A objetividade jurídica nos crimes contra a dignidade sexual

Sob a epígrafe “Dos crimes contra os costumes”, tutelava o Código Penal a moral social sob o ponto de vista sexual. A lei penal não interferia nas relações sexuais normais dos indivíduos, mas reprimia as condutas anormais consideradas graves que afetassem a moral média da sociedade.


A proteção dos bons costumes, portanto, sobrelevava em face de outros interesses penais juridicamente relevantes como a liberdade sexual. Era o reflexo de uma sociedade patriarcal e pautada por valores éticos-sociais que primava, sobretudo, pela moralidade sexual e seus reflexos na organização da família, menoscabando, isto é, deixando para um segundo plano, a tutela dos direitos fundamentais do indivíduo.


Com efeito, à época em que foi editado o Decreto-Lei n. 2.848 (Código Penal),  em 7 de dezembro de 1940, não havia espaço para a flexibilização dos padrões da moral sexual, de forma que a sua proteção assumia especial relevo em face dos direitos individuais


O Título VI, com as modificações operadas pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, passou a tratar dos delitos contra a dignidade sexual, substituindo a expressão “Dos crimes contra os costumes”. Mudou-se, portanto, o foco da proteção jurídica. Não se tem em vista, agora, em primeiro plano, a moral média da sociedade, o resguardo dos bons costumes, isto é, o interesse de terceiros, como bem mais relevante a ser protegido, mas a tutela da dignidade do indivíduo, sob o ponto de vista sexual.


Superando, assim, a vetusta denominação “crimes contra os costumes”, a “dignidade sexual” passou a ser o pilar da proteção jurídica visada pelos delitos que se encontram inseridos no Título VI, do Código Penal, em consonância com perfil do Estado Democrático de Direito e com o que foi proclamado pelos Documentos Internacionais.


A evolução da sociedade, portanto, passou a exigir, em consonância com a Constituição Federal de 1988, a formulação de uma nova concepção do objeto jurídico do crime, de forma que assuma especial importância não os padrões éticos-sociais, os bons costumes, mas a dignidade do indivíduo que é colocada em risco.


Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 1º, caput, definiu o perfil político-constitucional do Brasil como o de um Estado Democrático de Direito. Trata-se do mais importante dispositivo da Carta de 1988, pois dele decorrem todos os princípios fundamentais de nosso Estado.                        


Verifica-se o Estado Democrático de Direito não apenas pela proclamação formal da igualdade entre todos os homens, mas pela imposição de metas e deveres quanto à construção de uma sociedade livre,  justa e solidária; pela garantia do desenvolvimento nacional; pela erradicação da pobreza e da marginalização; pela redução das desigualdades sociais e regionais; pela promoção do bem comum; pelo combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, incisos I a IV); pelo pluralismo político e liberdade de expressão das idéias; pelo resgate da cidadania, pela afirmação do povo como fonte única do poder e, principalmente, pelo respeito inarredável da dignidade humana (art. 1º, inciso III).


A tutela da dignidade sexual, portanto, deflue do princípio da dignidade humana, que se irradia sobre todo o sistema jurídico e possui inúmeros significados e incidências. Isto porque o valor à vida humana, como pedra angular do ordenamento jurídico, deve nortear a atuação do intérprete e aplicador do direito, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva possibilitar a concretização desse ideal no processo judicial. Na realidade, o princípio da dignidade humana como valor moral e espiritual inerente à pessoa, não foi criado nem construído pela ciência, constituindo “um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais”[1].  Na verdade, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana é uma referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais inerentes à espécie humana, ou seja, daqueles direitos que visam a garantir o conforto existencial das pessoas, protegendo-as de sofrimentos evitáveis na esfera social[2].  Como valor universal e inerente ao ser humano, a sua normatização extapola as fronteiras territoriais, passando a ser um postulado do Direito Internacional, tendo como principal instrumento a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao assinalar, em seu artigo 1º que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (destacamos).  De igual modo, a tutela da dignidade humana se encontra, igualmente, plasmada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de dezembro de 1969, do qual o Brasil é seu signatário, tendo preceituado em artigo 11 que: “1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”.


Dessa feita, a tutela da dignidade sexual, no caso, esta diretamente ligada à liberdade de autodeterminação sexual da vítima, à sua preservação no aspecto psicológico, moral e físico, de forma a manter íntegra a sua personalidade. Portanto, é a sua liberdade sexual, sua integridade física, sua vida ou sua honra que estão sendo ofendidas.


A par da mudança de foco na proteção jurídica, indaga-se: Os bons costumes ou a moralidade sexual continuam a ser objeto da tutela penal?


Tendo em vista que o bem resguardado decorre dos componentes do tipo penal que podem lesar outros bens, não é porque o legislador adotou a nomenclatura “crimes contra a dignidade sexual”, que outros interesses jurídicos não poderão ser objeto da proteção penal.


Tanto que, na legislação anterior, tínhamos, no título relacionado aos crimes contras os costumes, o estupro, o qual resguardava, principalmente, a liberdade sexual da mulher.


Por força disso, a nomenclatura constante do título não é fator limitador da proteção do bem jurídico. Ainda que sob a rubrica “dos crimes contra a dignidade sexual”, há delitos que produzem uma pluralidade de sujeitos passivos.


Desse modo, o que se tutela é  a dignidade da pessoa humana, sob o aspecto sexual, e os direitos a ela inerentes, como a sua liberdade, sua integridade física, sua vida ou sua honra etc.  Ao lado disso, busca-se a proteção também da moralidade pública sexual, cujos padrões devem pautar a conduta dos indivíduos, de molde a que outros valores de grande valia para o Estado não sejam sobrepujados[3].


Se a moralidade pública sexual, os bons costumes ou o pudor público não podem ser tutelados, como justificar a punição dos crimes de ultraje ao pudor público? Com efeito, no Código Penal, no capítulo referente aos crimes contra a dignidade sexual, há delitos que atentam o pudor público, como o previsto no art. 233 do referido Diploma: “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena — detenção, de três meses a um ano, ou multa”. Ora, alguém poderá dizer que o pudor público não pode ser um bem jurídico da tutela penal? Ou praticar atos sexuais em público ou mostrar órgãos genitais passou a ser moralmente admitido? 


Estamos, portanto, diante de comportamentos humanos que ameaçam efetivamente valores fundamentais para a convivência social, o desenvolvimento humano e sua existência pacífica e harmoniosa em comunidade, justificando, assim, a sua concomitante tutela.


 


Notas:

[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 48.

[2] Ricardo Cunha Chimenti. Marisa Ferreira dos Santos. Márcio Fernando Elias Rosa.  Fernando Capez. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. São Paulo: Saraiva,  2008, p. 34.

[3] Vide  Fernando Capez. Stela Prado. Tráfico de pessoa e o bem jurídico em face da Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009.  In: Tráfico de Pessoas. Laerte Marzagão (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2010. 


Informações Sobre o Autor

Fernando Capez

Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Autor de várias obras jurídicas


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