Ensino do direito: Entre o classismo e o ensino bancário

Resumo: Pretendemos com o presente artigo estabelecer uma discussão acerca do ensino do direito, tendo como norte teórico a pedagogia freiriana, tal qual postulada na Pedagogia do Oprimido. Para isso, num primeiro momento, explicitaremos alguns conceitos operacionais sobre o ensino do direito, focando-o no seu atual estágio. Logo depois tentaremos responder a um questionamento fundamental para o presente trabalho: é o estudante do direito um oprimido? Depois enfrentaremos o problema acerca daquele que deverá ser beneficiado pela libertação da opressão classista e ensino bancário do direito, que como veremos, não será somente o acadêmico de direito. Finalmente exporemos a necessidade de o ensino do direito ser praticado, mesmo que à custa de uma dogmática reificante, a partir de uma postura crítica, expressando, num primeiro momento, aquilo que entendemos por pensamento crítico, tomando como norte a filosofia de Michel Foucault.


Palavras-chave: Ensino Jurídico – Pedagogia do Oprimido – Pensamento Crítico


Sumário: 1. Introdução: O ensino do direito: entre o classismo e o ensino bancário. 2. É o estudante do direito um oprimido? 3. Libertação para quem? 4. Conclusões. 5. Referências.


Nada vos oferto além destas mortes de que me alimento

Caminhos não há mas os pés na grama os inventarão

Aqui se inicia uma viagem clara para a encantação

Fonte, flor em fogo, que é que nos espera por detrás da noite?

Nada vos sovino: com a minha incerteza vos ilumino. (Ferreira Gular)[1]

1. Introdução. O ensino do direito: entre o classismo e o ensino bancário.


Vivemos numa época (moderna? pós-moderna?) assaz interessante. As grandes promessas de libertação e vida digna feitas pelo Esclarecimento não se cumpriram, mas apesar disto, ou mesmo por conta disto, vivemos em um tempo de suspensão do pensamento crítico[2]. Se por medo ou vergonha – ou mesmo desfaçatez – não sabemos. Fato é que aquele que pretender ir de encontro à corrente de felicidades supérfluas, ganhos mesquinhos e individualismo será considerado, quando menos, um louco que deve ser ignorado, quando muito, um louco que deve ser silenciado.


Este período de suspensão do pensamento crítico – ou seria silenciamento? – é deletério à própria sociedade, entendida enquanto estrutura estruturada e estrutura estruturante de instituições, valores, práticas e atores sociais. Sendo o ensino do direito uma estrutura estruturante, repete ele os mesmos vícios que maculam a sociedade – estrutura estruturada –[3].


O ensino do direito do modo que tem sido praticado nas escolas de direito tem o condão de incutir nos acadêmicos todo um conjunto de valores classistas que fundam o próprio direito – entendido enquanto conjunto de normas, instituições, procedimentos etc – ocidental, gizado que está pelos valores próprios de uma sociedade capitalista, consumista, individualista, enfim, excludente.


Mas o que entendemos por estas duas expressões, ensino do direito e classismo?


Por ensino do direito entendemos o conjunto de processos (contra)pedagógicos, instituições de ensino e culturais, conjunto de valores e práticas que tendem à formação de acadêmicos aptos às várias profissões jurídicas. Já por classismo entendemos o conjunto de práticas sociais excludentes pelo qual uma determinada parcela da sociedade – os detentores dos meios de produção econômico-culturais – cria uma série de procedimentos, instituições, valores, princípios que tendem à manutenção desta mesma classe no poder de mando e governo sobre o resto da sociedade[4].


Sendo a sociedade, como já dito, uma estrutura estruturada sobre o classismo, o ensino do direito, estrutura estruturante, tende à formação de acadêmicos em que se incute a necessidade de perpetuarem em suas práticas profissionais os valores e princípios desta sociedade desigual.


De que modo isto é possível? Entendemos, seguindo Paulo Freire, que o modo mais adequado para isto ocorra é aquilo que ele denominava de ensino bancário.


Ao contrário do que o nome parece indicar, o ensino bancário não é sinônimo de ensino privado, mas sim de um processo pedagógico pelo qual se ensina o significado, mas não o significante, ou dito de outra forma, um processo pedagógico fundado na memorização de conceitos, sem que os mesmos conceitos sejam ensinados (é um ensino meramente formal, e não material, de conteúdo). Um ensino verborrágico e decorativo[5]:


Quanto mais analisamos as relações educadores-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.


Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica um sujeito – o narrador – e objetos pacientes, ouvintes – os educandos. […]


Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la” (negritos nossos, itálicos do autor)[6].


Exemplos não nos faltam: o espocar de cursos preparatórios para concursos públicos (IELF, Damásio etc), os resumos, manuais, “cursos” esquematizados, “apostilas”, uso reiterado e reificante da tecnologia (ao invés de ser um meio, é uma “bengala”, pois o professor meramente lê o que já está escrito na projeção, fazendo, depois, “ligeiras considerações”), o excesso de disciplinas dogmáticas e a quase ausência de disciplinas zetéticas (filosofia, sociologia, ciência política, antropologia, psicologia jurídica) etc. Formam-se bancariamente os acadêmicos do direito, e a razão disso não é outra coisa seão coibir – ou seria encobrir? – qualquer crítica à sociedade classista, passo necessário à libertação do homem.


2. É o estudante do direito um oprimido?


Paulo Freire se destacou no cenário nacional e internacional como sendo o criador de uma teoria pedagógica em tudo impar: a pedagogia da libertação. Entendia o pedagogo (na verdade, bacharel em direito pela Universidade de Recife!), que o meio próprio para a libertação do homem – considerando-se que em uma sociedade desigual sócio-econômico-culturalmente, a própria educação tende à perpetuação da exclusão social – seria ele ser o senhor de seu próprio conhecimento, o construtor de sua própria emancipação.


Isto não significa, no entanto, que a sua pedagogia se funda num individualismo. Muito pelo contrário! Fundava-se, isto sim, na alteridade que somente os excluídos são capazes de criar entre si, na medida em que estes, ao se conscientizarem de sua condição de explorados – sócio-econômico-culturalmente – têm condições de lutar pela sua libertação sócio-econômico-cultural.


O meio não poderia ser outro – veja-se, meio de libertação, não um fim em si mesmo -: a educação, entendida em sua obra como um processo de tomada de consciência de sua condição de explorado e da construção dos meios necessários à sua emancipação. Uma educação conscientizadora e de conteúdo, feita a partir da própria realidade do explorado-espoliado.


Assim, a pedagogia freiriana se funda em dois passos: um fenomenológico e outro existencialista[7].


No passo fenomenológico, o explorado toma consciência de ser (ser uma pessoa, ser capaz de aprender, ser um explorado etc). A isto Karl Jaspers denominava cisão: ao se tomar consciência de ser consciente, gera-se a consciência da consciência, isto é, a consciência ontológica de ser um ser, e não um objeto, uma coisa, um animal de trabalho[8] [9]. E é esta consciência da consciência, esta cisão, que deve ser a primeira etapa da educação libertadora.


A esta se segue o passo existencialista (ontológico), no qual a educação libertadora deverá gerar a condição necessária para que o homem se torne um ser-para-si, isto é, uma pessoa capaz de lutar pela sua emancipação sócio-econômico-cultural. Contudo, o ser-para-si freiriano não implica, mais uma vez, na geração de mais um individualista, mas sim de um ser-para-si enquanto ser-com, um ser-no-mundo, e que, enquanto tal, fundado na alteridade, na responsabilidade pelo outro, na luta em comum, busca, em comunidade, a sua libertação contra as opressões do patrão, seja ele o senhor do engenho, o político paternalista o professor universitário classista.


Estas duas etapas permitem ao homem tomar consciência do mundo-da-vida, ensejando-lhe uma apropriação desencantada, desmitificada, admirada. Gera a consciência de não somente estar no mundo, como também a consciência de ser parte do mundo, de constituí-lo, criá-lo, dar-lhe significado. O mundo é o que o homem cria conscientemente. As exclusões, espoliações, agressões, opressões não decorrem de um processo natural ou divino, mas sim uma opção consciente de uma classe social, que se apropriam dos meios de produção sócio-econômico-culturais. Enfim, cria a consciência de estar subjetivamente no mundo, e não enquanto objeto de pertencimento a alguém.[10]


Neste sentido afirmava Paulo Freire:


Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserl chama de “visões de fundo”, não se destacavam, “não estavam postos por si”.


Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão para eles.


O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se “destaca” e assume o caráter de problemas, portanto, de desafio.


A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens, e, como tal, de sua ação e de seu conhecimento”.[11]


A partir destas considerações, cabe perguntar: é o acadêmico de direito um oprimido? Caracterizado, como está, o ensino do direito como ensino classista e bancário, não se tem dúvida nenhuma de que sim.


Ademais, é oprimido porque, em não poucos casos, é levado ao Direito não pelo amor ao próximo, pela necessidade de ser útil em sua comunidade, em ser encantado com o homem e não com a lei, mas sim porque o curso de direito é mostrado como um caminho à ascensão social; porque o ensino do direito é bancário, e o acadêmico tem necessidade de decorar a lei, para passar em um concurso público, ele mesmo é levado a desprezar as disciplinas do ser, optando pelas do dever ser; porque neste processo bancário é levado a deixar de ser quem é, e de procurar ser quem deseja ser, para se tornar àquilo que a “sociedade”, o “examinador”, a “banca do concurso público” deseja que ele seja; porque, neste processo de transformação naquilo-que-o-outro-deseja, se estabelece uma dominação classista e excludente, e por isso injusta. Enfim, porque ele somente será “recebido” pelos dominadores se ele, enquanto dominado, se comprometer ontologicamente em ser um novo dominador, de se sentir acima e diferente de todos.


Neste sentido, averba Paulo Freire:


Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que se julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro […]


Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos […]


Na verdade, o que pretendem os opressores é “transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine.


Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que juntam toda uma ação social de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de “assistidos”. São casos individuais, meros “marginalizados”, que discrepam da fisionomia geral da sociedade. “Esta é boa, organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, são patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos”.[12]


Não temos nenhuma dúvida que os acadêmicos de direito, por pertencer a uma instituição de ensino que tem por finalidade a mera reprodução bancária de um direito encimado e fundado numa sociedade classista, é também ele um oprimido que é levado a ter em si mesmo o “opressor”[13] (têm-no hospedado), e que depois de formado – na verdade, formatado -, enquanto profissional do direito, ser um novo opressor, na maioria das vezes, inconscientemente, pois é levado a se portar e proteger o seu novo status social, bem como aqueles que dele participam.


3. Libertação para quem?


Se o acadêmico do direito é ele mesmo um oprimido, cabe pergunta: quem será beneficiado por um ensino do direito crítico-libertador?


É óbvio que não somente o acadêmico, mas também toda a sociedade que será beneficiada por sua atuação compromissada não com o direito posto – posto pela classe dominante, que domina os meios político-institucionais de elaboração das leis[14] – mas com a justiça e a emancipação social.


O acadêmico conscientizado do classismo e da necessidade de uma conduta crítica enquanto profissional do direito não aceitará, por exemplo, as “explicações” acerca da ineficácia do mandado de injunção, consoante “interpretação” do STF. Logrará ver que, apesar do fundamento principiológico – divisão de poderes, o que, em tese impediria ao poder judiciário de dar uma decisão de efeito concreto, e não meramente declaratório (como se o legislativo não tivesse consciência, e mesmo interesse, na não regulamentação de uma norma constitucional relativa ao exercício da nacionalidade, à soberania e à cidadania (art. 5º, LXXI da CRFB/88)) – passando a enxergar que, na verdade, tais decisões escamoteiam o interesse em tornar a Constituição ineficaz, ensejando a sua perda de eficácia semântica.


Só para argumentar, seja pelo princípio da unidade da constituição, seja pelo princípio da máxima efetividade bem como pelo princípio da concordância prática, o texto constitucional harmonizou a garantia do mandado de injunção com o princípio da separação de poderes, como seja, em se estabelecendo uma omissão legislativa que obste o gozo ou o exercício das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania ou à cidadania, pode o poder judiciário proferir decisão concretizadora, objetivando não somente assegurar o gozo daqueles direitos, mas também dar efetividade ao texto constitucional, já que o princípio da separação de poderes (como qualquer outro princípio constitucional) não é absoluto.


Verá, outrossim, que as diversas decisões de reintegração de posse que têm sido proferidas no Brasil em favor de proprietários de bens imóveis urbanos ou rurais, cujos donos não dão aplicação ao princípio da função social da propriedade, nada mais significam do que a tutela ilegítima de um “direito” que, constitucionalmente, não é absoluto, e que têm por finalidade última, excluir aqueles que efetivamente precisam de terra para produzir ou de uma casa para morar do gozo destes direitos umbilicalmente ligados à dignidade humana, favorecendo os especuladores do mercado imobiliário.


Simples (melhor dizendo, corriqueiros) estes exemplos, mas que guardam um enorme valor simbólico. Em ambos os casos, é o próprio Poder Judiciário que, descurando de sua função de guarda da Constituição – função esta que é repartida com toda a sociedade[15] – torna-se guarda dos interesses da classe dominante.


É importante notar que nenhum outro ramo das ciências sociais está tão ligado à eficácia de um regime democrático quanto o direito.


Pelo direito – entendido no duplo aspecto de ordenamento e ciência compreensiva deste ordenamento – se criam as condições formais para a prática democrática. Mas a democracia não se estabelece somente na forma, mas na vivência. Democracia somente é democracia quando transcende a norma e se torna vida vivida em liberdade, em comunidade, em igualdade, valores estes que ainda estão subjugados pela dominação classista e pelo ensino bancário do próprio direito.


Isto significa que estes elementos imprescindíveis a qualquer Estado Constitucional não se realizam pelo só fato de estarem positivados. Realizam-se, isto sim, a partir das desmitificações que vão descortinando os véus de ignorância que cobrem os olhos de uma multidão de homens e mulheres que se entendem unicamente como sujeitos de deveres, nunca de direitos. Por isso, qualquer teoria que queira impor um limite temporal à conquista da cidadania, ao exercício diuturno da democracia, ao estabelecimento de uma verdadeira república, é em si classista.


Por serem conquistas, realizam-se no dia a dia, no exercício da política, no consenso prudente que objetiva uma vida decente[16], ou como o afirma J. L. Aranguren: “A democracia não é um status no qual o povo possa comodamente instalar-se. É uma conquista ético-política de cada dia que só através de uma autocrítica sempre vigilante pode manter-se. É mais uma aspiração do que uma posse”.[17]


4. Conclusões


Verificado que o ensino do direito, do modo que tem sido praticado, é classista e bancário, impende perguntar: existe uma saída? Parece-nos que sim.


Para isso é necessário retornar a um conceito e a um modo de pensar e agir assaz utilizados no meio acadêmico, mas geralmente mal explicados, e que surgiram junto com a própria modernidade. Referimo-nos à crítica.


A modernidade surge, segundo Michel Foucault[18], por volta dos séculos XV e XVI, tendo como finalidade, a partir dos postulados do Esclarecimento (Iluminismo), propiciar a libertação do homem das garras da natureza, bem como dos fundamentos metafísicos do poder, estabelecendo, portanto, um modo de pensar racional e humanístico.


Contudo, com o surgir desta sociedade, surgiu também uma preocupação central no coração do poder político: como governar aos homens? Ao mesmo passo, surge uma outra modalidade de pensar e agir que se contrapõe àquela finalidade posta pelo poder político, e que é denominada de crítica.


Enquanto, conforme Foucault, o poder político se preocupava em como governar aos homens em um determinado Estado de População (gênese da biopolítica, entendida como aquele conjunto de atos governamentais que tem o condão de incluir a vida biológica em seus mínimos detalhes – nascimento, morte, sexo trabalho, família etc – nos cálculos e exercício do poder), as pessoas que nele viviam se contrapunham mediante um contra-argumento crítico, afirmando, “eu não que ser governado assim, deste modo, para esta finalidade, por estes meios”. A modernidade, então, tem duas posturas que se complementam: a governamentação[19] e a crítica.


O primeiro é o conjunto de saberes necessários ao exercício do governo. O segundo o conjunto de posturas individuais ou coletivas contra o modo de governar, ou suas finalidades etc, ou mais precisamente, a crítica não se levanta contra o ato de governar em si, mas sim em relação ao modo de seu exercício:


Eu quero dizer que, nessa grande inquietude em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar, localiza-se uma questão perpétua que seria: “como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles”; e se se dá a esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos indivíduos ao mesmo tempo, a inserção histórica e a amplitude que creio ter sido a sua, parece que se poderia colocar deste lado o que se chamaria atitude crítica. Em face, ou como contra-partida, ou antes como parceiro e adversário ao mesmo tempo das artes de governar, como maneira de suspeitar dele, de o recusar, de o limitar, de lhe encontrar uma justa medida, de os transformar, de procurar escapar a essas artes de governar ou, em todo caso, deslocá-lo, a título de reticência essencial, mas também e por aí mesmo como linha de desenvolvimento das artes de governar, teria tido qualquer coisa nascida na Europa nesse momento, uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a esse preço”.[20]


É neste sentido que averbamos que, ao se suspender (silenciar!) o pensamento crítico, o que se silencia é a própria possibilidade de emancipação do homem.


Ora, o ensino do direito somente será emancipatório se se tornar crítico, ousar indicar os erros e desmandos na elaboração das leis, no desrespeito à Constituição, no descumprimento voluntário das finalidades republicanas.


Contudo, o ensino crítico não deve ser pura negatividade – só indicar os erros -, mas sim dialético, vale dizer, é crítico porque, ao se afirmar que se não pretende ser governado de um modo, indica, ato contínuo, o modo cultural-constitucionalmente legítimo de se exercer o governo. Não basta acusar. É necessário indicar caminhos emancipatórios, dentre os quais se destacam: a) o respeito aos direitos humanos; b) o cumprimento – concretização – da Constituição; e c) a luta pelo estabelecimento de um regime verdadeiramente democrático – o que implica, por obviedade, no cumprimento dos dois itens anteriores.


Neste sentido, é necessário resgatar duas posturas importantíssimas na obra freiriana, a saber: a) o profetismo, entendido como a previsão de um futuro melhor, em que o homem seja efetivamente livre (que na doutrina de Boaventura de Souza Santos é denominada de utopia, não no sentido de irrealizabilidade, mas no sentido profético mesmo, de desejar que assim o seja[21]), e b) esperança, mas não no sentido imobilista, mas sim firmado na práxis que luta pela implementação daquele “bem viver” livre.


Em suas palavras:


“[…] utopia como a unidade inquebrantável entre a denúncia (crítica) e o anúncio (profecia). Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico”[22].


Resgatar a crítica na ciência e no ensino do direito é condição necessária à emancipação do acadêmico e da própria sociedade. Lograr superar o classismo e o ensino bancário é, portanto, o primeiro objetivo de uma ciência do direito que se queira democrática.


Assim, como primeira lição, ouçamos o que Friedrich Müller nos afirma sob o real significado da expressão povo:


Não se perguntou aqui o que significa a palavra povo, mas como ela é utilizada onde e por quem. No discurso do direito. Ali: em textos de normas, sobretudo constitucionais, muito raramente ainda em textos de normas legais. Por vocês: os constituintes, os legisladores, os guardiões da lei. Por que vocês utilizam essa palavra aí? Para gritar pelo alto-falante: circular, circular, não há nada a descobrir aqui! A palavra povo não é utilizada por vocês para dizer quem seria esse povo, afinal de contas. O povo é pressuposto para que vocês possam falar de outra coisa, mais importante: NÓS SOMOS LEGÍTIMOS! Com a expressão POVO, que está à mão [zuhanden] de vocês, com esse instrumento objetual [zeug] no sentido de São Martinho, vocês apontam para o peito estufado de heróis que vocês pretendem ser: populus lo volt. São vocês os que significam isso; e esse é então o significado de povo. O discurso jurídico procede assim, o discurso científico não se incomodou. Aqui se tenta deixar-se incomodar. O resultado não são quatro povos nem quatro conceitos de povo. São três espécies de gesticulação, com as quais vocês lidam com o povo, ainda no plano da linguagem. Mas como nada mais é significado, isso também acaba sendo significativo. A quarta espécie de gesticulação, a simples, vai aqui como lembrete para vocês, ainda que desagradável [sei euch hinter den Spiegel gesteckt]: todas as pessoas que vivem aqui”.[23](destaques no original)


A lição de Müller está muito próxima da de Freire, pois o mesmo afirmou: “Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a que continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco”[24].


 


5. Referências

AULETE, Caudas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, Verbete: decorar.

BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, trd. , São Paulo: Bertrand Brasil, 1998.

CHRISTENSEN, Ralf. Introdução a “Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia”, de Friedrich Müller, São Paulo: Max Limonad, 1998, trd. Peter Neumann.

FILHO, Roberto Lyra. O que é direito, 17 ed., São Paulo: Brasiliense, 1995 (Coleção Primeiros Passos).

FOUCAULT, Michel. O que é a Crítica? (Crítica e Aufklärung), tradução de Gabriela Lafetá Borges e revisão de Wanderson Flor do Nascimento: in “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 – 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978).

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 29 ed., São Paulo: Paz e Terra, 1999.

__________. Pedagogia da autononia, 26 ed., São Paulo: Paz e Terra, 2003.

GULLAR, Ferreira. Poemas Escolhidos, São Paulo: Ediouro, 1989.

HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, trd. Héctor Fix-Ferro, Cidad do México: UNAM, 2001.

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignididade Humana e Moralidade Democrática, Brasília: Brasília Jurídica, 2001.

SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, 3 ed., São Paulo: Cortez, 2001.

VEIGA-NETO, Alfredo. Governo ou Governamento? in http://www.ufrgs.br/faced/alfredo, acessado em 16 de março de 2006, 17:38:02.

 

Notas:

[1] GULLAR, Ferreira. Poemas Escolhidos, São Paulo: Ediouro, 1989, p. 13.

[2] SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, 3 ed., São Paulo: Cortez, 2001.

[3] BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, trd. , São Paulo: Bertrand Brasil, 1998, pp. 9-15.

[4] FILHO, Roberto Lyra. O que é direito, 17 ed., São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 7-12 (Coleção Primeiros Passos).

[5] (N.A.) Embora a expressão decorar, no seu étimo, tenha um significado diverso daquele em que se o utiliza hodiernamente, na medida em que decorar provêm do latim (decorare: de+cor+ar), significando, originariamente, guardar no coração. Vide AULETE, Caudas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, Verbete: decorar.

[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 29 ed., São Paulo: Paz e Terra, p. 57.

[7] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Libertação, pp. 62-68.

[8] “The reflexions of consciousness upon itself is a self-evident and marvelous as is its intencionality. I am at myself; I am both onne and and twofold. I do not exist as thing, but in a inner split, as my own object, and thus in motion and inner unrest”. JASPERS, Karl. Philosophy, vol. 1, The University of Chicago Press, 1969, p. 50, apud, FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 67.

[9] Paulo Freire, acerca deste tema, narra uma afirmação feita pelos camponeses quando se comparam a um animal: “Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhece alguma, é em vantagem do animal. “É mais livre do que nós”, dizem”. Op. cit., p. 50.

[10] FREIRE,Pedagogia do Oprimido, pp. 70-72..

[11] Ibidem, p. 71.

[12] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, pp. 58/60.

[13] Op. cit., p. 48.

[14] FILHO, Roberto Lyra. O que é direito, 17 ed., São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 49-65 (Coleção Primeiros Passos).

[15] “Na democracia cívica pluralista, todos os cidadãos são “guardiões” da Constituição. O que as antigas teorias do Estado concediam somente como privilégio e predicado a um presidente, ou mais recentemente, ao tribunal constitucional, já não resulta ser, a partir da perspectiva da teoria constitucional em sua atual etapa evolutiva, o monopólio de somente uma pessoa, mas sim assunto de todos: todos os cidadãos e grupos, que, por exemplo, interpõem recursos constitucionais, todos os órgãos estatais, que estão sujeitos à Constituição, têm que “defender” a Constituição no marco de suas competências, e não somente isso, como também continuar a desenvolve-la”. HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional, trd. Héctor Fix-Ferro, Cidad do México: UNAM, 2001, p. 286.

[16] A respeito, vide SANTOS, Boaventura de Souza, op. cit., p. 74.

[17] Apud RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignididade Humana e Moralidade Democrática, Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 3.

[18] FOUCAULT, Michel. O que é a Crítica? (Crítica e Aufklärung), tradução de Gabriela Lafetá Borges e revisão de Wanderson Flor do Nascimento: in “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 – 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978).

[19] “O que se deu através do projeto de explicar a gênese do Estado a partir das práticas de governo, da gestão governamental, ou da ‘governa­mentalidade’, que têm na população seu objeto, na economia seu saber mais importante e nos dispositivos de segurança seus mecanismos básicos”. Esta passagem é particularmente útil na medida em que mostra a superposição entre “práticas de governo”, “gestão governamental” e “governamentalidade”, nenhuma delas relativa a governo enquanto instância central no Estado moderno. Aí, governamental e governa­mentalidade parecem clamar por governamento e não por governo… Em suma: o que está grafado como “práticas de governo” não são ações tomadas por um staff que ocupa uma posição central no Estado, mas são ações distribuídas microscopicamente pelo tecido social; por isso, soa bem mais claro falarmos em “práticas de governamento”. VEIGA-NETO, Alfredo. Governo ou Governamento? in http://www.ufrgs.br/faced/alfredo, acessado em 16 de março de 2006, 17:38:02.

[20] FOUCAULT, Michel, op. cit.

[21] SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, 3 ed., São Paulo: Cortez, 2001.

[22] FREIRE, Paulo, op. cit., p. 73.

[23] Apud CHRISTENSEN, Ralf. Introdução a “Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia”, de Friedrich Müller, São Paulo: Max Limonad, 1998, trd. Peter Neumann, pp. 44/45.

[24] FREIRE, Paulo, op. cit., 48.


Informações Sobre o Autor

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia, turma de 1996. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina


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