Resumo: Este trabalho tem por finalidade analisar a dicotomia entre o público e o privado no Estado brasileiro hodierno. A metodologia utilizada foi do tipo exploratório, de modo a instrumentalizar uma reflexão teórica da bibliografia relacionada com o tema proposto. Ao longo da evolução político-institucional estatal, consagrou-se uma linha de raciocínio pautada na privatização do direito público, com amparo notadamente nos ideais revolucionários e iluministas do século XVIII e XIX, bem como no individualismo e nos sistemas das codificações oitocentistas. No âmago do Estado Social brasileiro, o direito privado sofreu o influxo da publicização, ante a intervenção mais acentuada do Estado na sociedade e na economia, com baliza na supremacia e na indisponibilidade do interesse público. Conclui-se que não mais subsiste a visão dicotômica entre as esferas do privado e do público, no formato estatal atual, considerando que ambas têm tem como norte interpretativo a Carta Constitucional de 1988. [1]
Palavras-chave: Dicotomia; Público e Privado; Estado brasileiro hodierno.
Sumário: Introdução – I. Dicotomias existentes entre o público e o privado – II. Primazia do privado sobre o público na ótica do Estado Liberal – III. Primazia do público sobre o privado na ótica do Estado Social – IV. Novos rumos da dicotomia entre o público e o privado no estado brasileiro do século XXI – V. Conclusão.
1. Introdução
O direito como ciência apresenta as suas ramificações, incluindo aí, a summa divisio entre o público e o privado, ensejando, neste ponto, a existência de dicotomias em decorrência da natural diversidade dos mecanismos, das regras e dos princípios aplicáveis[2].
Como será demonstrado neste estudo, a dicotomia entre o público e o privado apresentou faces distintas ao longo da evolução político-institucional estatal. Com efeito, tal dicotomia foi encarada sob a pauta da privatização do público, corroborada, sobretudo, pelos ideais de esclarecimento e racionalidade, com ênfase no progresso e na perfectibilidade humana traçada pelos filósofos Iluministas; pela política do laissez faire materializada na pregação libertária difundida através das revoluções liberais ocorridas nomeadamente nos séculos XVIII e XIX – especialmente a Revolução Francesa em 1789 –, as quais se manifestavam contra o absolutismo conduzido pelo regime monárquico outrora vigente; pela notoriedade do sistema de codificação, com destaque para o Código Napoleônico de 1804 e, também, para o Código Comercial francês de 1807; por fim, pela importância exarcebada na figura do indivíduo – também denominada como individualismo.
A base da ideologia no período liberal consistia, em especial, na liberdade das regras do jogo econômico traçadas pelos agentes de mercado, na liberdade de propriedade e contratar, sendo resguardado ao Estado, portanto, bases mínimas de atuação.
A quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929 representou o principal marco para o naufrágio da política do Estado mínimo, ou seja, foi desconstituída a visão de que tanto a sociedade quanto os mercados tinham plena capacidade de exercer, sem mazelas, a vertente da autorregulação. Foi neste período que a publicização do direito privado se notabilizou, como bem definiu Lôbo Netto[3]: “No estado social (Welfare State) todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados. O Estado Social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes interditados à ação pública pelas constituições liberais”.
Sendo assim, o Estado brasileiro no intuito de corrigir as falhas provocadas pela ampla liberdade dos agentes na condução do ordenamento econômico e social, adotou, ao contrário da política regulatória estadunidense do New Deal, uma política corretiva mais ativa. Ou seja, na busca do bem-estar social, ostentou-se no Brasil um controle mais acentuado da economia e das funções desempenhadas no seio social, ante a assunção da execução de inúmeras atividades que, até então, eram destinadas ao encargo dos particulares. Caracterizou-se, pois, o Estado brasileiro como um verdadeiro Estado Interventor.
No entanto, a assunção de responsabilidades pelo Estado brasileiro, tornou-se, com o passar dos anos, extremamente excessiva e demasiada. Daí porque, emergiram inúmeras críticas e questionamentos, tendo em vista que a máquina administrativa se tornou inchada, ineficiente e, sobretudo, geradora de altos custos. O Estado diante deste panorama se afastou da sua finalidade precípua – servir como um meio ou um instrumento da realização dos anseios sociais –, voltando-se mais para os seus próprios interesses.
De modo a lograr novos horizontes de prosperidade e de crescimento, o Estado brasileiro teve que se redefinir e esquadrinhar novos caminhos, o que fez através da efetivação dos planos de reforma e reengenharia estatal no final do século XX. Este contexto favoreceu, sobremaneira, a abertura para um novo período liberal, em que não mais se prestigia a intervenção direta na ordem econômico-social, adotou-se, contudo, por meio da subsidiariedade, da abstenção e da participação social, uma linha de ação reguladora, legisladora e cooperativa do Estado.
Assentadas tais premissas, é conveniente esclarecer que a construção deste trabalho será norteada pela seguinte problemática: a dicotomia entre o público e o privado, encontra-se superada no âmbito da formatação do Estado brasileiro do século XXI?
Destaca-se, ainda, que este estudo não tem a missão de percorrer os meandres do processo de mutação político-institucional estatal[4]. Todavia, tal contextualização se mostra pertinente, considerando que o panorama do Estado brasileiro do século XXI servirá de pano de fundo para a análise que se pretende realizar acerca da subsistência da visão dicotômica apontada entre as esferas do público e do privado.
Para tanto, a metodologia utilizada no vertente trabalho será do tipo exploratória, com o fito de instrumentalizar uma reflexão teórica da bibliografia relacionada com o tema proposto.
I. Dicotomias existentes entre o público e o privado
É importante assinalar, de início, a necessidade de se buscar alguns parâmetros para, diante o caso concreto, reconhecer a existência de uma dicotomia. De acordo com Bobbio, uma dicotomia pode ser identificada quando determinado universo puder ser dividido em duas esferas, as quais sejam reciprocamente exclusivas, de forma que um ente não pode ser compreendido ao mesmo tempo em ambas e, além disso, haja uma divisão total das esferas[5].
Percebe-se, assim, que o público e o privado remetem a uma “grande dicotomia”, já que, além de estarem dividos em um universo exaustivo de duas esferas, na mesma medida estabelecem uma divisão total entre si. E, como decorrência do reconhecimento desta dicotomia, pode-se destacar da mesma forma, uma separação entre direito e moral; entre Estado e sociedade; bem como entre política e economia.
Bobbio[6] ao se deparar com o tema considerou que as esferas do público e do privado não teriam uma relação de complementaridade, muito pelo contrário, o público só teria abrangência até o começo da esfera do privado e vice-versa. Ou seja, na sua visão, haveria uma incomunicabilidade natural entre as esferas do público e do privado.
Sob um ponto de vista da igualdade e desigualdade, o mencionado autor[7] assevera a existência da dicotomia entre o público e o privado, nos seguintes termos:
“Sendo o direito um ordenamento de relações sociais, a grande dicotomia público/privado duplica-se primeiramente na distinção de dois tipos de relações sociais: entre iguais e desiguais. O Estado, ou qualquer outra sociedade organizada onde existe uma esfera pública, não importa se total ou parcial, é caracteizado por relações de subordinação entre governantes e governados, ou melhor, entre detentores do poder de comando e destinatários do dever de obediência, que são relações entre desiguais; a sociedade natural tal como descrita pelos jusnaturalistas, ou a sociedade de mercado na idealização dos economistas clássicos, na medida em que são elevadas a modelo de uma esfera privada contraposta à esfera pública, são caracterizadas por relações entre iguais ou de coordenação.”
Para Daniel Sarmento a dicotomia entre o público e o privado, sob o prisma da igualdade e desigualdade, repousa na relação de autoridade e subordinação nas relações travadas entre o Estado e o cidadão (público) – desigualdade; já na relação entre os cidadãos (privado) impera a paridade e a coordenação – igualdade[8].
Neste contexto, Facchini Neto aponta que nas relações jurídicas esquadrinhadas entre particulares impera uma situação de coordenação, considerando o plano de igualdade; o que não ocorre, em contrapartida, quando há uma situação de desigualdade, onde prevalece o comando e a obediência, ou seja, uma relação pautada na subordinação, tal como ocorre entre o Estado e a sociedade[9].
Com relação às fontes de aplicação, merece relevo o fato que a esfera do público deve se pautar na esteira da legalidade, com vistas ao atendimento do artigo 37 caput da Constituição da República de 1988[10]. Já com relação à esfera do privado, reserva-se espaço para a autonomia da vontade, isto é, deve imperar o arcabouço das normas fixadas contratualmente, as quais terão a finalidade de regular as relações consensualmente assumidas entre as partes.
Conforme assinala Ludwig[11], há um campo de delimitação e de condicionamento entre as esferas do público e do privado, não admitindo, nesse sentido, a existência de um vácuo entre ambas. Na visão do autor, se de fato fosse admitido um ponto de interseção entre o público e o privado, isto seria considerado algo esdrúxulo, na medida em que ensejaria um “Direito mais-ou-menos”.
Ademais, o campo de abrangência do público, em uma análise objetiva, busca atender apenas os interesses da coletividade, do gurpo. Por outro lado, e, também sob uma ótica superficial, a órbita jurídica do privado se reserva ao interesse individual, singular.
Ratificando especificamente esta dicotomia, cabe trazer à tona o raciocínio delineado por Sarmento[12]:
“o direito público corresponderia às matérias em que se manifestasse uma preponderância dos interesses públicos, ao passo que ao Direito Privado caberia a disciplina das questões que tocariam mais diretamente aos indivíduos, restando num segundo plano os interesses da coletividade.”
O referido autor[13] menciona, ainda, que a dicotomia entre o público e o privado pode ser vislumbrada sob a ótica do critério subjetivo, de modo que, no âmbito do direito público as relações são travadas sempre com a figura estatal, já nas relações circunscritas ao direito privado, estar-se-ia consolidada a ausência dos poderes públicos.
De modo a evidenciar o reflexo da dicotomia entre o público e o privado nas atividades econômicas, Giorgianni[14] se posiciona do seguinte modo:
“as atividades econômicas – que são aquelas em relação às quais recentemente surgiram as dúvidas sobre se pertenciam a um ou a outro campo – deveriam ser atribuídas à esfera do Direito Público quando assumem as formas da liberdade (elargizione) ou da atribuição discricionária de bens e serviços por parte dos poderes públicos, ou seja, da subtração da esfera econômica concorrencial através das chamadas reservas e dos monopólios públicos. Essas atividades, ao contrário, deverão ser atribuídas à esfera do Direito Privado quando forem exercidas no plano concorrencial e contratual, através da empresa, da propriedade, do contrato, da obrigação.’
É certo que, sob a perspectiva das visões dicotômicas supramencionadas, os institutos ligados ao público e ao privado além de incomunicáveis e dividos em duas esferas taxativas, teriam uma estrutura mais relevante do que a outra, no momento em que o instituto manejado no caso específico, esteja vinculado a uma destas duas esferas.
Percorridas as dicotomias de maior relevância entre o público e o privado, não se deve olvidar que o processo de transformação do quadro político-institucional do Estado brasileiro, teve um papel essencial no agravo da visão dicotômica existente entre tais esferas, num primeiro momento com a privatização do direito público (Estado Liberal), num segundo momento com a publicização do direito privado (Estado Interventor e Social). Será apresentada, oportunamente, uma análise acerca da subsistência destas dicotomias, tendo em vista os novos paradigmas traduzidos no âmbito do Estado brasileiro do século XXI.
II. Primazia do privado sobre o público na ótica do Estado Liberal
Etapa que teve como marco o final do século XVIII, por meio do esclarecimento e da racionalidade expandida pelos filósofos iluministas[15], que tinham o propósito de iluminar as “trevas” em que a sociedade se encontrava e, posteriormente, a ocorrência das principais revoluções – destaque para a Revolução Francesa de 1789 – que eclodiram contra o absolutismo monárquico, sob a bandeira da fraternidade, da igualdade e da liberdade [16].
O período da privatização do direito público foi representado pelo combate ao desrespeito e ao descaso com o indivíduo, que, ganhou força especialmente com as pressões decorrentes da industrialização crescente, com o impacto do crescimento demográfico e pelas diversas disparidades existentes na sociedade. Inclusive, foi nesta fase que houve o surgimento dos direitos fundamentais vulgarmente denominados de 1a geração ou direitos negativos[17], os quais eram vistos como verdadeiras garantias dos indivíduos contra o arbítrio naturalmente presente na conduta adotada pelos governantes.
No âmago do Estado Liberal, a atuação estatal só se legitima na defesa das liberdades, não na condução das atividades sociais e econômicas, o que, indubitavelmente, denota uma supervalorização dos interesses privados[18]. Daí porque, o Estado passa a ser mínimo, e, segundo Giorgianni[19], explica-se pelo seguinte: “neste período a intervenção do Estado se limita à prestação de auxílio ao credor diante do devedor inadimplente, ou seja, ao proprietário diante dos ataques do usurpador”.
O Estado Liberal emerge com o escopo de promover, de fato, um distânciamento entre o “braço” estatal e as atividades prestadas pelos indivíduos, isto é, a intervenção passava a ser considerada uma exceção. Este período representou, portanto, um marco de ruptura com o absolutismo monárquico que regrava de forma exaustiva as condutas dos particulares e, pior, não atendia as necessidades clamadas pela sociedade[20].
O fenômeno que foi de suma importância neste período e, sobretudo, garantidor das liberdades e do individualismo, foi o das Codificações oitocentistas, notadamente o Código Napoleônico de 1804 e o Código Comercial francês de 1807. Os códigos representavam uma defesa concreta contra os abusos perpetrados pelos governantes. Há autores[21], inclusive, que apontam os códigos oitocentistas, especialmente o código civil, como uma espécie de constituição da sociedade.
Portanto, como se pode constatar, a autonomia da vontade que antes era desconsiderada e sobrepujada pelos governantes absolutistas, passou a ser o centro das atenções no período Liberal, o que, em grande parte, foi devido aos códigos[22].
Buscava-se, com isso, a valorização e a realização da pessoa, salvarguardando não apenas a liberdade de contratar e de propriedade, mas também todos os demais interesses privados, os quais passaram a ser juridicamente tutelados. Em outras palavras, mais do que a garantia da liberdade no meio econômico e de ser proprietário, o direito privado passou a ser fundamental na regulação da vida do indivíduo no seio social.
Diante deste sistema jurídico voltado para a proteção das liberdades dos indivíduos, cabe fazer menção, de igual forma, à figura do individualismo que, de acordo com Giorgianni:
“Ora, esse ‘individualismo’ do Direito Privado tinha como reflexo – muito importante para compreender o significado e as fronteiras do Direito Privado de então – uma qualificação acentuadamente subjetivista. Em outros termos, a função do Direito Privado não era aquela de disciplinar algumas atividades da vida econômica e familiar da sociedade, mas a vida dos indivíduos (ou dos particulares) no seio da sociedade”.[23]
Como se nota, o período liberal enraizado nos ideais do individualismo extremado, na sistematização dos códigos oitocentistas, bem como nos axiomas iluministas e revolucionários presentes à época, tiveram o condão de afastar a ingerência do Estado nas atividades sociais e econômicas. Nesse sentir, houve o fortalecimento da dicotomia existente entre o público e o privado, na medida em que, quando os interesses privados e os interesses públicos entravam em rota de colisão, tenderiam a prevalecer, como regra, os interesses privados.
III. Primazia do público sobre o privado na ótica do Estado Social
É fato que, o período Liberal foi marcado por vários benefícios gerados pela política do Estado mínimo, especialmente como já asseverado, pela prevalência da autonomia da vontade dos indivíduos na senda dos contratos e da propriedade. Contudo, não há dúvidas também, que este modelo político-institucional foi marcado por diversos malefícios, principalmente com relação à concentração de renda, à criação de estruturas de dominação, à exploração dos mais fracos pelos mais fortes, à exploração do trabalho humano, às falhas de mercado, fatores estes, que serviram de justificativa para a eclosão de diversos conflitos sociais no final do século XIX.
Lôbo Netto[24] resume o espírito do período Liberal em duas etapas: “Em verdade, houve duas etapas na evolução do movimento liberal e do Estado Liberal: a primeira, a da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade.”
Não obstante a insatisfação social contra o sistema exploratório, apenas em 1929, com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, ocasião que ficou marcada como “a grande depressão econômica”, que, de fato, o liberalismo estatal naufragou. Dessa forma, ratificou-se a ideia que os mercados eram falhos no desempenho da autorregulação das atividades econômicas [25].
Destarte, ao contrário da política regulatória estadunidense – New Deal, elaborada no governo do presidente Franklin Roosevelt –, assistiu-se, no Brasil, o surgimento do Estado Social[26] (Welfare State), em que o Estado avocou o papel na intervenção em domínios até então reservados à iniciativa privada[27].
O Estado passa a ser responsável pela correção dos desequilíbrios econômicos e sociais, ostentando a qualidade de provedor do bem-estar e assumindo o compromisso de garantir o mínimo para todos os indivíduos, como produto de uma cultura igualitária. Nestes termos, Facchini Neto assevera que há um abandono da ética do individualismo pela ética da solidariedade, relativizando, destarte, a tutela da autonomia da vontade e, na mesma medida, suscita o reforço da proteção da dignidade da pessoa humana[28].
É nesta paisagem político-institucional que o primado do público sobre o privado se consolida, considerando que o Estado foi novamente se apropriando do espaço destinado à burguesia no período liberal[29].
Na arena do Estado Social, a publicização do direito privado é construída sob a pauta da supremacia do interesse público sobre o privado. Osório considera que, mesmo não havendo qualquer previsão constitucional no sentido de garantir tal supremacia, esta deve ser considerada como uma norma constitucional implícita[30], ante uma leitura “sistemática e teleológica” da constituição.
Compactuando com o raciocínio de supremacia do interesse público sobre o privado[31], Carvalho Filho se posiciona da seguinte forma:
“não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo. Saindo da esfera do individualismo exarcebado, o Estado passou a caracterizar-se como Welfare State (Estado/bem-estar), dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público[32].”
Como consectário lógico da dita supremacia, decorre o princípio da indisponibilidade do interesse público. Nesse diapasão, Osório[33] sustenta que: “Há inegável indisponibilidade do interesse público, inclusive contra o próprio agente público, a caracterizar a relação de administração, algo que resulta melhor reconduzível ao princípio da superioridade do interesse público sobre o privado”.
Isto é, a relação jurídica de potestade do Estado mantida com os administrados – verticalidade dos atos estatais – é enaltecida neste cenário interventivo. Tal relação autoritária exsurge e se solidifica pelo influxo dos atos administrativos que, como características, decorrem a imperatividade, a auto-executoriedade, a presunção de legitimidade e a autotutela. Igualmente, não se deve olvidar que nos contratos firmados entre os particulares e o Estado, há a inclusão de certas cláusulas, denominadas de exorbitantes, as quais, propositadamente, geraram um desequilíbrio natural em favor do Estado na relação contratual.
Portanto, levando em consideração o objetivo do Estado Social brasileiro – correção das mazelas sócio-econômicas deixadas como herança pelo período liberal –, é inegável que a relação mantida com os particulares deveria ser trilhada sob a vertente da autoridade, traduzida, notadamente, no axioma de supremacia do interesse público e, por via de consequência, na clarividente indisponibilidade deste interesse.
É cediço que, a dicotomia entre o público e o privado neste singelo painel político-institucional apresentado, mais uma vez, é fortalecida. Contudo, ao contrário do Estado Liberal, ante a eventual colisão entre o interesse público e o interesse privado no âmbito do Estado Social, o primeiro, como regra, deveria prevalecer.
IV. Novos rumos da dicotomia entre o público e o privado no estado brasileiro do século XXI
A atual configuração do Estado brasileiro teve como molde os ideais traçados no período neoliberal – efetivado com os planos de reforma e reengenharia estatal, no final do século XX. Além disso, absorveu o espírito democrático delineado na Carta Republicana de 1988 que, indiscutivelmente, assumiu o compromisso de instrumentalizar um sistema de cooperação e de integração entre o atendimento do interesse público perseguido pela Administração e os reais anseios sociais e as novas demandas do mercado. Logo, o Estado hodierno tem a missão constitucional de pautar seu esforço no sentido de construir uma democracia sólida e próspera, primando, sobretudo, pela formação de novas parcerias com os particulares, valorização do consenso e, também, pela formação de cidadãos plenos, participativos e interados no âmbito social.
Emerge, a partir disso, uma expressiva tendência da Administração Pública dissipar a costumeira forma autoritária de exteriorizar a sua pauta argumentativa que, como mencionado anteriormente, ganhou destaque no âmbito do Estado Social, e foi erigida sob a ótica da imperatividade dos atos administrativos. Segundo Almeida[34]: “um dos vetores da evolução do Direito Administrativo, na democracia, seja a substituição dos mecanismos de imposição unilateral – tradicionalmente ditos de ‘império’ – por mecanismos de consenso.” Nesse contexto, Moreira Neto[35] explicita que: “a face imperativa do Poder só deve aparecer quando absolutamente necessário e no que for absolutamente indispensável”.
A roupagem impositiva e unilateral utilizada pela Administração Pública na busca do bem-estar social, reflexo da gestão pública fechada e autoritária adotada no discurso do Estado Social, é, definitivamente, colocada em xeque. Nesse sentir, vislumbra-se com maior nitidez que a função novel do Estado é envidada no sentido de prestigiar a construção negociada e consensual das decisões, materializando uma gestão pública aberta e democrática, com vistas ao alcance da boa administração e, por via de consequência, da eficiência administrativa.
Portanto, à medida que o foco é desviado da autoridade para o cidadão, a relação de superioridade e desigualdade deixa de fazer sentido. Somado a este panorama, os direitos fundamentais, a subsidiariedade e a participação social corroboram, o que, para muitos, é considerada como a “era da consensualidade”.
Por outro lado, considerando as bases democráticas do Estado do século XXI, voltado mais para o respeito aos direitos fundamentais e à tomada de decisões pautada no consenso, vozes na doutrina destacam que a dita supremacia do interesse público não deve ser invocada genericamente e como verdade absoluta pela Administração Pública.
Com esta proposta, Alexandre Aragão destaca que: “uma sociedade democrática e onde prevaleça a segurança jurídica dos cidadãos e dos investidores, que não podem ficar sujeitos à permanente ameaça da invocação de uma “supremacia do interesse público”, que remete a paradigmas publicistas oitocentistas já felizmente superados” [36].
Os autores[37] que encampam este raciocínio apontam um caminho de ponderação e compatibilidade entre os interesses públicos e privados, sem que um interesse prevaleça, como regra, em detrimento do outro, como ocorreu com o protagonismo do interesse privado no Estado Liberal e com o destaque do interesse público no Estado Social[38]. Inclusive, esse é o entendimento manifestado por Medauar[39]: “Tende a modificar-se também o entendimento de sacrifício de um interesse em prol, ou a ideia de primazia de um sobre outro interesse. Cogita-se hoje da função atribuída à Administração de ponderação dos interesses em confronto”.
No sentido acima assinalado, Justen Filho[40] vai mais além, asseverando que: “Qualquer invocação genérica ao ‘interesse público’ deve ser repudiada como incompatível com o Estado Democrático de Direito.”
Por outro lado, Carvalho Filho objetando esta visão doutrinária contemporânea de desconstrução da supremacia do interesse público sobre o privado, acentua:
“Não lhes assiste razão, no entanto, nessa visão pretensamente modernista. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias. A “desconstrução” do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia; o princípio, isto sim, suscita “reconstrução”, vale dizer, adaptação à dinâmica social, como já se afirmou com absoluto certo.”[41]
Contudo, Moreira Neto considerando a configuração estatal pátria contemporânea, manifesta a necessidade de flexibilizar a visão axiológica de supremacia do interesse público, estabelecendo alguns standards para viabilizar a disponibilidade deste interesse:
“Em outros termos e mais sinteticamente: está-se diante de duas categorias de interesses públicos, os primários e os secundários (ou derivados), sendo que os primeiros são indisponíveis e o regime público é indispensável, ao passo que os segundos têm natureza instrumental, existindo para que os primeiros sejam satisfeitos, e resolvem-se em relações patrimoniais e, por isso, tornaram-se disponíveis na forma da lei, não importando sob que regime. Essa distinção entre atividades administrativas, com o propósito de definir quais as que se situam ou podem se situar no campo do direito privado, ou seja, naquele em que prevalecem a autonomia da vontade e a disponibilidade, tem sido buscada de longa data no Direito Administrativo. Na esteira da então chamada doutrina do fisco construiu-se a separação entre atos de império (ou de autoridade) e atos de gestão que prevaleceu durante todo o século XIX e, por sua importância, encontrou em H. Berthélemy o sistematizador que com ela influenciou durante muito tempo a jurisprudência francesa.”[42]
Em outras palavras, o citado autor ressalta que o interesse público não deve ser considerado, por si só, indisponível, faz-se fundamental diferenciá-lo em primário e secundário. No seu ponto de vista, apenas o interesse público primário é indisponível, ao contrário do interesse público secundário, que poderia ser disponibilizado nos termos da lei. Ainda na visão de Moreira Neto[43], a indisponibilidade do interesse público também pode ser evidenciada sob outra ótica: “distinguem-se, todavia, neste processo, os dois graus de interesse público: o substantivo, que diz respeito aos fins visados pela Administração, e o adjetivo, que diz respeito aos meios disponíveis para atingi-lo, sendo que apenas o substantivo é indispensável.”
Fato é que, após as transformações que o direito público, em especial o direito administrativo atravessou até a presente formatação político-institucional do Estado brasileiro, invocar genérica e abstratamente o interesse público como sendo supremo, bem como erigir sob tal justificativa um obstáculo que impeça a disponibilidade do referido interesse, não se coaduna com os valores democráticos clamados pela atual sociedade pluralista. Torna-se relevante, então, valorizar decisões pautadas no consenso, na negociação, na harmonização e na ponderação dos interesses em conflito, de modo a salvaguardar não mais a supremacia do interesse público, mas sim a supremacia dos direitos fundamentais.
Não obstante as divergências doutrinárias acerca da supremacia do interesse público no Estado hodierno, Batista[44] com propriedade salienta que:
“não mais se mostra possível continuar reproduzindo e propagando acriticamente o dogma da supremacia do interesse público no direito administrativo. A par das dificuldades para seu enquadramento teórico, aqui já destacadas, operou-se uma substancial mudança no quadro político-jurídico que ensejou a sua formulação. Os novos rumos tomados pela filosofia jurídico-política contemporânea, alicerçados na jurisprudência dos princípios e na teoria do discurso, apontam para uma revisão daquele axioma.”
Por tais razões, é inexorável rematar que, atualmente, há que se considerar não mais a preponderância do interesse privado como ocorreu no Estado Liberal, ou a prevalência do interesse público como foi no caso do Estado Social, visto que os interesses devem ser, casuisticamente, compatibilizados e ponderados. Assiste-se, então, ao surgimento da preservação do interesse coletivo, isto é, na busca do interesse público, o interesse individual também deve levado em consideração. Com este desiderato, Binenbojm[45] destaca: “o Estado-Administrador deverá se organizar para proteger, promover e compatibilizar direitos individuais e interesses gerais da coletividade”.
É válido acrescentar, oportunamente, que o Estado brasileiro do século XXI direciona cada vez mais os seus esforços na elaboração de normas cooperativas entre as esferas do público e do privado, como ocorre, por exemplo, na formulação de políticas públicas – notadamente no campo da saúde e da educação –; nos atos normativos expedidos pelas agências reguladoras dos serviços públicos; na elaboração das Leis – das organizações sociais, das organizações da sociedade civil de interesse público, das parcerias público-privadas, dentre outras –; representando, assim, um forte indício da compatibilidade entre os interesses públicos e os privados existentes.
Evidencia-se, também, que entidades eminentemente privadas são criadas no intuito de atender finalidades de natureza transindividuais, o que denota o crescente número de associações, criadas com o desiderato de salvaguardar o meio ambiente, direitos do consumidor, direitos de deficientes físicos, etc.; e sindicatos, a fim de proteger direitos sociais e econômicos dos trabalhadores urbanos e rurais[46].
O próprio Código Civil vigente também é exemplo da busca de compatibilidade entre o interesse público e o privado, com vistas à promoção do interesse coletivo. Isso porque, o artigo 422 do mencionado diploma legal[47], faz menção à obrigatoriedade das relações contratuais serem regidas sob as bases do princípio da boa-fé objetiva, ou seja, o contrato não deve mais ser cumprido cegamente, deve ser considerado se a sua execução não gera vantagem excessiva para uma parte e desvantagem também excessiva para a outra parte. Inclusive, este argumento ganha reforço com o escopo traduzido no princípio da função social dos contratos, cristalizado no artigo 421 do CC[48][49].
Ademais, a regulação dos serviços públicos, de igual forma, tem relevante função na fiscalização e no controle do serviço público concedido à iniciativa privada, a fim de garantir dentre outras finalidades, a eficiência, a qualidade e a segurança dos serviços prestados; estimular o desenvolvimento, a universalização e a modernização dos serviços; zelar pela modicidade das tarifas cobradas; bem como preservar os direitos dos usuários.
Diante deste contexto, Giorgianni traz à tona alguns exemplos que demonstram com nitidez, a interpenetração de institutos intrínsecos às esferas do público e do privado:
“Passado ao primeiro campo, pode-se inicialmente observar como já se utiliza sem freio algum o instrumento do ‘contrato’ em muitas situações que antes eram enquadradas na ‘concessão’.
Também no campo dos bens públicos – no qual o legislador oitocentista não tinha tido moderação em recorrer aos conceitos do Direito Privado, talvez pelo significado de ‘soberania’ ínsito à propriedade e aos direitos in re –, assiste-se a algumas extensões antes não permitidas, como, por exemplo, em tema de usucapião de bens do patrimônio mobiliário indisponível.
Do ínfimo número de empresas geridas exclusivamente com critérios publicistas, das quais o Estado extraía recursos financeiros que a ciência das finanças definia de Direito Público (por exemplo, as tarifas ferroviárias eram classificadas entre as “taxas”), assistimos rapidamente ao multiplicar-se de empresas geridas pelo Estado e pelas Prefeituras com critérios de economia concorrencial: ao multiplicar-se de entes públicos que têm como único fim o de exercer atividade empresarial em regime de concorrência; e, por fim, à “participação” do Estado ou de entes públicos nas sociedades de capitais. Nota-se, além disso, uma verdadeira crise do conceito de “serviço público”.”[50]
Por conseguinte, é irrefutável a força perdida pela dicotomia entre o público e o privado na atual configuração político-institucional estatal, tão evidente com o individualismo e os códigos oitocentistas e, posteriormente, com os dogmas de supremacia e indisponibilidade do interesse público[51].
Com a mesma finalidade de explicitar a ausência de sentido na visão dicotômica entre direito público e direito privado, Maria Celina Bodin de Moraes defende que: “defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão”[52].
V. Conclusão
É fato que as dicotomias apontadas neste estudo não foram eliminadas no cenário estatal hodierno, tampouco restou evidenciada a extinção de todas as incertezas existentes nesta seara. Por outro lado, ficou demonstrado que a interpenetração dos institutos ligados ao direito público e ao direito privado está mais madura e evoluída no cerne do Estado brasileiro contemporâneo, acarretando, portanto, um arrefecimento na “zona cinzenta” entre ambas as esferas.
Não seria correto considerar diante do panorama estatal atual, como foi destacado ao longo deste trabalho, que o direito privado ou o direito público perdeu ou ganhou território, quando comparado com o cenário do Estado Liberal e do Estado Social. Isto não significa aceitar, também, a existência de um “direito mais ou menos”, mas, sobretudo, reconhecer que as bases científicas do público e do privado operam sob a mesma plataforma.
Assim, foi examinado que o direito administrativo e outras ramificações do direito público se valem por diversas vezes dos institutos eminentemente privatísticos, estes, por sua vez, não raro acolhem os institutos do direito público. E, oportunamente, é importante aclarar que tanto os ramos do direito privado, quanto os ramos do direito público, devem ser interpretados em conformidade com o efeito normativo irradiado pela Carta Constitucional de 1988. Convém considerar, então, que aí reside o ponto de interseção entre a disciplina de ambas a esferas.
Por derradeiro, a reflexão que se propôs alcançar com este estudo, funda-se no prisma da inutilidade da visão dicotômica entre as esferas do público e do privado, na medida em que, a referida visão não tem espaço numa sociedade plural e arraiga por valores democráticos, tal como a do Estado brasileiro do século XXI. Frise-se, novamente, que não há dois ordenamentos jurídicos distintos, mas tão-somente uma única ordem jurídica que tem como norte interpretativo os preceitos constitucionais.
Informações Sobre o Autor
Thiago Gomes do Carmo
Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado do Instituto de Resseguros do Brasil S.A. (IRB-Brasil Re)