O Poder Judiciário e a sua vinculação aos direitos fundamentais

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A vinculação dos direitos fundamentais ao Poder Judiciário se dá de duas formas: a) o Poder Judiciário deve fiscalizar, quando provocado, os demais poderes quanto à aplicação dos direitos fundamentais; b) o Poder Judiciário deve zelar para que suas decisões tenham conteúdo que respeito os direitos fundamentais.



1.- A fiscalização, pelo Poder Judiciário, dos demais Poderes, no cumprimento dos Direitos Fundamentais


Quanto ao primeiro aspecto, pode o Poder Judiciário declarar uma lei inconstitucional, quando o seu conteúdo ferir o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Foi o que o Supremo Tribunal Federal fez, ao declarar inconstitucional o regime integralmente fechado, previsto no artigo 2º, da Lei de Crimes Hediondos, por ferir o núcleo essencial do direito à individualização da pena, previsto no artigo 5º, da Constituição Federal. Outrossim, deve anular os atos administrativos que ferirem os direitos fundamentais, como o concurso público que fixa indevidamente um limite máximo de idade, ferindo o direito à igualdade.


Grande polêmica há no tocante aos limites do Poder Judiciário na fiscalização do cumprimento do direito de prestação material.


Os direitos podem ser classificados em: a) direitos de defesa; b) direitos de prestação; c) direitos de participação. Os primeiros impõem ao Estado um dever de não agir, uma abstenção. Como diz Gilmar Mendes, “os direitos de defesa vedam interferências estatais no âmbito de liberdade dos indivíduos e, sob esse aspecto, constituem normas de competência negativa para os Poderes Públicos. O Estado está jungido a não estorvar o exercício da liberdade do indivíduo, quer material, quer juridicamente” (Curso de Direito Constitucional, p. 256). Os direitos de participação são aqueles destinados a garantir a participação dos cidadãos na formação da vontade do País (direito de votar, iniciativa popular etc.). Por fim, os direitos de prestação, são divididos em dois: 1) direitos de prestação jurídica e 2) direitos de prestação material.


Os direitos de prestação jurídica são aqueles que impõem ao Estado o dever de editar uma norma. Por exemplo, quando a Constituição fala do crime de racismo, determina que a lei preveja o crime de racismo, apenando-o com reclusão (art. 5º, XLI, CF). O dever do Estado, nesse caso, é editar a lei.


Por sua vez, direitos de prestação material são aqueles em que o Estado tem que fazer, tem que agir. A grande questão é: como o Poder Judiciário pode exigir a realização desses direitos sociais? Quais são os seus limites?


Primeiramente, esses direitos dependem da existência de uma situação econômica favorável para que haja sua efetivação. Ora, não é por que a Constituição diz que o salário mínimo será capaz de suprir as necessidades vitais básicas de toda a família com moradia, saúde, alimentação, transporte, lazer, previdência social etc., que o valor milagrosamente será alterado. Na realidade, é necessária uma lenta evolução histórica, um lento desenvolvimento econômico e social para que isso ocorra. O mesmo se aplica ao direito à saúde, à educação etc. Depois de séculos de descaso, não será um artigo da Constituição que mudará a situação da saúde no Brasil ou acabe com o analfabetismo. É necessário um conjunto gigantesco de atividades, acompanhado de um desenvolvimento sustentável do país, para que tudo isso ocorra.


É que disse o Ministro Gilmar Mendes nessa recente decisão, que adiante comentaremos: “A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos Poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível”.


Não obstante, o fato de não gerar direitos subjetivos, via de regra, não pode ser usado como argumento para a inércia estatal. Sob o argumento de que somente no futuro esse direito será totalmente cumprido, não se pode cruzar os braços no presente. Outrossim, é um engano dizer que esses direitos à prestação material não gozam de qualquer eficácia. Primeiramente, gozam de eficácia jurídica, pois podem ser usados como parâmetro no controle de constitucionalidade, bem como revogam (ou não recepcionam) as leis anteriores incompatíveis e também condicionam a legislação futura. Mais importante do que isso: esses direitos fundamentais à prestação material, segundo doutrina e jurisprudência contemporâneas, podem produzir efeitos concretos, pois possuem um “grau mínimo de efetividade”. Essa é a posição do Supremo Tribunal Federal.


1.1.- O Supremo Tribunal Federal e a eficácia dos direitos sociais (educação e saúde)


O Supremo Tribunal Federal já decidiu várias vezes acerca da distribuição de medicamentos para tratamento de AIDS, com base no direito social previsto no artigo 196, da Constituição Federal: O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF” (RE 271286 AgR / RS Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 12/09/2000).


No mesmo sentido, só que tratando do direito à educação, o Supremo Tribunal Federal disse:


A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à ‘reserva do possível’. Doutrina” (RE 410715 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Julgamento:  22/11/2005).


Mais recentemente, no dia 17 de março de 2010, o Plenário do Supremo Tribunal Federal indeferiu nove recursos interpostos pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de remédios de alto custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves que recorreram à Justiça. Com esse resultado, essas pessoas ganharam o direito de receber os medicamentos ou tratamentos pedidos pela via judicial. O ministro Gilmar Mendes foi o relator das Suspensões de Tutela (STA) 175, 211 e 278; das Suspensões de Segurança 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; e da Suspensão de Liminar (SL) 47.


No seu voto, foi cauteloso para que cada caso seja avaliado sob critérios de necessidade. Ele disse que obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada. Mendes diferenciou, por exemplo, tratamentos puramente experimentais daqueles já reconhecidos, mas não testados pelo sistema de saúde brasileiro. No caso daqueles, ele foi enfático em dizer que o Estado não pode ser condenado a fornecê-los. “Quanto aos novos tratamentos ainda não incorporados pelo SUS, é preciso que se tenha cuidado redobrado na apreciação da matéria. Como frisado pelos especialistas ouvidos na audiência pública, o conhecimento médico não é estanque, sua evolução é muito rápida e dificilmente acompanhável pela burocracia administrativa”, citou, lembrando que a aprovação de novas indicações terapêuticas pode ser muito lenta e, como resultado disso, pacientes do SUS podem ser excluídos de tratamentos já oferecidos há tempos pela iniciativa privada.


Disse que “há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim não se pode afirmar que os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas dos SUS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial”.


O ministro foi acompanhado, em seu voto, por todos os demais presentes à sessão. O ministro Celso de Mello julgou que a Justiça precisa agir quando o poder público deixa de formular políticas públicas ou deixa de adimpli-las, especialmente quando emanam da Constituição. “O direito à saúde representa um pressuposto de quase todos os demais direitos, e é essencial que se preserve esse estado de bem-estar físico e psíquico em favor da população, que é titular desse direito público subjetivo de estatura constitucional, que é o direito à saúde e à prestação de serviços de saúde”, completou.


2.- O conteúdo das decisões do Poder Judiciário


Como vimos, o Poder Judiciário está vinculado aos direitos fundamentais não somente quando fiscaliza o cumprimento destes pelos demais Poderes. Além disso, ele também está diretamente vinculado aos direitos fundamentais, no conteúdo de cada decisão, bem como no seu modo de agir.


Assim, deve o magistrado respeitar, na condução do processo, princípios como contraditório, ampla defesa, juiz natural, proibição de provas ilícitas, publicidade etc.


Outrossim, sua decisão deve respeitar os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana etc. Caso ocorrido na cidade de São Paulo é a demonstração clara do que estamos dizemos. O jornal escrito Agora São Paulo noticiou que um jogador de futebol estava negociando com o Fantástico, programa da TV Globo, para assumir no ar que era gay. Depois disso, durante o programa Debate Bola, da TV Record, um dirigente do time de futebol Palmeiras foi questionado se o tal jogador homossexual era do Palmeiras. O dirigente respondeu: “O Richarlyson quase foi do Palmeiras” (Richarlysson é jogador de futebol do time do São Paulo, chegando a jogar na seleção brasileira).


O jogador alegou que se sentiu ofendido e foi à Justiça, oferecendo queixa-crime. Na sentença, o juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo rejeitou a queixa-crime, ressaltando toda a masculinidade do futebol: “Quem é ou foi boleiro sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num ‘tête-à-tête’”. Disse, outrossim, que o futebol era coisa de “macho”, esporte “viril, varonil, não homossexual”.


Felizmente, o Poder Judiciário paulista não fechou os olhos a esse disparate, aplicando ao magistrado a pena de censura, por ter ele exagerado na linguagem ao fazer alusão a possível homossexualidade do jogador Richarlyson Barbosa Felisbino, volante do São Paulo. Os desembargadores do Tribunal de Justiça, por 24 votos a 1, decidiram que: “A gravidade dos autos, independente das questões anteriores, são suficientes para a aplicação da pena, por atingir a imagem do Judiciário de São Paulo”.


3.- Conclusão


Essa recente decisão do Supremo Tribunal Federal demonstra que a tendência apontada por toda doutrina cada vez mais se confirma:


a) a vinculação do Poder Judiciário aos direitos fundamentais – os direitos fundamentais possuem força vinculante sobre todos os Poderes constituídos. Assim, o Poder Legislativo tem o dever de regulamentar as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais, não podendo revogá-las posteriormente (proibição do retrocesso ou efeito cliquet), bem como, ao limitar os direitos fundamentais, não podem ferir o seu núcleo essencial, mesmo quando a Constituição permite a redução (como no artigo 5º, XIII, CF). O Poder Executivo tem o dever de cumprir os direitos fundamentais em seus atos, não podendo, por exemplo, organizar um concurso público limitando a idade máxima, salvo quando houver uma estreita ligação com a função a ser exercida. O Poder Judiciário é obrigado não só a fiscalizar os demais Poderes na aplicação dos direitos fundamentais, como também deve zelar pelo conteúdo de suas decisões e pela condução dos processos, nos termos dos ditames constitucionais garantidores.


b) a existência de um “mínimo existencial” dos direitos sociais – Obviamente, os direitos sociais (também chamados de direitos de prestação material) não possuem a mesma eficácia imediata e plena dos direitos de defesa (nos quais o Estado tem apenas a obrigação de não fazer, de se abster). Quanto aos direitos sociais, é necessária uma lenta evolução do Estado, a fim de que todos os efeitos sejam produzidos. Não obstante, isso não pode ser utilizado como “desculpa” do Poder Público para sua inescusável inação. As normas programáticas produzem direitos subjetivos, no tocante ao “mínimo existencial” desses direitos sociais, sob pena de se transformarem as suas normas constitucionais definidoras em mera poesia constitucional.


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c) o princípio da eficiência ou máxima eficácia dos dispositivos constitucionais – Cada dispositivo constitucional possui eficácia. É função do intérprete (e o julgador é um dos intérpretes mais importantes do direito, já que sua função vem do latim juris dictio – dizer o direito) buscar a maior eficácia possível para todas as normas constitucionais, principalmente as definidoras de direitos fundamentais, pois estas, nas palavras de Robert Alexy, compreendem “mandamentos de otimização”.


d) o neoconstitucionalismo – Como sabemos, já passamos pelo estágio do constitucionalismo clássico, segundo o qual o Estado tem o seu poder limitado por meio de uma constituição. Alcançamos esse estágio e esse conceito é visto como uma verdade, em qualquer Estado democrático. Assim, podemos dizer que o constitucionalismo venceu. Não obstante, o ser humano sempre quer mais. Como diriam os Titãs, “a gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte…”. Assim, a missão do neoconstitucionalismo é tornar cada vez mais eficaz os dispositivos constitucionais, máxime os definidores dos direitos fundamentais.


Essa recente decisão do STF mostra que todas as tendências acima descritas estão sendo cumpridas. Felizmente. Continuemos assim.



Informações Sobre o Autor

Flávio Martins Alves Nunes Júnior

Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Penal da Rede de Ensino Telepresencial LFG (Luiz Flávio Gomes), Um dos apresentadores do programa “Prova Final” da TV Justiça, Coordenador do curso de Direito do Centro Unisal de Lorena, nos biênios 2005-2006, 2007-2008 e no ano de 2009, Supervisor do Núcleo de Estudos Orientados de todos os cursos de Direito do Centro Universitário Salesiano do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Público e Especialista em Direito Processual. Autor de vários livros, dentre eles “REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS”, 3a edição, editora Revista dos Tribunais.


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