forma ágil e com ampla possibilidade de postulação, qualquer interessado poderá reclamar contra os danos causados ao meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (Lei 7.347 de 24.07.1985, art. 1o , remunerado pelo inciso III, pela Lei 10.157/2001), bastando que requeira ao Promotor Público da Comarca que diligencie para prevenir ou reprimir determinado dano evidentemente causado ao meio ambiente.
VIII – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o presente estudo, concluímos que a Lei 9.605 de 12.02.98 se perfaz como sendo uma iniciativa de grandeza sem precedentes na busca da sistematização do Direito Ambiental.
A diversidade das questões abrangidas, sem dúvida alguma exigiu um grande esforço para a sua elaboração, justificando destarte, a existência de algumas deficiências que poderão mais adiante ser corrigidas pelo legislador e ainda, pela jurisprudência.
Visto sob o prisma do patrimônio cultural, a lei está promovendo uma verdadeira reconciliação do Direito Criminal, que se encontrava seriamente defasado, tendo em vista os arcaicos e ineficazes dispositivos do Código Penal, com os mais modernos conceitos preservacionistas que foram vislumbrados pela Carta Magna de 1988.
Um dos grandiosos avanços foram a superação dos critérios da excepcionalidade e oficialismo impostos pelo Dec.-Lei 25/37, através da ampla possibilidade de reconhecimento do patrimônio cultural por meio de lei, ato administrativo ou decisão judicial. Também foi de suma importância a criação da modalidade culposa do art. 62, o qual, pelo que nos parece, será o eixo sobre o qual girará a tutela penal do patrimônio cultural a partir de agora.
Por fim, acreditamos que as penas previstas nos casos em tela são muito baixas, sendo os crimes considerados todos de pequeno potencial ofensivo ou sujeitos à suspensão condicional da pena, sem contar os prazos curtos de prescrição, o que nos parece muito pouco diante da relevância dos valores sociais ofendidos.
Informações Sobre o Autor
Euripedes Clementino Ribeiro Junior
Advogado. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na graduação PUC-GO e Faculdades Alves Faria ALFA e Pós-Graduação UniEvangélica e Faculdade Montes Belos. Especialista em Direito Penal UFG-GO. Mestre em Direito Relações Internacionais e Desenvolvimento PUC-GO