No último dia 6 de maio, foi publicada a lei 12.234/2010, proveniente do PL 1383/2009, de autoria do Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), devidamente promulgada pelo Presidente da República, a qual teve por objeto a alteração dos artigos 109 e 110 do Código Penal, previdentes das regras atinentes à prescrição.
Em princípio, as alterações promovidas nestes artigos não impõem grandes dificuldades exegéticas ao intérprete, visto que se apresentam muito claras em seus objetivos.
Dado o propósito do presente ensaio, pedimos licença para elaborarmos rápido quadro demonstrativo das alterações promovidas pela lei em liça.
Com o objetivo aparente de enrijecer o tratamento penal dispensado ao “criminoso”, bem como de dar à sociedade verdadeira mostra da existência de movimentos parlamentares sérios e comprometidos com o clamor público pelo fim da impunidade e inefetividade do sistema punitivo brasileiro, o legislador promoveu o aumento do prazo geral de prescrição daqueles crimes cuja pena máxima não seja superior a 1 (um) ano, impondo ao Estado a perda do “jus puniendi” única e tão somente após o transcurso de 3 (três) anos, não mais em 2 (dois) anos, como previsto anteriormente.
Somente à guiza de esclarecimento, para que não se diga que tenha passado “in albis”, fica evidente que tal norma revela verdadeira “reformatio legis in pejus”, razão pela qual, por força do princípio Constitucional da irretroatividade da lei penal maléfica, tal dispositivo se aplica tão somente aos crimes praticados posteriormente ao início de sua vigência, ou seja, após o dia 6 de maio de 2010.
Contudo, a concessão de tão nobre espaço por parte do presente veículo de comunicação, tão relevante para a comunidade jurídica Araraquarense, não me permite comportar senão de forma crítica, compromissada com o leito deste periódico, razão pela qual tratar de temas relativos a pequenezas como retroatividade ou irretroatividade a lei penal maléfica seria verdadeiro acinte, senão menosprezo ao conhecimento de meus colegas de profissão. Não é esta minha intenção !
Por isso, peço vênia para discutirmos algo que entendo mais relevante e diretamente relacionado à missão dos profissionais operadores do Direito, algo que não se restringe à operacionalização dos institutos postos, mas, sim, à sua legitimidade frente ao Estado Democrático que um dia juramos defender.
Ao pesquisarmos os anais de nosso parlamento, a fim de encontrar as razões da aprovação da lei em comento, fica evidente que a intenção do legislador foi a de fulminar do nosso sistema o instituto da “prescrição retroativa”, que tinha por base a pena em concreto aplicada ao infrator e levava em conta os lapsos entre a ocorrência do fato e o recebimento da denúncia, bem como desta à publicação da sentença penal condenatória – contanto que não houvesse recurso da acusação ou, havendo recurso por parte da defesa, fosse ele improvido.
Neste ponto, louvável a iniciativa de nossos parlamentares, visto que, efetivamente, o instituto em tela desvelava verdadeiro mecanismo de impunidade em nosso sistema, além de encerrar medida acéfala de nosso ordenamento, pois se condicionava de forma antecipada a existência de um processo a algo que só pode ser verificado após a sua existência.
Ao tratar do instituto, Damásio de Jesus Assim o disse: “Isto lembra a história de um sacerdote que, na missa de sábado a noite recomendou aos fiéis que a procissão do dia seguinte seria às quatro horas da tarde, salvo se viesse a chover, caso em que ela seria realizada as nove horas da manhã”.
Por conta disso, bem como de outras tantas críticas – de natureza jurídica e social – feitas ao instituto, entendemos, humildemente, ter andando bem o legislador ao tentar por termo a tal modalidade de prescrição.
Assim promoveu-se, então, a alteração do artigo 110 do Código Penal, nos seguintes termos:
Com esta alteração, fica evidente a intenção do legislador em por termo ao instituto da prescrição retroativa.
Entretanto, pode-se entrever do referido texto que o instituto da prescrição retroativa ainda existe em nosso ordenamento. Contudo, está vedada a aplicação que leve em conta qualquer termo inicial que anteceda a denúncia ou queixa.
Ou seja, ainda é possível o reconhecimento da prescrição retroativa no período que varia da denúncia até a sentença penal condenatória.
Em que pesem judiciosas opiniões em sentido contrário, entendemos que, no silêncio do legislador quanto ao termo inicial de contagem do prazo – oferecimento ou recebimento da denúncia –, a melhor interpretação é aquela que se amolde aos princípios garantistas de nossa Constituição. Logo, deve-se considerar como termo inicial para a contagem do prazo prescricional o ato de oferecimento da denúncia, não podendo o réu ver seu direito ao reconhecimento da extinção da punibilidade pela prescrição, Constitucionalmente consagrado, condicionado à celeridade e efetividade da atividade jurisdicional, tão comumente prejudicada pelo excesso de trabalho e escassez de condições da máquina judiciária.
Porém, a despeito da notória “boa intenção” do legislador, bem como da demonstração de sua preocupação pública com o combate à impunidade e à inefetividade da prestação jurisdicional, entendemos que, resguardado nosso imensurável respeito a este, a presente reforma não passa de verdadeira adulação astuciosa ao bom entendimento do cidadão, verdadeira manifestação do “direito penal simbólico”, tão bem tratado pelo Professor da Universidade autônoma de Madri, Manuel Cancio Meliá, dizendo que se tem a presença do Direito Penal Simbólico quando “determinados agentes políticos tão só perseguem a finalidade de “dar a impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido, quando, na verdade, o que predomina é uma função latente sobre a manifesta, ou, dito de outra maneira, que há uma discrepância entre os objetivos os objetivos invocados pelo legislador – e os agente políticos em sua maioria concordam com este – e a agenda real, oculta por baixo daquelas declarações expressas”, e finaliza, “é a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social”.
Explicamos: a reforma, em primeiro lugar, sob a justificativa de enrijecimento do tratamento dado ao criminoso e da justificação à sociedade acerca de medidas adotadas para combater a impunidade, mormente em crimes praticados por autoridades públicas contra o Estado, aumenta o prazo da prescrição em abstrato dos crimes cuja pena não suplante 1 ano – ou seja, crimes evidentemente de menor potencial ofensivo, cuja pena diminuta representa a baixa, senão, quase ausente, lesividade social.
Ora, ao promover tal alteração, o legislador efetivamente enrijeceu o tratamento de crimes, mas, pasmem, somente daqueles cujo potencial lesivo é legalmente reconhecido como baixo – aqueles passiveis de transação penal, suspensão condicional da pena, substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos – como a lesão corporal leve, a lesão corporal culposa, a omissão de socorro, os maus tratos, a rixa, a difamação, a injúria, o constrangimento ilegal, dentre outros de pouco ou nenhum potencial ofensivo.
Não nos surpreenderá que, levado o tema à apreciação do STF, eventualmente se lhe reconheça a inconstitucionalidade, por atentado ao princípio da razoabilidade à idéia de proporcionalidade da pena justa. Ou seja, não nos parece plausível a prorrogação do poder de punir do Estado em crimes para os quais ele próprio prevê alternativas à pena e ao próprio processo, em reconhecimento da baixa lesividade e da contribuição para o abarrotamento do judiciário. Aumentar o prazo de prescrição em abstrato destes crimes é, no mínimo, contraditório, o que não se pode aceitar do legislador, adstrito a práticas inexoravelmente razoáveis.
Nesta linha, fazemos uma indagação: se a justificativa do legislador para a exclusão da prescrição retroativa foi o agravamento do tratamento àquela casta de crimes praticados por mentes preparadas, criminosas, mormente homens públicos, cônscios de que raramente tais crimes serão elucidados durante suas gestões, como abertamente declarou o Douto Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia quando da apresentação das razões de seu projeto, por qual razão manteve-se, então, a possibilidade do reconhecimento da prescrição retroativa durante a fase processual?
Parece-nos evidente que, mais uma vez, perdeu o legislador uma grande oportunidade de demonstrar seu compromisso com a causa pública, visto que os crimes que realmente nos assolam, que causam perplexidade, comoção social, indignação ao homem sem poder, possuem penas muito mais elevadas do que aquelas cujos prazos prescricionais foram aumentados pelo legislador. Logo, se alcançarem a prescrição, muito provavelmente o farão durante a fase processual, razão pela qual, data maxima venia, entendemos que a alteração é inócua – para não dizer extremamente oportuna aos interesses daqueles que se ouriçam com a chegada dos anos eleitorais.
Na condição de operadores do Direito, cabe-nos a guarda da Constituição e do Estado Democrático de Direito. Logo, estejamos alerta para engodos legislativos que, com a promessa de acautelarem o anseio social, promovem verdadeiras legitimações de atos nem sempre revestidos das indispensáveis clareza e moralidade.
Informações Sobre o Autor
Danilo Marques Borges
Advogado, Ex-Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Professor Universitário Professor de Curso preparatório para concursos na cidade de Araraquara, Especializando em ciências criminais, Especializando em Direito Constitucional