Resumo: Trata-se de uma reflexao acerca de uma possibilidade de aplicação da lógica da transcendência dos motivos determinantes – muito comum em sede de controle de constitucionalidade pelo STF – , no ambito do processo civil ordinário, em favor de avalista de cédula de crédito bancária submetida a discussão judicial. Sem pretender vulgarizar o processo de guarda da constituição, propoe uma ampliação do horizonte hermeneutico do princípio da transcendencia dos motivos determinantes, com vistas numa mais efetiva prestação jurisidicional.
Sumário: 1. Introdução. 2. A natureza jurídica do aval. 3. Considerações acerca da discussão judicial do contrato de financiamento bancário. 4. Aplicabilidade do princípio da trenscendencia dos motivos determinantes. 5. Conclusões. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho nasce como conseqüência de uma constatação proveniente do cotidiano e da vida prática na advocacia privada. Em muitos episódios, os profissionais do direito se deparam com seus clientes em seus escritórios atordoados com uma ameaça de constrição patrimonial, muitas das vezes com seus nomes restritos por cadastros de inadimplentes, em conseqüência de avais firmados em garantia de cédula bancária, sacad em razão de contrato de empréstimo bancário, mesmo quando o referido instrumento está submetido à apreciação do Poder Judiciário.
O cerne deste ensaio se volta, justamente, para esse fato específico, tomado em suas considerações reais e pragmáticas, com que se debatem os advogados todos os dias nas instâncias ordinárias da jurisdição brasileira, provocando uma cadeia de atos abusivos, ilícitos e desprovidos de qualquer razoabilidade jurídica, exercidos pelos detentores do poder econômico – as instituições financeiras.
Antes de adentrar propriamente na questão a ser desenvolvida, necessária se faz a digressão acerca de duas advertências intelectuais, com vistas na melhor compreensão dos limites conceituais e discursivos, por força de uma sincera honestidade intelectual e para que não haja qualquer desnecessário equívoco.
Primeiramente, esse não artigo possui qualquer pretensão científica, pois, apesar de não haver necessidade de se discutir aqui os padrões de cientificidade do Direito, assunto adequado para ser trabalhado em outro ensaio (muito mais longo e denso), é consenso na intelectualidade contemporânea que a humanidade tem muito a trilhar, ainda, no sentido de dar um conceito satisfatório à noção de ciência[1]. Desta forma, convém mencionar que, do ponto de vista da pretensa cientificidade outorgada ao campo do saber jurídico, qualquer posição teórica tomada como referência nesse sentido será muito mais uma escolha de natureza ideológica do que propriamente metodológica, não se adotando, portanto, nenhum posicionamento a respeito.
Em segundo lugar, ao propor uma aplicação da idéia de transcendência dos motivos determinantes, desenvolvida no âmbito do controle de constitucionalidade exercido pelo STF, após o delineamento das razões que embasam tal proposta, não se pretende, de modo algum, vulgarizar a sistemática processual de guarda da Constituição. Pelo contrário, entende-se pela necessária afirmação da diferença procedimental, pois se trata de uma ordem normativa fundamental para o sincrônico e regular funcionamento de todo o ordenamento.
Ao traçar um perfil argumentativo como o que se observará no decorrer do texto, o que se pretende é promover a compatibilização e utilização, pelo processo comum ordinário, de um instituto hermenêutico-processual utilizado no processo de controle de constitucionalidade, como garantia de uma limitação do exercício arbitrário do poder econômico pelas instituições bancárias no exercício de suas atividades diárias O que se pretende, por derradeiro, despido de qualquer pretensão reducionista, é dar uma maior efetividade aos mais elementares anseios práticos de justiça.
2 A NATUREZA JURÍDICA DO AVAL
O termo “aval” advém do árabe hawala ou hauãla, que significa delegação, mandato; posteriormente, para o italiano, avallo e, finalmente, para o francês, aval, a valior ou faire valoir, fazer valer a letra não paga[2]. Portanto, o aval é, do ponto de vista jurídico, instituto que proporciona uma modalidade de garantia do pagamento de título de crédito dada por terceiro. Não se confunde com o endosso nem com a fiança.
Não se confunde com o endosso porque neste o endossante se torna parte do título, proprietário do crédito que o transfere para outrem. É um repasse do crédito a ser adimplido. Por outro lado, não se confunde com a fiança porque esta é obrigação de garantia que gera uma responsabilidade de natureza subsidiária – o fiador responde apenas quando o afiançado é constituído em mora, não efetuando o pagamento devido. Ademais, sabe-se que a garantia oferecida pelo aval é de natureza exclusivamente cambial.
Outrossim, por meio do aval, o avalista torna-se co-devedor, em obrigação de caráter solidário, e o pagamento da obrigação pode ser imputado diretamente a ele, sem que o seja, anteriormente, contra o avalizado. É o aval, por isso, uma das formas do gênero caução, assim como a fiança.
Apesar da obrigação do avalista ser equiparada à do avalizado, por meio do instituto da solidariedade, está claro que não possuem a mesma natureza. Caracteriza-se como outra obrigação, diferente na sua essência, embora na produção de seus efeitos haja identidade. O avalista obriga-se de um modo diverso, mas responde da mesma maneira que o avalizado, sendo, neste sentido, comum a afirmação de que o aval corresponde a um novo saque, um novo aceite, um novo endosso.
Em virtude desta dupla situação, por um lado, a falsidade, a inexistência ou a nulidade da obrigação do avalizado não afeta a obrigação do avalista, não aproveitando a este nenhuma das defesas pessoais, diretas ou indiretas, que àquele possam legitimamente competir; por outro lado, o avalista obriga-se apenas como o avalizado, e nos mesmos termos que este, e por isso que quando garante ao endossante tem a seu favor a prescrição de um ano e libera-se com a falta do protesto. Quando, porém, garante ao sacador ou ao aceitante, não lhe aproveita a omissão do protesto e só lhe é lícito invocar a prescrição.
3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DISCUSSÃO JUDICIAL DO CONTRATO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO
O cerne da questão que se debate no presente artigo se circunscreve ao fato de que, no desenrolar das relações comerciais, financeiras e mercantis, no campo da materialidade fática, é muito comum se ter conhecimento de, por exemplo, um banco inscrever o nome do garantidor de dívida oriunda de financiamento bancário, por meio de contrato de aval, em cadastro de restrição creditícia, mesmo após a dívida estar sendo discutida em juízo e, ainda mais, ter decisão cautelar de suspensão dos efeitos do contrato deferida liminarmente.
Ocorre que, na maioria das vezes, sob o argumento retórico de que as decisões proferidas no seio de um processo somente possuem efeito vinculante entre as partes constitutivas dos pólos da lide – limites subjetivos –, os estabelecimentos bancários, por força da referida liminar judicial de suspensão do contrato, fazem cessar todos os atos de constrição financeira em relação ao avalizado, retirando, inclusive, seu nome dos cadastros de inadimplentes. Entretanto, ao mesmo tempo, passam a exercer imediatamente a mesma constrição sobre o avalista, incluindo até mesmo seu nome nos registros de devedores inadimplentes.
A questão, para ser delineada de forma técnica, ao contrário da rotineira ilegalidade reproduzida pelos bancos, é de uma clareza solar, facilmente extraída do art. 219 do CPC::
“Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição” (grifos nossos).
Ora, para começar, um dos efeitos mais conhecidos da Citação válida, até mesmo pelos calouros em Processo Civil nas faculdades, é o fato de FAZER LITIGIOSA A COISA.
Na análise trazida à baila, quando se fala que há litígio judicial instaurado pelo avalizado, com relação a contrato de financiamento bancário, pleiteando a revisão do contrato de financiamento, questão de natureza estritamente contábil, há que se consagrar, necessariamente, a constituição do instrumento contratual em coisa litigiosa.
Se o objeto do litígio é a possível onerosidade excessiva para o devedor, conseqüentemente, todo e qualquer litígio que envolva questionamento de valores a serem adimplidos desse contrato trará consigo o condão de transformar o instrumento em coisa litigiosa, nos estritos moldes do art. 219 do CPC.
Além disso, se há decisão cautelar, concedida em sede de liminar, que determina a suspensão de qualquer restrição creditícia do devedor avalizado, justamente por estar sendo discutida a existência do suposto débito, mais claro é o quanto afirmado acima: os efeitos da liminar são no sentido de promover a suspensão do contrato como um todo, até ulterior deliberação do Juizo, por meio da caracterização da litigiosidade do contrato sub judice.
4 APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA TRENSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES
A questão da chamada transcendência dos motivos determinantes se caracteriza por um exercício hermenêutico que permite, no âmbito da obrigatoriedade de um comando judicial, ser ultrapassada a parte dispositiva para, então, considerar as razões que motivam a decisão como parâmetro de cumprimento específico do imperativo exarado. Esse tipo de conceito, atualmente, é amplamente debatido e aparece muito claramente nas elevadas – quase divinas – discussões jurídicas travadas no âmbito do STF, em sede de controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos, quando da análise dos limites do efeito vinculante das referidas decisões.
Esse conceito implica numa compreensão do fenômeno decisório de forma mais ampla do que a tradição nos ensina, de modo que sua dimensão prática autoriza a aplicação do efeito vinculante aos fundamentos determinantes (ratio decidendi) de forma a projetá-lo para alem da parte dispositiva constante da decisão. Ou seja, no entendimento do STF, isso implica dizer que os princípios e os fundamentos determinantes sobre esta ou aquela interpretação constitucional devem servir de parâmetro de comando para todos os órgãos do Judiciário e Executivo, em todas as esferas[3].
O comando imperativo da decisão não alcança somente a sua parte dispositiva, mas também os chamados motivos determinantes dessa decisão, ou seja, os elementos de fundamentação que alicerçam o decisum, devendo ser observados por todos.
Nessa esteira de considerações, retornando ao problema discutido, a lógica de transcendência dos motivos de uma decisão pode ser perfeitamente aplicável na esfera processual ordinária, sem, com isso, ofender qualquer outro princípio legal, constitucional, implícito ou explícito do nosso ordenamento.
Veja-se, então o seguinte: se no âmbito do STF há a discussão quanto à vinculação dos efeitos de decisão proferida em sede de controle de constitucionalidade, cuja essência é o exercício hermenêutico de atribuição de comando imperativo a todas as razões lógico-argumentativas que se conduzem e se coadunam para a conclusão da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo, o que se pretende é limitar o máximo possível o grau de interpretação ou dubiedade que essa decisão possa dar no âmbito de sua observância como comando normativo.
Desse modo, o que se depreende é que a dinâmica desse exercício hermenêutico de transcendência nada mais é do que um artifício lógico-discursivo a que se atribui um efeito processual, nada importando, do ponto de vista procedimental, com o controle de constitucionalidade em si considerado, mas sim, com as dimensões políticas e institucionais que se quer abraçar com aquela decisão.
Transpondo a lógica desse exercício hermenêutico para o âmbito do Processo Civil ordinário, tem-se a constatação de que ele pode ser praticado, desde que com as devidas e cautelosas ressalvas, em muitas situações cotidianas do universo das lides processuais civis.
Se a idéia é dar uma força normativa mais ampla a uma decisão, impedindo-se a violação da constituição, ainda que por via oblíqua, com base em condutas semelhantes às previstas no texto declarado inconstitucional, a aplicação dessa lógica à demanda comum pode evitar uma série de transtornos, em razão do comum abuso do poder econômico praticado diariamente pelos bancos, inclusive poupando o aparelho judicial de desnecessárias demandas, atualmente tão abarrotado.
Para aclarar as considerações acima, volta-se ao exemplo do avalista de contrato de financiamento bancário. Constituindo-se este como devedor solidário e encontrando a solidariedade obrigacional respaldo no art. 264 do Código Civil, mister se faz a leitura desse dispositivo que assim declara:
“Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”.
Além disso, no concernente à solidariedade em sua modalidade estritamente passiva, é salutar o art. 275 do CC:
Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.
Por uma questão de lógica e com vistas numa efetiva prestação jurisdicional, considerando-se, ainda, uma plausível correlação fundada no direito material, se o credor tem direito de exigir de qualquer devedor solidário toda a dívida, em caso de um pedido judicial de revisão contratual feito por qualquer devedor solidário, necessariamente, há que ser aproveitado em favor de todos os devedores qualquer provimento cautelar suspensivo dos efeitos desse contrato, por força aplicação do exercício hermenêutico da transcendência dos motivos determinantes.
Desse modo, a autonomia cambial do título de crédito, neste ponto, merece certa dose de mitigação. Na realidade, apesar de ser considerado o aval uma garantia de ordem cambial e, por conta disso, particularmente ao aval, ser desvinculada da relação material que lhe deu ensejo, há que se promover uma consideração crítica a respeito desse virtual desligamento do título com relação à obrigação que lhe dá causa. Sabe-se que a virtualidade do aval é direcionada para a circulação do crédito de modo célere, mais condizente com o cotidiano frenético das práticas mercantis. Contudo, há que se cogitar a possibilidade de interseção material da responsabilidade civil no que tange à discussão judicial acerca da quitação do valor previsto no título.
Se, por exemplo, há a alegação de quitação do crédito levantada em sede processual e se ainda há necessidade de dilação probatória a esse respeito, não há o que se cogitar acerca da independência das relações cambiais, exclusivamente, pois a questão também envolve seu aspecto obrigacional quanto ao adimplemento regular do pacto firmado. A sistemática da circulação do crédito, a partir de uma autonomia cartular, perde o sentido imediato, pois toda a cadeia cambial decorrente do título se esvairá caso a sentença confirme a quitação. Com a declaração do pagamento, no vencimento, da quantia ali encartada, o título encerra sua finalidade, não podendo ser invocado novamente, sob pena de caracterizar o ilícitdo bis in idem.
Inafastavelmente, em caso de concessão de limiar em favor de devedor de cédula de crédito bancário, em cujo feito se discute justamente a possibilidade de quitação da dívida, há uma virtual – mas clara – transposição dos efeitos da decisão judicial liminarmente concedida, cujas conseqüências terão necessariamente o condão de abarcar, de forma indireta – mas imediata – todos os devedores solidários da dívida sub judice.
Haverá, portanto, a aplicação do princípio da transcendência dos motivos que ensejaram a concessão de liminar suspensiva do contrato de financiamento, promovendo a transposição dos limites objetivos dos efeitos do comando decisório proferido no processo, em favor do avalista, posto em desvantagem ante o poder de constrição econômica das entidades financeiras. Devem-se aproveitar seus efeitos em todos os termos para todos os co-devedores.
Não se defende aqui uma transcendência desarrazoada do decisum, nem tão pouco se promove qualquer questionamento acerca principio da vinculação inter-pars das decisões judiciais. Mas, tão somente, se pretende fixar um posicionamento absolutamente razoável e proporcional, fundado numa interpretação sistemático-teleológica de todo o ordenamento civil e processual civil brasileiro.
Essa justificativa encontra respaldo dentro do próprio ordenamento, quando prevê critérios formais que imprimem uma dinâmica absolutamente semelhante para a admissibilidade do Recurso Extraordinário e Recurso Especial. Essa constatação, de tal sorte, afastadas todas as conjecturas terminológicas e hermenêuticas, leva à conclusão de que tais modalidades recursais se diferenciam quanto á esfera do ordenamento que buscam proteger. O RO tem repercussão constitucional, sendo analisado pelo STF, enquanto o REsp tem seu âmbito de competência definido no STJ e visa a garantia da integridade do ordenamento infraconstitucional, mas, em ambos os casos, o que se pretende é a guarda máxima contra violações da constitucionalidade ou da legalidade das decisões judiciais.
Retornando à concretude do caso lançado à análise neste artigo, para aclarar, o contrato de financiamento sobre o qual se funda o aval está sub judice, sob a alegação de quitação do crédito ali constatnte. Desta feita, o próprio fundamento que solidariza juridicamente os devedores (o contrato de empréstimo) se encontra sob a modalidade de litígio! Desse modo, se a citação válida faz litigiosa a coisa, por conseqüência, a discussão acerca da própria existência do débito, enquanto corre em juízo, deve ser aproveitada a todos os devedores.
Uma indagação é imperativa diante de tais circunstancias: se, por exemplo, em sede de decisão de mérito, após perícia contábil, restar declarada a inexistência de débitos e a conseqüente quitação do título? De outra forma, se, ainda, o magistrado verificar que o devedor pagou além do devido e que lhe resta um crédito a ser levantado? Como fica, então, a cobrança promovida pelo banco contra o devedor solidário? Notadamente que esta é indiscutivelmente ilegal!
A “coisa litigiosa” (o contrato de financiamento) é, em última instância, o verdadeiro vínculo de solidariedade dos devedores e, se este instrumento tem seus efeitos suspensos para um, por decorrência, não poderá ser exigido dos demais devedores. Se há a suspensão judicial dos efeitos do contrato, há, necessariamente, a suspensão judicial da própria solidariedade, não podendo ser constrangido o devedor solidário, por ser avalista do mesmo contrato, com a inscrição do seu nome nos cadastros de inadimplentes.
Obviamente que não se está desconsiderando a possibilidade do exercício do direito de ação regressiva dado ao eventual prejudicado, mas o que se pretende é justamente dar efetividade e celeridade ao comando judicial, que por sua própria natureza, tem o poder de, por um lado, evitar o exercício arbitrário e ilegal do exercício do poder econômico e, do outro, impedir que demandas desnecessárias sejam ajuizadas para corrigir uma ilegalidade cuja existência pode ser indiscutivelmente evitada, abarrotando ainda mais o aparato judicial.
A lógica da sistemática jurídica atual permite essa postura, com fulcro na principiologia da celeridade, razoabilidade. Caso contrário, estar-se-ia afirmando que uma dívida poderia ter sua existência contestada em juízo e poderia ser, ao mesmo tempo, exigida simultaneamente, ambas consideradas como formas legítimas dentro do ordenamento, o que seria um absurdo! Estar-se-ia diante de uma clara antinomia jurídica.
E mais, se há liminar, no caso, para não restringir o nome do devedor contratante do financiamento, não se fundando esta concessão em oposição pessoal, deve ser interpretada em favor de todos os outros devedores. É ilógico pensar que um devedor fique livre de restrições, em razão de discussão sobre existência de débito contratual, sem que o seu co-devedor também esteja.
Seria um contra-senso evidente, pois, ao mesmo tempo em que um dos devedores teria seu nome liberado em razão da discussão que recai sobre a existência da dívida, o outro, solidário ao primeiro, teria seu nome restrito em razão da mesma dívida, cuja existência é questionada judicialmente. Como dito, resta clara, diante dessa hipótese, a antinomia normativa.
A análise da pacífica e remansosa jurisprudência é uníssona quanto à matéria e somente corrobora a tese aqui ventilada:
“RECURSOS ESPECIAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM ÓRGÃOS DE RESTRIÇÃO AO CRÉDITO. DANO MORAL. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. ALTERAÇÃO DO QUANTUM FIXADO. VALOR EXCESSIVO. NEGADO SEGUIMENTO AO PRIMEIRO RECURSO ESPECIAL. PARCIALMENTE CONHECIDO O SEGUNDO RECURSO ESPECIAL E, NA EXTENSÃO, PROVIDO. DECISÃO 1. Cuida-se de recursos especiais interpostos por Alexandro Degan Lira, com base no art. 105, inciso III, alínea “a”, do permissivo constitucional, e por Unibanco – União de Bancos Brasileiros S.A., com base no art. 105, inciso III, alínea “c”, da Carta Magna, ambos em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, o qual reformou a sentença para reduzir o valor da indenização, nos seguintes termos: APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – NEGATIVAÇÃO DO NOME DO AVALISTA – REFINANCIAMENTO DE DÍVIDA – PENDÊNCIA DA LIDE – CONSTRANGIMENTO ILEGAL – DANO MORAL CONFIGURADO – REDUÇÃO DO QUANTUM FIXADO – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO – APELAÇÃO ADESIVA – FIXAÇÃO DO VALOR RAZOÁVEL – RECURSO IMPROVIDO. 1 – A inscrição do nome do avalista no SERASA, importa em abuso de direito por parte da Instituição Bancária, isto porque, buscou através da negativação constranger o apelado a pagar o débito, muito embora tivesse conhecimento de que o contrato estava sub judice. 2 – In casu, o quantum fixado à título de dano moral deve ser reduzido para o equivalente a 10 (dez) vezes o valor do título, por encontrar-se perfeitamente razóavel e dentro dos padrões de justiça. Recurso parcialmente provido. 3 – No que tange ao Recurso Adesivo, visando a majoração do quantum indenizatório, firmo o entendimento de que a reparação por dano moral deve sempre ser moderadamente arbitrada, pois sua maior finalidade é evitar a perspectiva de lucro fácil e generoso, bem como o enriquecimento sem causa daquele que sofreu o dano. (fls. 169 a 177) (…)5. Ante o exposto, com fundamento no artigo 557, caput e §1°, do CPC, nego seguimento ao primeiro recurso especial e, quanto ao segundo, conheço parcialmente do recurso para, na extensão, dar-lhe provimento, a fim de reformar o acórdão impugnado no tocante à indenização por danos morais, condenando o Unibanco – União de Bancos do Brasil S.A. ao pagamento de R$23.250,00, atualizados monetariamente a partir desta data e acrescido de juros desde o evento danoso (Súmula n. 54 do STJ). 6. Publique-se. Intimem-se. RECURSO ESPECIAL Nº 782.367 – ES – RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO. Publicação de 20/03/09.” (Grifos nossos).
“(…) É majoritária a corrente do entendimento no sentido de que o devedor, enquanto aguarda o pronunciamento do Poder Judiciário sobre o valor da dívida exeqüenda, não deve sofrer o constrangimento de ter seu nome inscrito em cadastros restritivos de crédito, porquanto é um direito seu discutir o débito. A inclusão do nome nos serviços de proteção ao crédito dificulta a atividade comercial do devedor, investindo-se contra o princípio da menor onerosidade, consagrado no art. 620 do CPC, o qual determina que a execução deve ser feita de molde a não onerar mais o executado. Portanto, correta a decisão do magistrado em excluir o nome do autor e seus AVALISTAS. RECURSO ESPECIAL Nº 898.979 – MG – RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI. Publicado em 01/02/07.”
“DECISÃO Carlos Augusto de Albuquerque Moraes era sócio cotista da empresa DIMAVE LTDA e figurou como avalista de empréstimos efetuados pela empresa junto ao Banco Bradesco S/A. (…) DECIDO: O recorrente afirma que a inscrição do seu nome no SERASA estando a dívida sendo discutida em juízo, já configura o ato ilícito. O STJ já proclamou que a discussão judicial do débito impede a inclusão do nome do devedor no cadastro de proteção ao crédito, como comprova, entre outros, os seguintes precedentes: “PROCESSUAL CIVIL – CAUTELAR – SPC – SERASA I – Não há como assentir seja registrado nome de devedor inadimplente no SERASA ou no SPC, a respeito de débitos que estão sendo discutidos em ação judicial – Precedente do STJ. II – Recurso conhecido e provido.”(RESP 228.790/ZVEITER); “AÇÃO CAUTELAR. DÍVIDA EM JUÍZO. CADASTRO DE INADIMPLENTES. SERASA. SPC. INSCRIÇÃO. INADEQUAÇÃO. PRECEDENTES DO TRIBUNAL. RECURSO ACOLHIDO. – Nos termos da jurisprudência desta Corte, estando a dívida em juízo, inadequada em princípio a inscrição do devedor nos órgãos controladores de crédito”.(RESP 263546/SÁLVIO); “MEDIDA CAUTELAR. SERASA. PROTESTO. DÉBITO SUB JUDICE. Esta Corte tem decidido, reiteradamente, que a discussão judicial do débito impede o apontamento de informações restritivas quanto ao devedor junto aos órgãos de proteção ao crédito, bem como pela possibilidade da suspensão dos efeitos do protestos nessa hipótese. Liminar referendada.”(MC 5.265/CASTRO FILHO); RECURSO ESPECIAL Nº 264.854 – SE – RELATOR : MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS. Publicada em 16/11/04.” (Grifos nossos).
Por fim, se constata que a Máxima Corte da legalidade deste país já se manifesta desde tempos remotos sobre o tema no sentido defendido neste ensaio, qual seja, o de que se o contrato que fundamenta o aval está em xeque, a própria responsabilidade do avalista deve ser suspensa até a decisão acerca da validade ou não do contrato, assim como da existência da própria dívida discutida.
5 CONCLUSÕES
Assim, por todos os ângulos de análise acima explorados, resta bastante e clara evidenciada a absoluta abusividade e ilicitude da conduta praticada pelos bancos durante seus procedimentos de cobrança de dívidas aqui analisados, de modo que se faz necessária a aplicação do princípio da transcendência dos motivos determinantes de decisão interlocutória suspensiva dos efeitos de contrato de mútuo bancário em favor de avalista, tendo em vista que, por conseqüência da característica de litigiosidade a que está submetido o contrato, opera-se a suspensão do próprio vínculo de solidariedade.
Por fim, através da utilização racional desse principio, no âmbito da vida prática, o exercício da jurisdição se aproxima ainda mais da efetiva prestação jurisdicional e da máxima e célere garantia dos direitos do cidadão contemporâneo; não fere direitos fundamentais nem viola a sistemática processual consagrada, assim como, impõe necessário limite ao exercício do poder econômico e reafirma o mais elementar senso de Justiça.
Informações Sobre o Autor
Rafael Nogueira de Lucena
Advogado e Pós-Graduando em Direito Público. Atuação profissional com ênfase em Direito Civil, Tributário, Administrativo e Econômico